Frei Bento Domingues, O.P.
1.
Hoje é domingo de canonizações, de surpresas e decepções. Fizeram-me, a
este respeito, uma pergunta estranha: será verdade que uma canonização
envolve a infalibilidade pontifícia? Digo estranha porque, nas questões
de ordem teológica, o que me preocupa, em clima cristão, é saber se um
determinado acontecimento, atitude, gesto ou palavra servem a dimensão
imanente e transcendente dos seres humanos, como criaturas de relação e
de interajuda. Respondi que uns teólogos dizem que sim e outros dizem
que não. Sabem tanto uns como outros. Estamos, portanto, em matéria
opinável. Como a própria noção de infalibilidade tem pouco de infalível,
é melhor não ligar muito a esse género de preocupações.
Além
disso, o essencial da vida cristã não passa por aí e a Festa de Todos
os Santos é muito mais inclusiva e democrática do que todos esses
processos de levar gente aos altares. São, aliás, rápidos para uns,
muito demorados para outros e impossíveis para quase todos. Preencher os
requisitos previstos para obter esse diploma de santo, não é para
qualquer um. Um bom currículo não basta. O júri que o avalia não goza de
nenhuma garantia divina de imparcialidade.
2.
Os produtos da hagiografia, feitos por encomenda ou por devoção,
pretendem ser edificantes; os frutos dos incréus, nem sempre são modelos
de crítica histórica, como pretendem.
Quanto
a modelos, se podemos falar assim, no Ocidente ainda não apareceu
nenhum mais interessante do que Jesus Cristo e aqueles que seguem os
seus passos e recomendações: os que não procuram nem riquezas nem
qualquer outro poder de dominação. Vem tudo muito bem explicado no
Evangelho segundo S. Marcos e paralelos (10, 17-45).
Andavam
os discípulos a discutir entre si os lugares que desejavam ocupar
quando o Mestre, o líder, tomasse o poder. Jesus ia percebendo tudo e
andava cada vez mais enjoado com todas essas conversas e segredos. Não
reagiu logo. Deixou que eles tivessem a coragem de se manifestarem
abertamente e aconteceu. Tiago e João, filhos de Zebedeu, abriram o jogo
e pediram logo os primeiros lugares na hierarquia do governo. Jesus
tentou dizer-lhes que não tinham entendido nada. Mas os dez, ouvindo
isso, começaram a indignar-se contra Tiago e João. Então o Mestre
percebeu que aquela ambição era geral. Chamou-os e pôs tudo em pratos
limpos: “Sabeis que aqueles que vemos governar as nações as dominam e os
seus grandes as tiranizam e são chamados Benfeitores. Entre vós não
deverá ser assim: ao contrário, aquele que, de entre vós, quiser ser
grande, seja o vosso servidor e aquele que quiser ser o primeiro, seja o
servo de todos. Pois o Filho do Homem não veio para ser servido, mas
para servir e dar a sua vida em resgate por muitos”.
Com
o gesto do lava-pés aos discípulos, o Evangelista João deu o sentido a
toda a vida de Jesus, antes, durante e depois da Páscoa. Indicou-lhes,
para sempre, o papel da Igreja no mundo: não ajoelhar diante de nenhum
poder (económico, financeiro, político ou religioso); ajoelhar apenas
diante dos excluídos da mesa comum, os deixados à porta de tudo sem
poder entrar!
3.
É esse o cânone cristão da santidade. O resto é apenas caminho para
esse despojamento libertador. João XXIII deixou-nos uns apontamentos,
para seu governo pessoal, com o propósito de reduzir tudo – princípios,
directrizes, assuntos – ao máximo de simplicidade e de paz, com o
cuidado de limpar em todo o tempo a sua vinha do que são folhas e ramos
inúteis e onde brilhe, apenas, a verdade, a justiça e a caridade;
sobretudo a caridade. “Qualquer outro sistema de actuação não é mais do
que jactância e desejo de afirmação pessoal, que depressa se denuncia,
se torna nociva e ridícula. (…) Todos os sábios do século, todos os
santos da terra, incluindo os da diplomacia vaticana, que papel mais
mesquinho representam, colocados à luz da simplicidade e da graça que
emana deste grandioso e fundamental ensinamento de Jesus e dos seus
santos!”
Incomodado
com o seu bom feitio, inclinado à condescendência e a descobrir o lado
bom das pessoas e das coisas, sofre com o ambiente que o rodeia:
“Qualquer forma de desconfiança ou de tratamento indelicado com alguém –
sobretudo se se trata de deficientes, pobres ou subalternos -, qualquer
dureza e irreflexão de juízo causam-me mágoa e íntimo sofrimento. Calo,
mas sangra-me o coração. Estes meus colaboradores são uns magníficos
eclesiásticos: aprecio as suas excelentes qualidades, estimo-os e
merecem tudo. Mas sofro com o desacordo do meu espírito em relação a
eles. Prefiro o silêncio, esperando que este resulte mais eloquente e
eficaz para a sua educação. Não será isto debilidade?”
Seria
longo explicar a razão de João XXIII ter surgido como uma espantosa
surpresa para a Igreja e para o mundo: como foi possível, depois de Pio
XII e de todos as condenações desde o séc. XIX, começar a dar a palavra a
toda a Igreja, convocando o Vaticano II, aberto às outras Igrejas
cristãs, às outras religiões, a todos os seres humanos de boa vontade?
Apesar de todos os esforços para abafar essa revolução e para o
esquecer, hoje, muitos se alegram e outros perguntam: afinal quem foi
ele?
João Paulo II, quem o esqueceu? Para vergonha de todos temos o cardeal Bertone.
in Público, 27.04.2014
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