Frei Bento Domingues, O. P.
1. Voltaram, há dias, a interrogar-me, em tom de exame e desafio: se
existe um só Deus – segundo o credo monoteísta – porque não se unem numa mesma
religião judeus, cristãos e muçulmanos? Presume-se que Deus não possa estar em
concorrência consigo mesmo.
Como qualquer cristão, tenho de estar pronto a
dar razão da minha esperança, com mansidão e sem arrogância, como recomendou S.
Pedro (1Pr 3,15), mas não estou obrigado a ser ingénuo. A pergunta não abriga
apenas pouca informação acerca da longa história dos chamados monoteísmos.
Recomendo, no entanto, La bibliotheque de
Dieu: Coran Evangile, Torah [1].
É uma biblioteca escrita e comentada por humanos durante muitos séculos. Nem
sempre tem ajudado a pensar e a viver a aventura humana com esperança. A sua
leitura fundamentalista foi e continua a ser usada, com demasiada frequência,
para matar em nome de Deus. A teologia do
diabo exige o recurso permanente ao poder económico, político e religioso
(Lc.4,1-13). Os seres humanos sabem que sem poder bélico e o seu comércio, as
guerras perderiam o encanto das conquistas.
Dito isto, parece-me um abuso responsabilizar
a divindade pelas configurações sociais das religiões, mesmo quando algumas
gostem de exibir essa pretensão. Deus não é hindu, judeu, budista, cristão,
maometano, baha’i, etc.. Se fosse Ele a ditar os escritos fundadores dessas
religiões estaria, de facto, em concorrência consigo mesmo.
As explicações sobre a origem da religião
estão confrontadas com um facto evidente: tanto o sentimento religioso como as
suas múltiplas expressões têm um passado e um presente nos diversos povos e
culturas. Podemos estudar as suas metamorfoses, recomposições e migrações, com
ritmos diferentes de continente para continente, de país para país e mesmo
dentro da mesma área cultural. Apesar de todos os fluxos de ateísmo,
agnosticismo e indiferença religiosa, as previsões do seu apagamento definitivo
estão cansadas.
Aquelas religiões que pretendem fundar-se em
revelações divinas - e procuram justificá-las a partir dos seus textos
fundadores - não têm a vida mais facilitada do que aquelas que as reduzem a
fenómenos humanos de relação com o Transcendente. Os dois caminhos não se
excluem.
2. Os seres humanos vivem no labirinto dos desejos, conscientes ou
inconscientes, confrontados com enigmas e mistérios quer da natureza quer da
sociedade. Como não se resignam à simplicidade de animais domesticados, têm de
procurar o sentido e as formas culturais de viver como humanos, isto é, com
dignidade e em instituições justas. A atitude religiosa desenvolve-se numa
atmosfera de atenção “à importância misteriosa de existir” (F. Pessoa) e à
necessidade de ter um eixo no qual tudo se religa.
O
pluralismo religioso é irredutível, mas se uma religião tiver a pretensão de
ser a única verdadeira, divinamente garantida e que fora dela não há salvação,
ficam todas sob ameaça ideológica de perseguição religiosa. Consentir na liberdade religiosa seria dar espaço ao erro e à sua nefasta difusão. O
raciocínio é simples: apenas a verdade tem direitos; a nossa religião é a única
verdadeira; as outras vivem e fazem viver no erro, logo não têm direito a
existir.
Na Igreja Católica também se alimentou essa
posição assassina ao ignorar que só as pessoas são sujeito de direitos. A
Declaração “Dignitatis Humanae” sobre a liberdade religiosa só foi assinada,
depois de várias formulações, no dia 7 de Dezembro de 1965, isto é, na conclusão
do Concílio Vaticano II! Hoje, é a nossa glória e uma responsabilidade: fora do diálogo inter-religioso não há
salvação.
Diálogo não pode ser um faz de conta. É um
processo no qual os parceiros vão mudando, passando da hostilidade e da
indiferença à mútua hospitalidade. Para derrubar as muralhas construídas ao
longo dos séculos e construir pontes entre as religiões é preciso destruir os
muros edificados nas mentalidades e nos afectos dos crentes.
3. Paulo VI, na mensagem de Paz para 1971, não podia ser mais incisivo – repete,
com uma voz nova que sai da nossa consciência civil, a declaração dos direitos
humanos: “todos os homens nascem livres e iguais na dignidade e nos direitos,
são todos dotados de razão e de consciência e devem comportar-se, uns com os
outros, como irmãos”. A doutrina da
civilização chegou até aqui. Não voltemos para trás.
Esta declaração generosa dos Estados, depois
de duas guerras estúpidas e monstruosas, ainda não era a voz de todos os povos,
mas era o eco do Evangelho: “Vós sois todos irmãos” (Mt 23,8) e com o método de
aplicação da regra de oiro: “faz aos
outros o que gostarias que os outros te fizessem” (Mt 7, 12).
Se a doutrina da civilização chegou até aqui,
como afirma Paulo VI, voltar atrás não seria regressar à barbárie?
Público, 16.11.2014
Eu tenho algumas questões:
ResponderEliminar1. Sendo a verdade por natureza exclusiva, e afirmando Jesus que Ele é a verdade ("Disse-lhe Jesus: Eu sou o caminho, e a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim - Jo 14:6), não devemos nós como Cristãos afirmar isto? Não querendo isto necessariamente dizer que não há Salvação possível para aqueles que não são Cristãos, pois lemos na epistola aos Romanos: "pois [os não evangelizados] mostram que as exigências da Lei estão gravadas em seu coração. Disso dão testemunho também a sua consciência e os pensamentos deles, ora acusando-os, ora defendendo-os.) Isso tudo se verá no dia em que Deus julgar os segredos dos homens, mediante Jesus Cristo, conforme o declara o meu evangelho." (Rm 2:15-16). Embora seja verdade que devamos facilitar o diálogo religioso, devemos nós tornar-nos pluralistas?
2. Não compreendo o que quer dizer com "Deus não é hindu, judeu, budista, cristão, maometano, baha’i, etc.. Se fosse Ele a ditar os escritos fundadores dessas religiões estaria, de facto, em concorrência consigo mesmo.". Não acreditamos nós, Cristãos, que Deus inspirou os escritos da Bíblia e estes são a sua Palavra?
Julgo que os próprios documentos do Concílio conseguem ver validade em textos religiosos não cristãos.
ResponderEliminarConcordo que há elementos de verdade nos textos não Cristãos, no entanto há certos pontos que não podem ser tratados com uma indiferença pluralista como se tivessem o mesmo grau de verdade, até porque isso é impossível: os muçulmanos defendem que Deus não é uma Trindade, enquanto nós defendemos que é e apenas uma destas afirmações pode ser verdadeira sendo a outra necessariamente falsa.
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