1. O Prémio Nobel da Paz de 2012 foi atribuído à Europa, cuja população é de 500 milhões de cidadãos. Vem, como é normal, justificado: A União e os seus precursores têm contribuído, há mais de seis décadas, para o avanço da reconciliação, da democracia e dos direitos humanos. O papel estabilizador da UE ajudou a transformar a maior parte da Europa de um continente de guerra num continente de paz.
Embora o seu comportamento, sobretudo em relação ao Médio Oriente, por acções e omissões, continue a ser desastroso, o prémio celebra um processo interno notável que, por desgraça, tem vindo a ser gravemente traído. Quando os actuais dirigentes políticos parecem ter perdido a memória, o juízo e a decência, este prémio poderá ser interpretado como um alerta solene: não deitem a perder, com políticas mesquinhas, esquecidas da “fraternidade entre as nações”, um património de esperança.
Por outro lado, o culto das guerrilhas económicas e financeiras nunca poderá ser fonte de paz. As lógicas imperiais sempre precisaram de vítimas, sejam elas as seguidas pelo mundo ocidental, sejam as praticadas pela China, cada vez menos misteriosa.
Naquilo que imediatamente nos toca, não sei se chegaremos a conhecer a rede e o percurso dos interesses de todos os intervenientes – visíveis e invisíveis – com um resultado que violenta as pequenas empresas, os trabalhadores, os pensionistas e entrega a massa dos desempregados às reacções do desespero. Mas a insistência no caminho do quanto pior melhor, depois de todos os avisos, talvez não seja um jogo inocente. Não é, pelo menos, o caminho mais inteligente e virtuoso.
2. Para os eurocépticos, a própria ideia de UE não passou de mais uma utopia destinada à falência, fruto de um voluntarismo descontrolado pela memória dos horrores de duas guerras mundiais.
Talvez não tenha sido voluntarismo cego, mas alta lucidez. Não bastava dizer “guerra nunca mais”. Era preciso imaginar e percorrer os caminhos que, passo a passo, constroem a paz. Nenhum futuro desejado está, porém, garantido à partida. A vigilância activa de todo o processo é a condição para não confundir a utopia com o delírio.
O desejo e a imaginação são fontes de mudança, mas também de instabilidade e sofrimento. Buda, ao adoptar o longo processo interior de desapego do seu próprio eu, atingiu a “iluminação”, pois ficou a saber o que é o sofrimento, de onde vem, como pode ser superado e o caminho para o superar. Não é pouco.
O caminho de Jesus tem pontos de contacto com o de Buda – “perder é ganhar” – mas de modo diferente. Toda a sua pessoa e intervenção eram desejo de um mundo outro, um fogo a acender em todos os corações. Não apagava o desejo. Intensificava-o, convertendo-o sempre em algo de melhor, para não se perder em labirintos sem rumo. Não era nem um austero nem um libertino. Gostava da vida e para todos a desejava em abundância, alargando a tenda do Reino onde reunisse todos os filhos de Deus dispersos pela desumanidade.
Está escrito que ele próprio teve de resistir às tentações messiânicas, à vontade de tomar o poder e instaurar uma nova era em Israel ocupado. Interpretou-as como diabólicas! Não conseguiu, todavia, convencer os seus discípulos de que sem a radical conversão do desejo nunca iriam entender o que é preciso para alterar a própria natureza do poder. Ao pressentir que se passava com eles algo de muito estranho, descobriu a luta pelo poder, com as clássicas manhas do carreirismo, que envenena a política. Foi obrigado a uma linguagem e atitudes muito duras para tentar restabelecer a paz no grupo.
3. O Evangelho de S. Marcos, proclamado na missa de hoje, identifica a tentação que tem minado a Igreja, ao longo dos tempos. Nada de muito original: para satisfazer a ambição do poder, a vontade de mandar, é preciso saber construir uma carreira e intervir no momento exacto. A narrativa não podia ser mais clara. “Tiago e João, filhos de Zebedeu, foram ter com Jesus e disseram-Lhe: Mestre, queremos que nos concedas o que te vamos pedir. (…) que quereis que vos conceda? Que na tua glória – quando tomares o poder – nos sentemos um à tua direita e outro à tua esquerda”. Estavam dispostos a tudo. Ouvindo isso, os outros, os dez, sentindo-se ultrapassados, indignaram-se contra Tiago e João.
Jesus não podia deixar isto em claro e fez uma reunião: “Sabeis que os chefes das nações exercem domínio sobre elas e os grandes fazem-lhes sentir o seu poder. Não deve ser assim entre vós: quem entre vós quiser tornar-se grande, será vosso servo e quem quiser entre vós ser o primeiro será o escravo de todos, porque o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida pela redenção de todos”( Mc 10. 35-45).
Quando se pergunta que pode a Igreja fazer pela paz, pressupõe-se uma situação grave, atravessada por conflitos nacionais ou internacionais. Não deve tentar substituir o que pertence aos caminhos da política. Mas, sabendo o que perverte as relações económicas, políticas e sociais, tem de mostrar pela sua vida, pelo seu comportamento, pela transformação do poder de dominar em serviço, no seu interior, que existem alternativas ao modo como são governadas as nações. A Igreja tornar-se-ia, desse modo, fermento, sal da terra e luz do mundo.
Frei Bento Domingues, O.P.
Artigo copiado do Jornal Público
Sem comentários:
Enviar um comentário