Frei Bento Domingues,
O.P.
1. A celebração litúrgica de Cristo
Rei foi instituída por Pio XI, em 1925, com as monarquias em crise e as
repúblicas em conflito com a Igreja Católica. Tornou-se, depois, a coroa do ano
litúrgico que recomeça com o Advento, ritmando o infindável acontecer da graça
divina – simbolizado na Liturgia - que atinge todos os tempos e lugares, como
fonte de libertação das nossas servidões mentais e afectivas, antigas ou novas,
materiais, culturais ou religiosas. Sem um programa libertário, o ciclo
litúrgico anual dará a ideia do eterno retorno do mesmo.
Quem, por outro lado, desejar conhecer a
história do Santuário Nacional de Cristo Rei, elevado, em Almada, a 113 metros
acima do Tejo, pode recorrer às informações do Google. Mas com ou sem esse
facilitador, abandone os preconceitos e suba ao miradouro mais abrangente sobre
a deslumbrante e inesgotável beleza de Lisboa. Regale os olhos e medite no que
o tempo faz às cidades e à nossa vida, entre a ruina e o contínuo renascer. Com
passaportes dourados ou não, não deixemos privatizar as cidades de milenares gerações
de povos e culturas. Que as mil formas de criatividade as tornem cada vez mais
acolhedoras.
A simbólica bíblica de “Cristo Rei” implica a luta
contra miragens de grandeza efêmera das dominações imperiais e a redescoberta
de uma cidadania de acolhimento e serviço de todos, a começar pelos mais pobres,
os sobrantes e descartáveis, na
linguagem do Papa Francisco.
2. A escolha dos textos da liturgia deste Domingo é particularmente
sugestiva [1] ao centrar-se no final do
cap. 25 do Evangelho de S. Mateus, composto por três parábolas, que podem ser
lidas em separado. Eu prefiro juntá-las num quadro de oposições paradoxais.
A primeira, muito vizinha da fábula da cigarra
e da formiga – a das virgens loucas e das prudentes – retrata um mundo no qual
ninguém dá nada a ninguém e a ocasião perdida é irrecuperável. A solidariedade favorece
a imprevidência.
A segunda, a parábola dos talentos, parece
consagrar a roda da sorte e das desigualdades na distribuição das oportunidades
sociais. Quem muito tem, e esperteza, terá cada vez mais; quem tem pouco e
calcula com medo de perder, até o pouco que lhe saiu, na arbitrária roleta da sorte,
lhe será tirado.
Moral da história: este mundo é das grandes empresas
e dos bons gestores. Com os pequenos não adianta perder tempo; falta-lhes
habilidade para sair da cepa torta.
Estas duas parábolas deixam os actores sociais
à sua inteira liberdade e premeiam os mais aptos, como manda a lei da selecção
natural. Não se entende como é que S. Mateus as deixou entrar no seu Evangelho.
Não rimam nada com a mensagem de Cristo. Ao reagir assim, esquecemos a terceira
parábola. Parece uma carta fora do baralho e, no entanto, é a que leva a
tribunal as duas anteriores. Nessas combate-se a imprevidência e o
desaproveitamento dos recursos e das capacidades de os fazer render. Parecem
mais perto do capitalismo selvagem do que do Estado Social. De facto, falam de
outra coisa, daquilo que o Papa Francisco não se cansa de lembrar: os sobrantes, os descartáveis. Estes não
serão seres humanos? Não serão nossos irmãos?
É precisamente destes que trata a terceira e a
mais solene das parábolas: o Senhor da História universal chama a contas o
mundo inteiro. O que divide ou separa as pessoas e as julga é a atitude concreta
que tiveram ou têm em relação àqueles que nada podem fazer por si mesmos.
A radicalidade religiosa da parábola e o
último teste do sentido da vida, presente no desenrolar do mundo, espanta tanto
os que procedem bem como os que procedem mal. Na hora da sentença, o juíz desta
parábola identifica-se com aqueles que foram socorridos ou esquecidos: tive
fome e deste-me de comer (ou não), estive doente e foste visitar-me (ou não) …
Ninguém se apercebeu que, no dia-a-dia, no
serviço que prestou ou não, estava a tocar no que há de mais Absoluto, estava a
servir ou a trair o próprio Deus. A causa de Deus e a causa do ser humano é a
mesma. O segundo mandamento não se distingue do primeiro, um nunca anda sem o
outro, haja ou não consciência disso.
Que rei é este que esvazia a solenidade divina
e exalta a condição humana?
3. Conhecidos jornalistas alemães [2] do âmbito económico, não
encontraram nenhuma alegria na Exortação Apostólica, Evangellii Gaudium, do Papa Francisco. Submeteram-na a fortes
críticas e atribuem-lhe uma grande animosidade contra a economia de mercado e o
capitalismo. Se Bergoglio quer diálogo é preciso contradizê-lo. O conjunto
desses textos tenta arrasar as observações que o Papa faz sobre economia que
mata e os remédios que aponta para combater a pobreza.
Pode ser que tenham razão, mas lembrei-me do
Evangelho que inspira o novo Papa, mas que não beneficia muito os que o atacam:
Ninguém pode servir a dois senhores. Com
efeito, ou odiará um e amará outro ou se apegará a um e desprezará a outro. Não
podeis servir a Deus e ao Dinheiro. Os fariseus, amigos do dinheiro, ouviam
tudo isso e zombavam dele. (Lc 16, 13-14)
Público, 23.11.2014
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