A escritora brasileira Adélia Prado inspirou-me neste meu pequeno texto, a propósito das mais comuns circunstâncias da nossa humana condição. Mulher casada, mãe de cinco filhos, morando numa pequena cidade de Minas Gerais, Adélia Prado foi de repente, aos cinquenta anos, a grande revelação na literatura brasileira do século XX, quando Carlos Drummond de Andrade a nomeou, para não mais ser esquecida. Eu vivi esse momento e, como muita gente, acrescentei a leitura de Adélia Prado à de Clarice Lispector. Em verso e prosa, Adélia descobriu a mistura entre as pequenas tarefas de casa, as pessoas que a rodeiam, as coisas e os bichos, o sentir e o pensar, a presença de Deus imediata e consciente, na inteireza da sua história de mulher. No meu caderno de anotações reencontro-a agora, a dizer que os nossos gestos e rituais de cada dia se podem transfigurar, para um sentido maior da nossa razão de ser.
No romance Cacos para um Vitral, há esse olhar de Adélia Prado sobre o mundo de dentro e de fora, o sentido religioso da vida, em estado puro de sensualidade. Vamos, assim, seguindo o percurso de Glória, a personagem principal: “Muitos anos mais tarde, muitos anos mesmo, num instante de graça, surpreendeu-se tão absolutamente em si mesma que não tinha mais a consciência de si, um momento em que escrevia. Sentiu-se visitada de Deus! Então é assim que se é! Eu também sou, possuo um ser perceptível aos outros e não há perigo de que me desintegre em fragmentos de areia. Que belo dia foi aquele de sua epifania. Glória lembrava-se e agradecia de novo, tinha um ser. Era ela mesma um ser (...) Quando dois se amam ninguém é devedor, porque o amor cobre a multidão dos pecados e eleva os humildes e abate os poderosos de seus tronos. Glória viu que recitava o Magnificat, por puro gosto literário, o que nela era também uma forma de rezar, sua melhor forma, talvez (...) Ao abraço da paz o homem virou-se e pegou na mão de Glória e bem explicitamente: “A paz de Cristo esteja com a senhora”. Um homem belo, piedoso, feliz, pegava sua mão com força e lhe desejava a paz. Há pessoas cujos corpos nos apelam. No futuro se poderá fazer sem escândalo o que desejei fazer agora, pensou ela, tocar o homem, reter sua mão, à toa, só porque é bom, porque o sangue gosta. Dentro da igreja ou não.”
Leonor Xavier
26.01.2012