27 dezembro 2015

Será a Bíblia blasfema?

Frei Bento Domingues, O.P.

1. Quando se tenta explicar a violência das religiões ou contra as religiões resvala-se facilmente para a justificação do crime.

Nos últimos tempos, repetem-me: o Papa Francisco considera o terrorismo, em nome de Deus, como uma blasfémia, mas, nesse caso, o Antigo Testamento (AT) não é também ele blasfemo?

O exegeta, Armindo Vaz [1], referindo-se a Dt 20,10-18 [2], apresenta Moisés a falar a Israel deste modo:


Quando te aproximares duma cidade para combater contra ela…, Iavé teu Deus a entregará nas tuas mãos e passarás a fio de espada todos os seus varões, as mulheres, as crianças, o gado; tudo o que houver na cidade, todos os seus despojos, o hás-de tomar como espólio…Quanto às cidades destes povos que Iavé teu Deus te dá em herança não deixarás nada com vida; consagrá-los-á ao extermínio: hititas, amorreus, cananeus, ferisitas, hivitas e jebuseus, como te mandou Iavé, teu Deus, para que não vos ensinem a imitar todas essas abominações que eles faziam em honra dos seus deuses: pecaríeis contra Iavé vosso Deus.
As explicações históricas do autor são importantes, mas insuficientes.

2. Encontrei, num estudo de Francolino Gonçalves [3], da Escola Bíblica de Jerusalém e membro da Comissão Bíblica Pontifícia, algo diferente. O uso que farei da sua hipótese só me responsabiliza a mim. Passo a transcrever apenas algumas passagens do seu longo texto.

Começa pela opinião comum: “desde há cerca de três quartos de século que o iaveísmo teve como matriz e, durante muito tempo, como único horizonte Israel ou, melhor dito, as relações entre Iavé e Israel. Nesta perspectiva, a eleição de Israel, a sua libertação do Egipto e a aliança que Iavé fez com ele, são os artigos fundamentais da fé iaveísta. Por influência das religiões estrangeiras, em particular da religião cananeia, o iaveísmo ter-se-ia voltado também para o mundo no seu conjunto e teria visto nele a obra de Iavé. No entanto, só teria assimilado plenamente a fé na obra criadora de Iavé, a partir de cerca de meados do séc. VI a.C., sendo Is 40-55 [4], o escrito sacerdotal e vários salmos testemunhos e resultados deste processo de assimilação. Dito isso, a fé na obra criadora de Iavé, que tem por quadro e horizonte o cosmos e a humanidade, teria ficado sempre subordinada à fé na sua obra salvífica, que tem por quadro e horizonte a história das relações entre Iavé e Israel.

“A opinião comum teve a sua formulação clássica na Teologia do Antigo Testamento de von Rad, o estudo do género que maior influência exerceu durante o último meio século. A própria Constituição dogmática Dei Verbum do Concilio Vaticano II (1965) deve muito à Teologia do luterano von Rad.

“A primazia absoluta que se atribui à ideia de história da salvação de Israel, a expensas da solicitude de Deus para com toda a criação, foi alvo de contestações mais ou menos radicais. Os seus autores baseiam-se geralmente numa maior atenção prestada aos escritos sapienciais mais antigos, que a opinião corrente não tem em conta. (…) O AT contém assim duas representações diferentes de Iavé. Segundo uma, ele é o Deus criador que abençoa todos os seres vivos; segundo a outra, ele é o Deus que está ligado a Israel, o seu povo, a quem protege e salva.

“Os exegetas não prestaram a estas vozes discordantes a atenção que mereciam. A esmagadora maioria parece nem as ter ouvido. Por isso, ficaram sem eco, não tendo chegado ao conhecimento dos teólogos, dos pastores nem, por maioria de razão, ao público cristão.

 “As minhas pesquisas nesta matéria confirmaram, essencialmente, o resultado dos estudos que referi e, além disso, levaram-me a propor uma hipótese de interpretação do conjunto dos fenómenos religiosos do AT que é nova. A meu ver, o AT documenta a existência de dois sistemas iaveístas diferentes: um fundamenta-se no mito da criação e o outro na história da relação de Iavé com Israel. Simplificando, poderia chamar-se iaveísmo cósmico ao primeiro e iaveísmo histórico ao segundo. Contrariamente à opinião comum, a fé na criação não é um elemento recente, mas constitui a vaga de fundo do universo religioso do AT.”

3. Até aqui, dei a palavra a Francolino Gonçalves. Sem a leitura atenta do seu longo estudo, será difícil apreender o alcance da sua descoberta. Eu tiro a minha conclusão: o iaveísmo histórico veicula uma teologia nacionalista, por vezes, de uma extrema violência. Coloca na boca de Deus os interesses de um povo contra os outros povos. Este nacionalismo religioso blasfema. 

Público, 27. 12. 2015
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[1] A imagem de Deus violento na Bíblia, em Religiões. Identidade e Violência. UCP, 2003, p. 187.
[2] Deuteronómio
[3] Iavé, Deus de justiça e de bênção, Deus de amor e de salvação em Cadernos ISTA, nº 22 (2009), p. 107-152, especialmente p. 114-115.
[4] Livro do profeta Isaías


21 dezembro 2015

O crente e o não-crente para quem "Jesus sabe bem"

Entrevista

Carlos Vaz Marques  (Texto) e  Nuno Ferreira Santos  (Fotografia) 



Público
20/12/2015

O escritor Frederico Lourenço, fascinado pelo texto bíblico, tem dificuldade em aceitá-lo como texto sagrado. Levámo-lo ao encontro de um religioso conhecido pela sua heterodoxia. Há um aspecto em que Frei Domingues e Frederico Lourenço estão de acordo: Jesus “sabe sempre bem".

Sabe bem entrar na pequena sala do Convento de São Domingos, onde havemos de ficar a conversar longamente. O anfitrião, Frei Bento Domingues, deixou previamente ligado um aquecedor que nos reconforta, depois da ventania do Alto dos Moinhos. Antes disso, foi cicerone pelos espaços do convento, onde vivem cerca de três dezenas de religiosos. Em cima da mesa, entre papelada diversa, está um exemplar de O Livro Aberto — Leituras da Bíblia (edição Cotovia), a publicação mais recente de Frederico Lourenço. Aos 52 anos, o escritor define-se como um ex-católico, à procura de uma conciliação entre o pensamento racional e a figura de Jesus. A doutrina da Igreja acerca da homossexualidade não é alheia, evidentemente, a esse corte com a prática religiosa, sendo Frederico Lourenço um gay assumido. Mas há outras dúvidas e inquietações de que dá testemunho no livro que serve de pretexto a este encontro. Frei Bento já o tinha lido quando lhe liguei desafiando-o para a conversa com o escritor. Entre concordâncias e discordâncias, salta à vista o mesmo entusiasmo pelo texto bíblico de dois leitores da Bíblia separados pela questão da fé.

Ao lerem a Bíblia, lêem ambos o mesmo livro ou a fé, que um tem e o outro não, altera substancialmente a leitura?
Frederico Lourenço — A fé pode alterar, naturalmente, o olhar sobre o livro. Se tivermos fé, e sobretudo se estivermos a ler o livro de acordo com a crença e a prática de uma qualquer modalidade do cristianismo — pode ser católica, luterana, protestante —, estamos condicionados para ver um sentido que, se não tivermos fé, não somos obrigados a ver.

Frei Bento Domingues — O que é importante, antes de mais, é o facto de a Bíblia ser a biblioteca de um povo: de épocas muito diferentes, com géneros literários e problemáticas também muito diferentes.

Na verdade são duas bibliotecas: o Antigo Testamento e o Novo Testamento.
F.B.D. — Sim. Os cristãos depois integraram-na, fazendo a sua interpretação a partir de Jesus. Releram o Antigo Testamento em função desse acontecimento. Por isso é que muitas vezes aquilo é artificial. Depois do acontecimento lêem para trás. Não é que antes já previssem Jesus, depois do acontecimento é que já vêem lá tudo.

F.L. — Pessoas como o Frei Bento já estudam estes assuntos há muitos anos. Dar-se-ão conta de que muitas das coisas que pergunto no meu livro são perguntas feitas já desde o século XVIII. Até desde antes disso. São interrogações que vale sempre a pena voltar a colocar porque estamos agora numa altura em que, sobretudo noutras vertentes do cristianismo que não o catolicismo, se está a derivar para uma crença fundamentalista, voltando a interpretar à letra tudo o que está na Bíblia, como se fosse a palavra infalível de Deus.

Esta questão da literalidade na leitura é relevante.
F.B.D. — É importante, sim. A exegese histórico-crítica da Bíblia começou em grande parte no mundo protestante. Foi levantada por um padre francês mas abafada, e depois reapareceu a partir dos séculos XVIII, XIX. Recordo-me que o meu professor de Antigo Testamento, em Salamanca, nos dizia sempre: “Quando virem números na Bíblia, tirem sempre dois zeros. Pode-se provar que nem sequer havia naquela povoação tanta gente.” Era uma leitura extremamente crítica e que tinha dois efeitos: vacinava uns contra todos esses fundamentalismos, mas encrespava outros: “Então e a nossa teologia, todos os argumentos que temos?” Dizia ele assim: “Já ensinei toda a vossa filosofia a um papagaio; vós repetis mas isso nada tem a ver com o que se passa na Bíblia.” Quanto ao Frederico, há uma tarefa lindíssima a que poderia dedicar-se: seria a tradução da Bíblia dos Setenta, que foi escrita em grego.

F.L. — Ando a pensar nisso. Já recebi vários incentivos.

F.B.D. — Ainda bem. Aquilo que aparece no seu livro são coisas já muito debatidas, embora sejam conhecidas sobretudo pelos especialistas. Quanto ao resto das pessoas, ainda ouvem as leituras da Bíblia num clima, não digo de fé ou não fé, mas mais piedoso ou menos piedoso. Quando as pessoas falam de fé incluem nisso certas crendices e uma atitude interior em que encontram, na adesão ao mistério do mundo, ao mistério da vida, ao mistério de Deus, aquilo a que chamam “sagrado”. Descobrem aí uma expansão da vida.

F.L. — São dois os problemas que identifico na leitura da Bíblia, os meus dois grandes problemas como leitor da Bíblia. Um deles é que discordo racionalmente da exegese que se faz, sobretudo do Antigo Testamento, por cristãos e católicos. Em particular, a ideia de que o que temos de fazer é aprender a ler a Bíblia, conseguindo ver no texto o que não está lá. A minha tese é que nenhum dos autores dos 70 livros que compõem aquilo a que chamamos a Bíblia, nenhum, escreveu com o intuito de que nós lêssemos nas palavras deles outra coisa que não as palavras que foram escritas.

Poderá é haver chaves de leitura que hoje é preciso conhecer.
F.L. — Sim, todas as chaves são possíveis. E haverá um milhão de chaves. Mas a minha leitura leva-me à crença de que isso é assim mesmo nos livros proféticos. Dou o exemplo de Ezequiel, que é lido de forma totalmente alegórica, metafórica. Ele escreveu tudo o que escreveu para ser lido exactamente com o sentido que as palavras têm.

O que é importante, antes de mais, é o facto de a Bíblia ser a biblioteca de um povo: de épocas muito diferentes, com géneros literários e problemáticas também muito diferentes
Frei Bento Domingues

F.B.D. — Uma coisa é ler o texto, outra coisa é a hermenêutica do texto, que tem sempre muitos pressupostos filosóficos, literários. A grande dificuldade que sempre tive é com o insuportável da violência na Bíblia. Um Deus que manda matar, que se mate ele, não o aturo! E as pessoas diziam: “Mas isso está revelado.” Revelado por quem? O Francolino Gonçalves, um confrade meu, que está na Escola Bíblica de Jerusalém há 45 anos, foi fazer uma análise dos diferentes javeísmos que havia na Bíblia, as diferentes formas de dizer Deus. São muitos, mas ele distingue dois tipos. Um, o sapiencial: “Criou o Céu e a Terra.” Aqui a palavra “criou” não tem o sentido de Darwin, nem o nosso sentido metafísico: é a organização do caos. Os textos tipicamente sapienciais são universalistas. E depois, a partir da saída do Egipto, há os textos patrióticos, que põem na boca de Deus aquilo que lhes interessa a eles. Deus tem de dar porrada nos nossos inimigos. Tem de estar do nosso lado. Somos capazes de pôr Deus ao serviço dos nossos crimes. Aquilo que consideramos supremo, rebaixamo-lo a instrumento das nossas políticas, das nossas intenções.

Isso é válido também para um livro como o Livro de Job?
F.B.D. — O Livro de Job é um livro da sabedoria.

F.L. — Penso que o Deus que está implícito no Livro de Job não é muito melhor do que este que acabou de ser referido, o daqueles livros históricos mais sanguinários. Como leitor do Livro de Job, não fico muito enaltecido com a imagem de Deus que transparece nele.

F.B.D. — O Livro de Job tem várias políticas internas. Tem vários autores. Tomás de Aquino, ao ler esse livro, perguntou: “Mas pode-se discutir com Deus?” Pode, se se tem razão. E Job tinha razão, podia discutir com Deus.

Pode ler-se a Bíblia apenas em termos estritamente literários?
F.L. — A Bíblia interessa-me, claro, enquanto texto literário. Como leitor. Mas não é essa a vertente que mais me interessa, sendo alguém que tenta reflectir um pouco sobre o texto bíblico. Não nego de forma alguma a força e a qualidade literária da Bíblia. São textos magníficos, todos eles. Uns mais do que outros, claro. Mas a minha abordagem à Bíblia não é essa. A minha abordagem tem mais a ver com a tentativa de conciliar racionalmente as dúvidas que ela me levanta, como alguém que se interessa profundamente pela religião, pelo cristianismo e pelo texto bíblico, desde sempre. Tento equacionar em que consistem as dúvidas que me impedem de me afirmar como cristão, ou crente, a cem por cento. Outro problema é o da lente transfiguradora através da qual a vida de Jesus é narrada nos quatro evangelhos. Sempre como prova de que as profecias estavam a ser cumpridas em tudo o que Jesus fez e não fez. Quando começamos a olhar mais aprofundadamente para essa relação — entre aquilo que foi a vida de Jesus e aquilo que os evangelistas narram —, somos constantemente levados a perguntar: este facto que está aqui a ser narrado é ou não verdadeiro? Há, constantemente, um véu entre aquilo que verdadeiramente aconteceu, que eu gostaria de saber o que foi, e a minha leitura. Esse véu é a interposição do texto do Antigo Testamento, que está a criar constantemente uma barreira entre a vida de Jesus e nós, que estamos a tentar compreender o que foi a vida de Jesus. Isso impede-nos de saber o que realmente se passou.

É por isso que o seu evangelho preferido é o de João, por sentir que é o que está mais próximo dos factos?
F.L. — João também tem esse problema. É um texto magnífico.

F.B.D. — Em relação a João, as últimas investigações são muito engraçadas: são três “Joões”. O texto passou por três fases e hoje, como se faz análise histórico-crítica, é como na Arqueologia: uma camada, depois outra…

F.L. — Tenho problemas com isso. Tinham de ser três “Joões” muito bem combinados entre si. Justamente por ser tão estilisticamente unitário.

F.B.D. — Há um aspecto importante: Jesus não escreveu nada. Então, o que temos? Sei que as outras pessoas não vão por aí mas isso não me interessa, o nosso primeiro direito é o de pensar livremente. Os textos são muito posteriores ao que aconteceu. O que me impressiona é que — apesar de enfoques distintos nas diferentes comunidades, porque surgiram grupos muito diferentes em sítios muito diferentes — todos me falam de alguém que me sabe sempre bem.

F.L. — Ah, sim.

Consigo sentir que eu, pessoalmente, Frederico Maria, sou amado por Deus. Isso consigo. E até me interrogo porquê. Mas olhando para o mundo à nossa volta, não vejo de modo algum o Deus do amor. Acho que ele foi mesmo para o desemprego
Frederico Lourenço

F.B.D. — Depois, uma coisa a que ninguém liga nada e que é a minha iluminação. No Evangelho de Lucas há uma passagem, no capítulo dez, que me faz rir sempre que a leio. Apresenta as coisas com os 12 apóstolos. Também é um número simbólico como nas 12 tribos de Israel. Mas ele achou que só com 12 não iam muito longe. Então inventa um envio de discípulos, uns 70. Quando voltam, a situação que narra é como a dos adolescentes quando vão para um campo de férias. Ao voltarem a casa, contam tudo aos pais; contam, contam, contam. Também eles vieram ter com Jesus e disseram-lhe: “Foi fantástico!” Contaram-lhe tudo o que tinha acontecido. E Jesus: “De facto correu mesmo bem, sim senhor.” Depois diz isto, que é o coração da minha fé, aquilo que me ilumina interiormente: “Mas cuidado, alegrai-vos sobretudo porque os vossos nomes estão inscritos nos Céus.” A palavra “céus” era um substituto de Javé, de Adonai, um substituto de Deus. “Alegrai-vos porque a vossa vida está inscrita no coração de Deus.” E depois, acrescenta o texto: “E ele naquele momento comoveu-se com o que disse.” Comoveu-se! Séculos e séculos andaram a querer ouvir isto e não ouviram, a querer ver isto e não viram. Costumo dizer que se Deus é amor e se não nos ama vai para o desemprego.

F.L. — Acho isso muito bonito. Acho lindo. Mas pessoalmente não consigo senti-lo de uma forma racional. Consigo sentir que eu, pessoalmente, Frederico Maria, sou amado por Deus. Isso consigo. E até me interrogo porquê. Mas olhando de forma completamente fria e objectiva para o mundo à nossa volta, não vejo de modo algum o Deus do amor. Acho que ele foi mesmo para o desemprego. Não está a amar as pessoas.

F.B.D. — O Frederico está como aquele rabino que, quando lhe disseram que veio o Messias, foi à janela e concluiu que não havia prova nenhuma de que ele tivesse chegado. É de facto o mundo que temos. Mas quando se coloca o problema da racionalidade, devo dizer que ainda não percebi bem o que é a razão. O Immanuel Kant diz algo que me ajuda: a nossa razão tem a capacidade de levantar problemas que não sabe resolver. É da própria natureza da nossa razão levantar permanentemente problemas.

F.L. — A grande vantagem da filosofia em relação à teologia e à catequese é que a filosofia nos ensina a pensar criticamente. Penso que isso é uma grande dádiva que já vem desde os gregos. Acho que devemos pensar criticamente. Deus, existindo ou não, mesmo que exista não quer que abdiquemos da capacidade de pensar criticamente e que deixemos de aplicar o pensamento crítico a tudo o que nos ocorre na vida. Temos de exercer o pensamento crítico, que é necessariamente diferente de pessoa para pessoa, não pode ser sempre coincidente. Esse é o grande problema de uma religião como a religião católica: querer conciliar biliões de seres humanos, levando-os a pensar mais ou menos a mesma coisa, a ter um pensamento que vai sempre desaguar numa conclusão já pré-determinada. Esse é o meu problema em relação à abordagem teológica, à Bíblia no geral. Estou a falar mais no Novo Testamento, e concretamente nos evangelhos, que é aquilo que mais me interessa. A discussão está viciada à partida porque a conclusão já está pré-determinada. A conclusão tem de ser consentânea com a doutrina católica.

F.B.D. — Há aí um problema importante. Creio que, na Igreja Católica, se não tivesse havido o Concílio Vaticano II, estaríamos como estão agora muitos muçulmanos em relação ao Corão. Também se interpretava tudo como um ditado divino. Na Igreja Católica, durante muito tempo, também se fazia dos textos do Antigo Testamento uma emanação divina. Isso punha-me sempre o problema: o que fizeram ali os escritores, porque é que aquilo não saiu tudo certo? No Vaticano II, quando o Papa João XXIII diz que estava a fazer a barba e se lembrou de convocar um concílio, havia na Igreja muitas tendências, muitos grupos, mas havia um Santo Ofício que vigiava, que condenava. E antes tinha havido a Inquisição, que queimava. O que se passou no Vaticano II foi que, desde o primeiro momento, se começou a discutir um documento que só foi aprovado um dia antes da conclusão do Concílio. Era o documento sobre a liberdade religiosa, sobre a liberdade de consciência. Aquilo que o Frederico diz, é verdade: há um catálogo de dogmas, se és católico tens de acreditar, isto está definido. Rio-me sempre disso. Quem é que soube que aquilo é que era a verdade? Foi por catálogo. Escrevi, em 1956, numa revista de estudantes católicos, por aí, que se deviam fechar todas as faculdades de Teologia, acabar com todas as leituras da Bíblia, e ter uma central telefónica (naquela altura, ainda só havia telefones). Os telefonemas eram atendidos em Roma e perguntava-se: “Como é isto?” E de lá respondiam [risos]. Era uma poupança. As pessoas escusavam de se preocupar, era só ligar. Isto é uma imagem do absurdo das posições absolutistas. Foi essa a luta de todo o século XX. Uma luta muito difícil mas que culminou nisto da liberdade religiosa.

O Frederico sente esta abertura ou ainda vê zonas de dogma?
F.L. — Com todo o apreço, o que acho muitas vezes das pessoas da Igreja Católica, dos teólogos, mesmo aqueles que têm fama de progressistas, é que essa atitude alegadamente progressista o é muito pouco. Tenho andado a ler, por curiosidade, alguns escritos daquele teólogo muito controverso, o enfant terrible da teologia, Hans Küng, e estou muito desiludido com essa leitura. Ele não é nada revolucionário naquilo que escreve. É completamente acomodatício em relação a praticamente tudo o que esperaríamos de um homem tão anatematizado.

F.B.D. — Tem razão nisso. Mas a questão que o Frederico põe só pode ser resolvida por cada um. Não há ninguém que possa pensar por nós, nem nós podemos servir-nos da autoridade deste ou daquele teólogo. Há pessoas com quem concordo mais, outras com quem concordo menos, e outras com quem não concordo nada. Tenho de estabelecer o meu itinerário.

Nalguns casos, esse itinerário faz com que as pessoas acabem por perceber que o seu caminho não coincide com o mapa da Igreja Católica.
F.B.D. — Muitas pessoas dizem: “Tens todo o direito de pensar isto ou aquilo mas, se achas isso, devias abandonar a Igreja.” Abandonar o quê? A Igreja de quem é? É tão minha como dos outros. O problema é quando me perguntam: “O que é que fazes pela Igreja?” Eu sou da Igreja. Agora, se me dizem que há um regime militar que diz o que se deve querer e o que se deve fazer, digo a quem pensa assim que cumpra isso, eu não. No seu livro, Frederico, há coisas admiráveis a este respeito. Em tudo o que se diz nos textos do Novo Testamento da arte de ser de Jesus, das formas mais desencontradas, encontro a alegria da vida. Porque ele não quis morrer. Depois puseram lá que ele quis morrer. Não. Ele quis não trair, que é completamente diferente. Ele não quis a cruz, puseram-lha às costas. Ele podia pôr-se a andar.

F.L. — Mas ele quis a cruz, quis esse desfecho.

F.B.D. — Não, não.

F.L. — “Para que se cumpra o que estava escrito.”

Aquilo que Jesus é, ?é para todos os tempos e lugares. Cheira-me que por aqui passa Deus, passa o ser humano e passa a vida e passa a alegria
Frei Bento Domingues

F.B.D. — Mas isso é o que há bocado estivemos a dizer: foi uma forma de harmonizar, dizendo que estava tudo previsto.

É o tal véu de palavras em que não se sabe o que é facto e o que é construção posterior.

F.B.D. — Há coisas muito engraçadas. Quando o vão acusar de trabalhar ao sábado, por exemplo. O sábado estava proibido, era o dia mais santificado. Até imaginaram que o próprio Deus parou para não trabalhar ao sábado. Há uma narrativa sacerdotal da criação que põe Deus a descansar ao sétimo dia. Era uma forma de justificar aquela instituição — aliás, admirável — que  mostra que o ser humano não é só para trabalhar, também é para descansar. Só que, ao fazer do dia de descanso uma obrigação, transformaram-no num colete de forças. Não se podia fazer nada. Isso ainda acontece entre os fundamentalistas judaicos. Ora, Jesus diz: “Não é o ser humano para o sábado, é o sábado para o ser humano. Não é o homem para o sacrifício, os sacrifícios é que são para os seres humanos.” Creio, é a minha interpretação muito subjectiva, que Jesus não queria a cruz, nunca a quis. Ele até foi acusado foi de estar com os copos.

F.L. — Porque não jejuam, nem ele nem os discípulos. Ele responde: “Enquanto o noivo está cá, porque é que hão-de jejuar?”

F.B.D. — No Evangelho de Lucas dizem mesmo que ele é um beberrão e um glutão. Que não faz nada como João Baptista, que era um homem austero. Jesus está sempre à mesa com aqueles que são vistos como pecadores e marginais. Ele queria abrir um novo caminho, um caminho de liberdade, um caminho de felicidade para as pessoas. Por isso é que lhe chamavam evangélico; era um caminho de alegria, a boa nova. Ora, correu tudo mal. O que me parece é que ele, pelo testemunho que temos, na própria cruz transformou o seu Deus — “Senhor, porque me abandonaste?” — no Deus das vítimas.

F.L. — Ele só diz isso em dois evangelhos, nos outros dois não diz. Em João diz só: “Está cumprido.” Só diz isso em Mateus e em Marcos.

F.B.D. — Não, não diz, digo eu. Mas diz outra coisa: “Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que estão a fazer.”

F.L. — Isso só diz em Lucas.

F.B.D. — Só.

F.L. — E numa frase considerada inautêntica nas edições críticas. Os manuscritos mais antigos não têm isso. Ficamos com este problema. Queremos tanto que ele tenha dito essa frase.

F.B.D. — A minha resposta é esta, se não disse, devia ter dito [risos]. E as pessoas podem dizer que eu também estou a querer criar um evangelho, mas pelo que dizem os outros também tenho esse direito. Por aquilo que todos os outros textos bíblicos dizem, também posso fazer a minha configuração de Jesus.

Essa configuração não corre o risco de se tornar uma forma de religião à la carte?
F.B.D. — Não, é o contrário. À la carte é o que encontram sempre para resolver problemas particulares. Esse é o único problema do mundo. Os seres humanos são todos seres humanos.

F.L. — Eu estou numa fase em que ando à procura de uma atitude objectiva em relação à religião, de um modo geral, e, em particular, em relação à figura de Jesus Cristo. O que me interessa é tentar conciliar — enfim, sei que é a quadratura do círculo mas ainda não desisti, e não vou desistir tão depressa — o pensamento crítico, racional, objectivo (aplicando a toda esta questão as mesmas armas e as mesmas estratégias que aplicaríamos a qualquer problema filosófico), de modo a tentar uma compatibilização entre o pensamento racional e a relação com Jesus. Sem ter de invocar mil coisas misteriosas, e mil coisas que a mente humana não entende nem consegue alcançar. Pode ser que um dia me dê completamente por derrotado e aí tenho de optar: ou a fé cega ou o ateísmo. Mas ainda não estou nesse momento porque ainda não me dei por derrotado nessa tentativa de conciliar o pensamento racional com a vontade de me aproximar de Jesus. Fui crente, católico, durante muitos anos. Depois fui mais ou menos católico durante muitos anos. Depois passei a ser mais ou menos ex-católico, e agora estou numa fase em que duvido, de facto, por uma questão de coerência interior, que alguma vez volte a ser católico praticante. Não por nenhuma aversão à Igreja Católica.

Como é que se quebrou essa relação?
F.L. — Há muitas razões, muitas coisas que me dão a sensação de que aquilo que podemos saber de objectivo sobre Jesus, que no fundo são as informações que nos vêm do Novo Testamento, são coisas, muitas vezes incompatíveis com aquilo em que o cristianismo se transformou. Logo desde os primeiros séculos.

Houve uma perversão da mensagem original.
F.L. — Uma das coisas que Jesus diz é: “Vereis aqui quem são os meus discípulos pelo amor que têm uns pelos outros.” Isso é uma coisa que antes de Constantino já se via, os ódios de morte entre essas grandes figuras da Igreja: São Jerónimo odiava Santo Ambrósio... É todo um catálogo de discordâncias, de ódios, de rivalidades, de invejas.

E posteriormente de crimes.
F.L. — Quando a versão ortodoxa católica teve o apoio político, conseguiu, de facto, esmagar muitas heresias. Há aquela coisa muito típica do Concílio de Niceia, quando queimam os escritos do herético Máximo. No final do século V já estavam a queimar os escritos e os heréticos. Já não eram só os livros, era também quem os lia.

F.B.D. — Os perseguidos passaram a perseguidores.

F.L. — Isso é uma história que não é compatível com o Jesus que eu encontro, mesmo com esse véu que me impede de ver a pessoa real. Ainda assim consigo vislumbrá-la. Como diz o Frei Bento, e estou inteiramente de acordo: apesar de tudo, lendo os evangelhos, tudo o que se lê sobre Jesus sabe bem. Tudo tem um cunho extremamente convincente. Apesar de haver todas estas interrogações que se levantam. O mais problemático, para mim, é entender a vida deste homem e tudo o que aconteceu à volta dele como uma manta de retalhos de citações do Antigo Testamento.

F.B.D. — Isso não me causa problema nenhum.

Ainda não me dei por derrotado nessa tentativa de conciliar o pensamento racional com a vontade de me aproximar de Jesus
Frederico Lourenço

F.L. — Não? Ajude-me.

F.B.D. — Coisas que causam ao Frederico muita espécie, a mim dão-me muito riso. Está-se mesmo a ver que aquilo foi arranjado para calhar bem. Aquilo são querelas de família. O judaísmo do tempo de Jesus tinha muitas tendências e muitos grupos organizados. Meier tem um estudo em quatro volumes para dizer que Jesus era um judeu marginal. É demasiado esforço para uma coisa que parecia evidente. Mas para mim é o contrário: os fulanos eram formados no judaísmo, eram formados na sinagoga ou no templo com os mestres que havia. O que eles sabiam eram precisamente essas narrativas. Os autores — independentemente das dúvidas sobre quem escreveu o quê — estão entre judeus e têm de provar aos outros judeus que aquilo não é uma loucura, que até já estava previsto. É uma estratégia de texto. As pessoas podem dizer: “É uma aldrabice.”

É uma forma de legitimação?
F.B.D. — É uma forma de argumentação. São estratégias de texto, estratégias de pensamento. Se há um modelo de vida no Ocidente, é a arte de viver de Jesus. Fazendo uma espécie de apanhado de tudo o que foi escrito no Novo Testamento, parece-me que Jesus se sai bem no exame. Aquilo que Jesus é é para todos os tempos e lugares. Jesus, não sei, tem um quê de especial, um quê não sei quê. Cheira-me que por aqui passa Deus, passa o ser humano e passa a vida e passa a alegria.

F.L. — Com essas palavras concordo inteiramente.

F.B.D. — Agora, a questão que põe, a questão da razão, considero-a muito verosímil. Porquê? Nós somos seres racionais, sim, mas somos muito mais do que isso. Somos muito mais do que o que se pode apurar pela razão. Somos sentimentos, somos tanta coisa.

F.L. — Há bocadinho, o Carlos falou no perigo da religião à la carte, e lembrei-me daquela versão dos evangelhos feita pelo terceiro Presidente dos Estados Unidos, Thomas Jefferson, que pegou numa tesoura e numa navalha e cortou tudo o que eram milagres, tudo o que era contrário à razão. Deixou só o que podia ser racionalmente compreensível. Ainda é muita coisa. Chamou àquilo a Filosofia de Jesus Cristo. Mesmo reduzindo os evangelhos a essa expressão mínima, ainda vemos aquilo que o Frei Bento estava a dizer: há qualquer coisa de extraordinário em Jesus. Há ali qualquer coisa.

F.B.D. — O Eduardo Lourenço diz que gostaria de estar sobre o ombro de Jesus enquanto ele escrevia na areia, quando estavam a incriminar a mulher adúltera. Jesus levanta-se e diz: “Quem não tem pecados que atire a primeira pedra.” Há qualquer coisa na arte de ser de Jesus. Agora, o Papa fala de misericórdia. Ter o coração junto da miséria dos outros é mais importante do que saber como é que havemos de os culpar.

F.L. — Este exemplo que o Frei Bento acabou de citar também é um caso difícil, numa visão racional do Novo Testamento. Este episódio da mulher adúltera, que está no evangelho de João, só está lá, e não deve ter feito parte dele originalmente. É a única parte do evangelho de João que destoa estilisticamente. Os manuscritos mais antigos não têm esse episódio da mulher adúltera, embora depois tenha passado a ser considerado canónico pela Igreja Católica. Mas ao longo de toda a história da Igreja houve sempre muitos problemas em aceitar aquilo. Por isso, muitos manuscritos gregos, do século X, omitem totalmente esse episódio. Pura e simplesmente, não existiu. É inconveniente.

F.B.D. — Os escritores têm uma coisa boa; diz um: isto aqui ficava bem; depois vem outro: isto aqui fica mal, por causa das convicções. Agora, há uma coisa que lhe quero dizer: o seu pai [o poeta e filósofo M.S. Lourenço] escreveu um livro pelo qual tenho uma devoção especial, Os Degraus do Parnaso. Um dia antes de ele morrer, disse-lhe isso ao telefone. No momento em que ele escreveu pela segunda vez aquele livro, aquelas crónicas, disse que procurou um efeito estético, quis que aquilo fosse uma obra de arte. Eu creio que os evangelhos não tiveram esse intuito: de escrever uma obra de arte. Tiveram o intuito de escrever sobre alguém que é uma obra de arte.

F.L. — Concordo inteiramente.

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in Público, 20 de dezembro de 2015

20 dezembro 2015

Celebrar o Natal para quê?

Frei Bento Domingues, O.P.

1. Se Jesus existiu como realidade histórica – e raros são os que se atrevem a negar - é normal que tenha nascido. Quem reconhecer nele a condição humana no seu ponto mais belo, luminoso e humilhado, é justo que celebre este acontecimento.

As datas e os lugares elaborados para as festas, os cenários, as lendas e os mitos compostos pelas narrativas de S. Mateus e de S. Lucas (sem contar com os apócrifos) reflectem perspectivas teológicas e messiânicas diferentes. Nesses exercícios de antecipação para a infância da missão que apenas se manifestou na vida adulta de Jesus, os seus autores serviram-se dos materiais da cultura ambiente para reconfigurarem uma convicção: com Jesus, o evangelho da paz e da alegria de Deus incarnou na fragilidade humana. A salvação não está na fuga do mundo, mas na sua transformação, a partir das periferias mais condenadas. Como sempre, nas narrativas do Novo Testamento parece que tudo já estava previsto no Antigo, mas é sempre para introduzir o imprevisível.

Procurar em textos poéticos, lições positivistas de história, geografia ou biologia- “antes do parto, durante o parto e depois do parto” – apresenta-se como uma piedosa invenção para dizer que Jesus é sempre alguém completamente fora de série, na mais precária das situações. Os músicos, os poetas e os pintores da cultura popular e erudita não se enganaram quando deram asas à sua criatividade para fazer ouvir sons futuros de uma humanidade liberta.

Hoje, num clima cultural dominado pelo prestígio da ciência e da técnica, o recurso à crença em milagres, está reservado para os momentos de extrema aflição. Fazer de Deus um tapa buracos das insuficiências humanas é uma das formas mais frequentes de facilitar o caminho ao ateísmo. A fé na presença divina no nosso quotidiano tem itinerários muito diferentes de pessoa para pessoa. As receitas para cozinhar a vida espiritual tornam a comida sem graça. Como respiração da vida e iluminação da nossa noite só pode ser acolhida pelo silêncio intenso e acordada pela grande música: silêncio que cante e música que nos deixe sem palavras. A ponte para o divino exige a transfiguração do nosso olhar e da nossa escuta. A mediocridade é a receita fatal.                                                                                                              

2. Acreditar nos credos é uma idolatria. O dominicano S. Tomás de Aquino, um filósofo, um biblista, um teólogo e um poeta medieval, insistiu em algo essencial e libertador: o terminal do acto de fé não são os “artigos da fé” – estes são apenas mediações - mas a inabarcável realidade de Deus [1]. Para não se cair no fideísmo, a fé não pode saltar por cima da inteligência, nem renegar o seu exercício. Não pode haver assentimento à proposta da fé teologal sem ver nela uma perfeita expansão e superação da inteligência [2]. A simbólica da fé ou dá que pensar e transformar ou aliena. Quem se fixa no dedo que aponta o céu e a urgência da terra, perde o céu e a terra.

O exercício da razão é tão importante que o citado teólogo se atreveu a escrever o seguinte: embora acreditar em Cristo seja, por si mesmo, bom e necessário à salvação, pode, acidentalmente, transformar-se num mal: se alguém, em consciência, pensa que Ele é um mal, peca se o confessar como um bem [3]. No entanto, importa lembrar a paradoxal declaração de I. Kant, no prefácio à primeira edição da Crítica da Razão Pura: ”A razão humana tem este destino singular, num género dos seus conhecimentos, de ser dominada por questões que não pode evitar, pois são-lhe impostas pela sua própria natureza, mas às quais não pode responder porque ultrapassam totalmente o poder da razão humana” [4].  

3. Situar Jesus na lista das grandes personalidades do passado é uma questão de memória cultural e nenhuma se lhe pode comparar. Não deixou nada escrito, mas a sua própria existência é o mais belo e imortal poema de amor. Se há modelo de vida verdadeira, não é preciso ir mais longe, mas ninguém pode dizer que é o herdeiro exclusivo das suas palavras, dos seus gestos. Deu origem a várias narrativas e interpretações. Deixou tudo em aberto. O próprio autor do 4º Evangelho tem a humildade de ser exagerado: (…) Há, porém, muitas coisas que Jesus fez e que, se fossem escritas uma por uma, o mundo não poderia conter os livros que se escreveriam [5].

Existem várias e boas razões para celebrar o Natal. Em muitos casos é a festa da família e este é um dos seus melhores frutos. Se contribuir para refazer ou fortalecer os laços familiares, a Sagrada Família torna-se muito numerosa: fazer família com quem não é da família é continuar a revolução de Jesus de Nazaré, do mundo todo.

Bom Natal.

Público, 20.12.2015

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[1] S.Th. II-II, q.1. a. 1 ad 2
[2] Ib. II-II, q. 8, a. 8 ad 2
[3] Ib. I-II, q.19,5)
[4] Citado por Jean Greisch, Comprendre et Interpréter, Beauchesne, Paris, 1993, pp 432
[5] João 21, 35

 

13 dezembro 2015

A alegria não pode esperar

Frei Bento Domingues, O.P.   

1. Voltaram, este ano, a perguntar-me a data do nascimento de Jesus. Nestas crónicas, dei, várias vezes, para esse peditório. Já recebemos das investigações dos historiadores e dos exegetas do Novo Testamento todos os dados da questão. No entanto, ano após ano, os meios de comunicação social apresentam, como se fosse a novidade de última hora, ocultada pelas igrejas, a grande revelação: Jesus não nasceu no dia 25 de Dezembro e, do seu nascimento, não se sabe nem o ano nem o dia.

Acerca do Natal - como verdade, lenda e mito - remeto para a grande obra do rigoroso exegeta açoriano, A. Cunha de Oliveira[1].

Para os interessados, deixo aqui o resumo e a reflexão hermenêutica do grande historiador Gerd Theissen, ao concluir o seu cuidadoso estudo da estrutura cronológica da vida de Jesus[2]: Jesus nasceu antes da morte de Herodes I, isto é, entre 6/4 a.C.. Durante o governo de Pôncio Pilatos (26-36 d. C.) desenvolveu a sua breve intervenção pública. Foi executado, provavelmente, na festa da Páscoa do ano 30 d. C.. Nenhum dos juízes que o condenaram poderia sonhar que, um dia, o tempo seria contado em referência a esse cruxificado.

Esta contagem, cronologicamente imprecisa, encerra, só por si, a mensagem de que em Jesus aconteceu uma viragem na história. Para este acontecimento não importa que Jesus tenha nascido a 4 a.C. ou a 6 d.C.. Também é independente da interpretação daqueles que, durante a vida de Jesus, tudo esperaram dele. A sua mensagem e a esperança dos seus colaboradores eram escatológicas, ansiavam pelo fim dos tempos.

Se o cálculo cristão faz de Jesus o meio do tempo, isto ultrapassa o significado que o próprio Jesus deu à sua actividade. Essa nova interpretação começou, possivelmente, já no cristianismo primitivo. O evangelista Lucas fez uma narrativa da história da Igreja primitiva a seguir à descrição que apresenta do itinerário de Jesus.

Que Jesus divida o tempo é algo que pode surgir como elemento da história ou ser descrito historiograficamente. No entanto, a interpretação original continua intacta. Percebemos que existe algo em Jesus que atravessa qualquer tempo e não se deixa calcular cronologicamente.

2. A cor do Advento e da Quaresma é o roxo, um luto envergonhado porque o horizonte do Advento é o Natal e o da Quaresma, a Ressurreição. São as duas grandes festas da alegria do calendário cristão. Como a alegria não pode ser adiada, resolveram fazer um intervalo cor-de-rosa. Hoje, a palavra de ordem é esta: Alegrai-vos sempre no Senhor. Exultai de alegria: o Senhor está perto. O profeta Sofonias fez um poema magnífico para nos alegrarmos, como nos dias de festa. A Carta aos Filipenses propõe uma atitude: Seja de todos conhecida a vossa bondade; para vencer as inquietações propõe um remédio: a oração intensa em todas as circunstâncias. João Baptista é muito pragmático, mas bastante moralista. Sabe que não é ele a solução, nem as suas iniciativas. Aponta para o baptismo no Espírito Santo daquele que está para vir, mas não faz a mínima ideia do que vai acontecer e até propõe um Messias que lhe vai sair completamente às avessas. Jesus nunca será a sua cópia e ele vai ter muita dificuldade com as impensáveis inovações daquele que, durante algum tempo, foi seu discípulo.

A alegria não pode ser nem a reserva das grandes festas nem a dos Domingos cor-de-rosa. Todos os Domingos ouvimos proclamar o Evangelho como alegria, mas fazemos de conta que é apenas um ritual e não a alma da semana que começa.

Mozart tinha uma prática aconselhável: (…) nunca me deito sem pensar que, apesar de ser tão jovem, talvez já não exista no dia seguinte; no entanto, entre todos os que me conhecem, ninguém pode afirmar que eu seja pessoa de trato desabrido ou melancólico. E esta felicidade, pela qual, dia a dia, dou graças ao meu Criador. Desejo-a do coração a todos e a cada um dos meus semelhantes.

3. Quando olhamos para o ano que está a acabar só apetece pedir que acabe depressa a indefinição acerca da casa comum. É de loucos estragar a terra que nos foi dada para a melhorar, para sermos colaboradores de todas as formas de criatividade. Dizem-nos que fica muito caro. Teremos ouvido bem? Ou será que nos querem dizer que não merecemos o planeta que deveríamos ter?

Por outro lado, actuamos como se também fosse mais barata a guerra, em que nos deixamos envolver, do que a paz que nos pertence construir.

Não se pode aceitar que não haja nada a fazer. Para já, é indispensável conhecer as pessoas e grupos que pautam a sua vida, das formas mais diversas, quer na defesa da casa comum, quer nas incontáveis iniciativas de novos estilos de vida que favorecem a paz entre as pessoas, os grupos e os povos.

O Papa Francisco, goste-se ou não, é a convocatória para uma Igreja muito outra, para um mundo muito diferente. Não fica à espera da resposta. O bom humor, o riso, o carinho com todos semeiam a alegria mesmo nas situações mais insólitas.

É um possesso do Evangelho da Alegria, da misericórdia.

Público, 13.12.2015
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[1] A. Cunha de Oliveira, Natal, Inst. Açoriano da Cultura, 2012

[2] Gerd Theissen/Annette Merz, O Jesus histórico, Loyola, São Paulo, 2004

06 dezembro 2015

Novas figuras do Advento

Frei Bento Domingues, O.P.

1. Segundo um conto judaico, um rabino fez a Deus o seguinte pedido: ”Deixa-me ir dar uma vista de olhos pelo céu e pelo inferno”. O pedido foi aceite e Deus enviou-lhe o profeta Elias, como guia.

O profeta levou o rabino a uma grande sala. No centro ardia um fogo que aquecia uma panela enorme, com um guisado que enchia o espaço com o seu aroma.

À volta deste apetitoso manjar estava reunida uma multidão com uma grande colher na mão. Apesar disso, viam-se as pessoas esfomeadas, macilentas, sem forças, a cair.

As colheres eram mais compridas do que os seus braços, de tal modo que não as conseguiam levar à boca. Tristes, desejosas e em silêncio, de olhar perdido.

O rabino, espantado e comovido, pediu para sair desse lugar espetral. De inferno já tinha visto o suficiente.

O profeta levou-o então a outra sala. Ou talvez fosse a mesma. Tudo parecia exactamente igual: a panela ao lume, com apetitosas iguarias, a gente à volta com grandes colheres na mão. Via-se que estavam todas a comer com gosto, alegres, com saúde, cheias de vida. A conversa e as gargalhadas enchiam a sala. Isto tinha que ser o paraíso! Mas, como é que tinham conseguido uma tal transformação?

As pessoas tinham-se voltado umas para as outras e usavam a enorme colher para levar comida a quem estava à sua frente, procurando que a outra ficasse satisfeita e assim acabavam por ficar todas bem!

2. Foi notícia a festa de arromba que um empresário ofereceu, em Loures, para celebrar os 15 anos da sua filha. Transportada antes em limousine e depois, em helicóptero, a partir de Algés. A brincadeira terá ultrapassado os duzentos mil euros. Apesar de tudo muito mais barata do que o jacto de Ronaldo. Não se pode dizer que vivem acima das suas possibilidades. A propriedade privada é sagrada.

John Magufuli, de 56 anos, Presidente da Tanzânia desde 5 de Novembro, já anda na boca das pessoas. É conhecido por Bulldozer pelas mudanças radicais que introduziu no país.

Pela primeira vez em 54 anos, a Tanzânia não vai celebrar oficialmente o dia da Independência, porque Magufuli defende ser “vergonhoso” gastar rios de dinheiro nas celebrações quando o nosso povo está a morrer de cólera. Só nos últimos três meses vitimou, pelo menos, 60 pessoas. Acabaram-se as viagens dos governantes ao estrageiro. As embaixadas deverão tratar dos assuntos que lhes competem. Se for necessário viajar, terá de pedir uma licença especial ao Presidente ou ao seu Chefe de Gabinete. Em 1ª classe e executiva só o Presidente, o Vice-Presidente e o Primeiro-Ministro. Acabaram-se os workshops e seminários em hotéis caros, quando há tantas salas de ministérios vazias.

O Presidente Magufuli perguntou por que motivo os engenheiros recebem modelos de carro topo de gama, se as carrinhas são mais práticas para o seu trabalho. Acabaram-se os subsídios. Por que motivo são pagos subsídios se vocês recebem salários; aplicável também aos parlamentares. Todos os indivíduos, ou empresas, que tenham comprado empresas do Estado, que foram privatizadas, mas não fizeram nada com elas, passados 20 anos, ou as fazem recuperar imediatamente ou devem-nas devolver.

John Magufuli cortou o orçamento da inauguração do novo Parlamento. De 100 mil dólares passou para 7 mil.

3. Tem um precedente na América Latina, José Mujica. O ex-guerrilheiro, conhecido como o presidente mais pobre do mundo devido ao seu estilo de vida, deixou o poder a 1 de março.

Uma chácara, nos arredores de Montevideu, um VW Carocha de 1987 e três tratores. Esta é toda a riqueza do presidente do Uruguai,  avaliada em menos de 170 mil euros. Pode parecer pouco para um chefe de Estado, mas para Pepe, que doa 90% do seu salário anual, dez mil euros, para caridade, é mais do que suficiente. É por isso que ficou conhecido como o presidente mais pobre do mundo.

Mujica continua como sempre. Em algumas entrevistas, declarou: "não sou pobre, sou sóbrio, com pouca bagagem, vivo com o suficiente para que as coisas não me roubem a liberdade"; por outro lado, "tu, com o teu dinheiro, não podes ir a um supermercado e dizer: venda-me mais cinco anos de vida. Não podes. Não é uma mercadoria, então não a devemos gastar mal. Temos de a usar e gastar com as coisas que nos motivam a viver." À CNN disse: "temos de viver como vive a maioria, não como vive a minoria", lembrando que "o presidente é um funcionário que foi eleito pelas pessoas para um momento e uma etapa" e que "ninguém é melhor do que ninguém". “A política é a luta pela felicidade de todos".

Entre estas palavras e a sua existência quotidiana não há distâncias.

Vive com a mulher de há 40 anos, a senadora Lucía Topolansky, na casa de uma assoalhada, onde também costuma receber os jornalistas. Ao lado da roupa estendida e da horta que cultiva, é vegetariano, no meio das galinhas e junto à cadela Manuela, que só tem três patas. Não é esquisito no vestir e nem para ir à Casa Branca usou gravata, que considera "um trapo inútil".

Estamos no Advento. Uns dizem que o melhor está para vir, mas adiam a felicidade para o fim dos tempos. Outros repetem as figuras que anunciaram a vinda do Messias. Porque não abrir os olhos para as figuras que vivem hoje e abrem novos caminhos de Esperança?

Público, 6.Dez.2015

04 dezembro 2015

Comunicado de imprensa do Movimento Internacional Nós Somos Igreja

A 20 de novembro, o Movimento Internacional Nós Somos Igreja divulgou em Roma junto dos meios de comunicação a seguinte nota de imprensa:


Concílio 50: Rumo a uma Igreja -
Inspirada no Evangelho - para o mundo

Web site: www.council50.org
email: media@we-are-church.org
telemóvel: + 49-172.518.4082


Comunicado de imprensa
Roma, 20 de novembro de 2015

Trazendo a Roma os frutos nascidos das sementes do Concílio Vaticano II, há 50 anos.
Movimentos de base de todos os continentes apoiam a chamada de atenção do Papa Francisco para a necessidade de reformas substanciais na Igreja Católica Romana e na Sociedade.

Convenção “Concílio  50: Rumo a uma Igreja - inspirada pelo Evangelho - para o
mundo” , com mais de 100 delegados de movimentos de reforma católicos de todo o mundo em Roma, 20-22 novembro de 2015.

No próximo fim-de-semana vão reunir-se em Roma vários movimentos de reforma de diversos continentes, países, culturas e tendências teológicas e irão apresentar uma diversidade de projetos inspirados no Concílio Vaticano II para uma Igreja inclusiva para o século XXI. Trazem a sua prática, experiência e reflexões a Roma e esperam mostrar as suas potencialidades para um renascimento da Igreja, como São Francisco de Assis fez no seu tempo.

'Concílio 50' tem o objetivo de reafirmar os valores e o espírito do Concílio e de dar espaço e oportunidade de trabalho conjunto entre as diferentes experiências que surgiram a partir dele. 'Concílio 50' pretende reavivar as esperanças frustradas, para reacender a chama do Concílio, e renovar o ímpeto para o futuro. E assim tornar visível a parte profética de 'povo de Deus' que na Igreja é frequentemente escondido ou desconhecido.
‘Concílio 50’ apoia vivamente os esforços do Papa Francisco contra toda a resistência: para a renovação da Igreja Católica Romana, para o diálogo inter-religioso e por um mundo mais justo e pacífico. ‘Concílio 50’ quer ajudar a mudar a atitude dogmática e legalista da Igreja para uma atitude pastoral e evangélica inspirada no Evangelho e em linha com o Concílio Vaticano II. Consequentemente, o tema ‘Concílio 50: Rumo a uma Igreja - inspirada no Evangelho - para o mundo ".

‘Concílio 50’ é um processo em rede que contribui para reforçar a 'sensum fidei fidelium " que é um dos ensinamentos teológicos fundamentais do pensamento teológico do Concílio Vaticano II conforme expresso na constituição dogmática «Lumen Gentium». Há 50 anos, este Concílio trouxe muita esperança, mas por causa de decretos frustrantes  e dos antecessores do Papa Francisco, a parte profética da Igreja nas periferias do mundo foi muitas vezes ignorada, escondida e mesmo condenada. Os ensinamentos deste Concílio ainda estão à espera de ser implementados.

A convenção terá início sexta-feira, 20 de novembro, 2015 às 18:00 na Casa La Salle, em Roma. No sábado de manhã, a Dr.ª Nontando Hadebe, teóloga do Zimbabué e África do Sul, apresentará a palestra: "Perspectivas abertas pelo Papa Francisco para a evolução da
Igreja Católica e reformas para enfrentar os desafios do nosso mundo em evolução no século 21 '.
Depois dela, oradores de diferentes continentes apresentarão as suas experiências, expectativas e propostas para a renovação da nossa Igreja e as suas implicações no mundo.
8 workshops incidirão sobre os desafios que o mundo enfrenta como Guerra e Paz, Justiça social e económica, Meio Ambiente (Encíclica Laudato Si) e as questões sociais. Na sequência disso, e inspirados pelo Evangelho, serão desenvolvidos meios concretos para diferentes modelos de Organização da Igreja que podem promover os diálogos inter e intrareligioso, bem como o diálogo interconfessionial.

Esta convenção realiza-se depois da conferência internacional que comemorava e renovou o “Pacto das Catacumbas para uma igreja pobre”, assinado por 42 bispos pouco antes do final do Concílio nas Catacumbas de Domitilla a 16 de Novembro de 1965.

A carta do Concílio 50, construída a partir das discussões dos workshops durante o evento em Roma, será redigida e entregue ao Papa Francisco durante a celebração do quinquagésimo aniversário do encerramento do Concílio (8 de Dezembro de 2015). Atualizando o "Pacto das Catacumbas", que foi assinado pelos bispos, há 50 anos, a carta do Concílio 50 será um "Pacto do Povo de Deus", esperamos que acompanhada pelos bispos da nossa Igreja.

O ‘Concílio 50’ foi iniciado pela Rede Europeia Igreja em Movimento e pelo Movimento Internacional Nós Somos Igreja e beneficia da contribuição, participação e apoio de
membros das seguintes redes e associações:

Conselho Católico Norte-Americano, Amerindia, Articulación Continental de Comunidades Eclesiales de Base, Asociación de Teólogos Juan XXIII, Coligação Australiana para a Renovação da Igreja, Centro para a Paz e Solidariedade na Ásia (CAPS), Coordenação das Comunidades Europeias de Base, Corpus, Fórum Europeu Grupos Cristãos LGBT, Federação Internacional para Ministério Católico Renovado, Instituto de Teologia e Política, Kairós / Nós Também Somos Igreja - Brasil, Pax Romana, Rede de Antigos “Jecistes” (Jovens Estudantes Cristãos) de África, Redes Cristianas, Nós Também Somos Igreja – África do Sul, Instituto de Investigação Católica Wijngaards, Fórum Mundial Teologia e Libertação.

Comité de Recomendação / mensagens de solidariedade:
Leonardo Boff (Brasil), Card. Pedro Casaldáliga (bispo de São Félix, Brasil), JM Castillo,
Giovanni Cereti (teólogo), Paul Collins (Coligação Australiana para a Renovação da Igreja), Duarte da Cunha (Secretário da Conferência das Conferências de Bispos da União Europeia), Giovanni Franzoni (ex-abade de São Paulo, Roma), bispo Jacques Gaillot (Bispo em Paris), Nontando Hadebe (teóloga da África do Sul e Zimbabué), Hermann Haering (professor de
Teologia, Países Baixos/Alemanha), Paul Hwang (Centro para a Paz e Solidariedade na Ásia, presente em Roma), Douglas Irvine (WAACSA, presente em Roma), Marco Cassuto Morselli (Presidente da Amizada Hebraico-Cristã de Roma), Jon Sobrino (teólogo jesuíta), Hans Küng (Fundação Weltethos, Alemanha), Raniero La Valle (jornalista), Germaine Lipeb (Rede dos Antigos “Jecistes” de África), Anthony Padovano (CORPUS, EUA), Luiz Carlos Susin (Fórum Mundial Teologia e Libertação), Juan José Tamayo (Asociación de Teólogos Juan XXIII, presentes em Roma), José María Vigil (teólogo, Panamá), Alex Zanotelli (missionário)
100 participantes provenientes de:
Argentina, Áustria, Bélgica, Brasil, Burkina Faso, Camarões, Chile, Equador, França, Gabão,
Alemanha, Grã-Bretanha, Índia, Indonésia, Itália, México, Holanda, Filipinas, Polónia,
Senegal, Espanha, África do Sul, Coreia do Sul, Suíça, EUA, Zimbabué

29 novembro 2015

Deus não passa por nós a correr

Frei Bento Domingues, O.P.

1. Não esperava que me viessem pedir contas por Deus não ter feito nada para impedir o massacre de Paris. Essas pessoas acabaram por concluir que tinham batido à porta errada. Sugeri-lhes, com toda a paciência, que falassem directamente com Ele e aproveitassem o encontro para se esclarecerem acerca de todas as guerras e violências que, até em seu nome, foram desencadeadas ao longo da História. Algumas das narradas na Bíblia Hebraica até passaram a ser glorificadas na Liturgia católica, como acontece, por exemplo, na própria Vigília Pascal. Isto sem falar na recitação e canto de alguns salmos especialmente violentos!

Como não me lembro de ter, alguma vez, atribuído a Deus as asneiras da iniciativa humana ou os desconcertos da natureza, não me sinto atraído a abordar casos de polícia como altamente religioso-teológicos. Tanto os que o culpabilizam como os que o absolvem sabem demasiado da divindade. Não se dão conta que Deus, em si mesmo, nos é totalmente desconhecido (omnino ignoto).

Fui vacinado, muito cedo, pela corrente mística da teologia negativa ou apofática. Esta prática teológica tem o bom senso de fazer acompanhar todas as afirmações, acerca da divindade, de uma luminosa negação anti-idolátrica. A paradoxal oração do dominicano alemão, Mestre Eckhart (1260-1327) – Deus, livra-me de Deus – confessa, de modo enérgico, que não nos podemos fiar nas fórmulas que julgam apanhar Deus na sua rede. S. Tomás de Aquino sustentou que a própria letra dos Evangelhos, sem o sopro libertador do Espírito, se pode tornar uma prisão, uma letra que mata.

Quando me entregaram o grande roteiro da viagem teológica para principiantes, a Suma Teológica, fui logo avisado, pelo autor, de que não iria passar a saber como era Deus, mas sobretudo como Ele não era, Deus conhecido como desconhecido [1].

No âmbito religioso, pelo salto de significação que permite, a linguagem metafórica é a menos inconveniente. Na grande poesia e na grande música todas as viagens são possíveis, mistério do Mundo, mistério de Deus.

2. Ao falarmos tanto, sobretudo desde o séc. XIX, da morte de Deus, do silêncio de Deus, de se lançar a suspeita sobre tudo o que se relacionava com as religiões, foi esquecido um pequeno pormenor: tomou-se uma importantíssima questão cultural da modernidade europeia, como se fosse o retrato da situação religiosa universal. Resultado: não entendemos o que se está a passar na Europa, nem no resto do mundo. Não sabemos qual o sentido da civilização que herdamos, nem a que estamos a construir.

Vivemos num mundo de negócios. Sem negócios não se pode viver. Estes são cada vez mais globalizados. Mas o negócio dos negócios é o comércio de seres humanos e de armas. Chegámos a um ponto em que sem a indústria bélica, muita gente iria para o desemprego. Com o seu uso, muita gente vai para o cemitério.

Quando se pensava que o tempo das guerras religiosas, das Inquisições, das Cruzadas tinha acabado, reaparece a união entre armas e religião, em pleno coração da Europa. Os pseudo-religiosos, os terroristas, usam as armas em nome de Deus. Os laicos usam as armas para se defenderem dessa religião, confessando, e ainda bem, um respeito sagrado pelas religiões que ignoram. Petróleo oblige.

3. Quando João Paulo II se opôs, da forma mais firme, à guerra no Iraque, ignoraram-no. Ele estaria a defender os interesses cristãos da zona. Quando o Papa Francisco advertiu que era urgente suster a calamidade do Estado Islâmico, uns ignoraram-no, outros comentaram: o pacifista converteu-se à guerra justa. Também ele estaria a defender os cristãos dos massacres que os tinham por alvo preferencial.

Não basta intensificar o diálogo inter-religioso, embora seja muitíssimo importante que todos confessem que um deus que incita à violência gera uma religião diabólica, uma anti-religião.

Religiosos e não religiosos, místicos ou ateus teremos de aprender a viver no mesmo mundo, não como uma fatalidade, mas como uma oportunidade de nos tornarmos mais humanos, com o contributo de todos. Os cépticos dirão que não passa de uma utopia, mas que seria de nós sem aquilo que nos faz andar?

A liturgia católica celebrou, no domingo passado, Jesus Cristo Rei do Universo, ajuda difícil para as monarquias em dificuldades. É um rei coroado de espinhos e cravado na cruz. Ele próprio confessou que não era o poder que lhe interessava. Se assim fosse teria organizado um exército. Para ele só contava a alegria da vida humana, a sua verdade última. Assim terminava o ano litúrgico. Hoje recomeça, com o Advento, mas Deus na sua caminhada com os seres humanos não passa a correr.

Segundo o Novo Testamento, adopta os ritmos e os zigue-zagues da história humana, para que ninguém se sinta perdido. Insere-se nos seus movimentos para abrir brechas de esperança.
Na situação actual, parece que ninguém sabe para onde caminha a nossa civilização que, ao mesmo tempo que se globaliza, se despedaça em fragmentos irreconhecíveis, esquecendo que somos todos migrantes da mesma promessa.

Não passemos este Advento a correr. Precisamos de tempo para nascer de novo, para descobrir que outro rumo e outra vida são possíveis.

Público, 29.11.2015
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[1]  S.T, I,q.2,prol.; q,13,a.4; Super Boet. De Trini. q. 2 a. 2 ad 1.

22 novembro 2015

Dois pesos e duas medidas, não!

Frei Bento Domingues, O.P.
                
1. A Revista Islâmica Portuguesa[1] Al Furqán fez uma declaração muito ampla sobre os acontecimentos de Paris. Destacamos a seguinte passagem:

O ser humano merece viver em paz, independentemente de raça, credo ou cor. Não ao que aconteceu em Paris. Não ao que se passa na Palestina. Não ao que ocorre na Síria. Não ao que acontece no Iraque. Não ao que ocorre no Afeganistão. Não ao que se passa na Birmânia. Não e não aos massacres, não às atrocidades, não ao egoísmo e não à hipocrisia. Ninguém deve ser outro, mas sim o respeito mútuo. Merecemos viver num mundo melhor.

No mundo contemporâneo, global, nada é simples. Já quase não existem sociedades homogéneas do ponto de vista étnico ou religioso. Ao contrário da opinião corrente, como mostra L'Atlas des Religions (2015), nem todas as religiões são instituições petrificadas. Muitas delas evoluem, deslocam-se, recompõem-se como as culturas e as civilizações.

Se é verdade que as religiões podem motivar e aumentar os conflitos, também podem e devem fortalecer a coabitação pacífica e intensificar a comunicação. Com uma diferença: quando a religião é convocada para abençoar a violência e para legitimar a guerra, atraiçoa a sua própria natureza; quando religa as pessoas, as comunidades e os povos vive a sua missão essencial. É próprio da cultura e da religião produzirem significações múltiplas. A violência e a guerra respondem quase sempre ao absurdo, com mais absurdo.

Em 1986, João Paulo II convocou para Assis, em Itália, os líderes das grandes religiões para rezarem pela paz, proclamando: nunca mais uns contra os outros; sempre uns com os outros. Participaram, nesse acontecimento memorável, personalidades judaicas, cristãs, muçulmanas assim como de religiões orientais e de tradições africanas. Foi retomado depois do 11 de Setembro para recusar o choque das civilizações e das religiões.

Diz-se que há mundos religiosos e políticos que recusam, por princípio, o caminho do diálogo. Perante a crise síria por exemplo, os grupos do califado ou do império islâmico declaram que não é o diálogo que lhes interessa, mas a luta armada até à morte ou à vitória. Seguem o caminho de bin Laden: os ocidentais querem diálogo, nós queremos a sua morte.

Por tudo isto e muito mais, nas últimas décadas, tornou-se corrente associar a violência e o terrorismo ao Islão. Porque não dar a conhecer as personalidades, os países e os movimentos muçulmanos que lutam contra o ódio e a guerra?

Deixemos, por instantes, outras questões históricas e os terroristas profissionais e seja feita a pergunta: qual poderia ser o contributo dos muçulmanos que vivem em países de liberdade religiosa para que esta seja reconhecida e praticada nos países islâmicos?

Pode parecer uma pergunta ingénua, mas é tempo de a fazer. Será longo e difícil este caminho para a grande maioria. Esta julgará normal que os seus países de origem recusem a liberdade às outras religiões e que, nos países onde vive e trabalha, lhe reconheçam não só a liberdade de culto como o absoluto respeito pelas suas expressões públicas. Isto por uma razão muito simples inculcada desde a infância: o Islão considera-se a si próprio como a religião mais simples e perfeita da revelação divina. O Corão é o próprio ditado de Alá a Maomé e constitui a fonte de toda a lei e de todo o direito: relações com Deus, culto, higiene, urbanidade, educação, moral individual, vida social e política.

Em tempos de crise, os fundamentalistas - de várias origens e diversas reconfigurações - acabarão por se considerarem os guardas da pureza islâmica, recorrendo, se for preciso, aos métodos mais radicais. A submissão a Deus pratica-se na vida toda. Não me espanta.

2. Ainda conheci, na Igreja Católica, o império de certos teólogos que atacavam, como heréticas e inimigas da sã doutrina revelada, as correntes cristãs que defendiam a tolerância e a liberdade religiosa e consideravam uma loucura o diálogo inter-religioso.

A argumentação era muito simples: só a verdade tem direito a afirmar-se e a defender-se publicamente. Para o erro não pode haver nem tolerância nem liberdade. A Igreja Católica é a única verdadeira Igreja cristã e a única verdadeira religião. Deve fazer tudo para impedir a divulgação do erro.

O mais espantoso é o seguinte: investigada sob todos os aspectos, desde o começo do Concílio Vaticano II, a declaração Dignitatis Humanae, sobre a liberdade religiosa, encontrou tantos obstáculos que só foi aprovada a 7 de Dezembro de 1965, apenas um dia antes do seu encerramento por Paulo VI. Seremos capazes de imaginar, hoje, a Igreja Católica contra a liberdade religiosa? Dir-se-á que é um texto menor comparado com as grandes constituições do Concílio. Sem estas não teria sido possível, mas é esta breve declaração que constitui o contributo maior do catolicismo para o diálogo entre os povos e entre as religiões.

Enquanto os países de maioria islâmica não deixarem praticar, nos seus espaços, a liberdade religiosa que para si reivindicam, estão a exigir que entre os seres humanos haja dois pesos e duas medidas. É a desumanidade. Não é bonito.

Público, 22.11.2015
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[1] Cf. Reflexões Islâmicas, Ano III, nº. 160, 15.11.2015 

15 novembro 2015

Servir e não servir-se

Frei Bento Domingues, O.P.

1. Dizem-me que a papolatria, que denunciei várias vezes nestas crónicas, morreu. Era um culto hipócrita usado para esconder as manobras anticristãs da Cúria vaticana e de algumas cúrias diocesanas. Quando o Papa Francisco manifestou que esses poderes arbitrários seriam desmantelados, os ratos não abandonaram a barca. Criaram redes, internas e externas, de sabotadores das iniciativas da liderança de Bergoglio.

Segundo essa opinião, não se trada da defesa da liberdade e do pluralismo na Igreja que, aliás, raramente tiveram um clima tão favorável. Procura-se semear alguns escândalos e multiplicar as insinuações para convencer os carreiristas clericais e os dirigentes de movimentos e instituições da Igreja de que o argentino está velho e um tumor no cérebro seria o responsável pelos seus desmandos doutrinais. A voz diária das missas na capela de Santa Marta, os discursos e as mensagens, a enumeração das quinze doenças da Cúria, desde a falta de autocrítica, avidez de poder, acumulação de bens materiais até à hipocrisia, não irão sobreviver a um funeral mais ou menos solene e próximo.

Confesso que essa tese me pareceu demasiado elaborada e vizinha das teorias da conspiração, mas foi o próprio Papa Francisco que, no passado domingo, dia 8, a confirmou, quanto ao essencial.

Após a celebração da missa de domingo, dirigiu-se aos fiéis, presentes na Praça de São Pedro, afirmando que sabe que muitos deles estão indignados com as notícias que têm circulado, nos últimos dias, sobre os documentos da Santa Sé que foram roubados e publicados. Nas primeiras palavras sobre o escândalo, o Papa indicou que foi ele que pediu para se fazer o estudo sobre as finanças do Vaticano e que sabia, tal como os seus colaboradores mais próximos, da existência dos referidos documentos. Tomaram-se medidas que já estão a dar frutos. Quero dizer que este triste facto não me afasta do trabalho e das reformas que estou a realizar com os meus colaboradores e com o vosso apoio. O papa disse ainda que a Igreja se renova através da oração e com a santidade quotidiana de cada batizado. Pediu aos fiéis que rezassem por ele e pela Igreja, avançando com confiança e esperança.

O inquérito sobre o caso já levou à detenção, no fim-de-semana passado, do sacerdote espanhol Lúcio Ángel Vellejo Balda e da italiana Francesca Chaouqui, entretanto libertada.

2. O que mais aborrece o Papa Francisco, como declarou na homilia do dia 6, em Sta Marta, é uma Igreja morna, ensimesmada, com avidez de negócios, sem escrúpulos. Essa não é uma Igreja que está ao serviço, mas que se serve daqueles que deveria servir.

Na sua homilia, pediu ao Senhor que nos dê a graça que deu a Paulo, cuja honra era ir sempre mais longe, renunciando às regalias e às tentações farisaicas de vida dupla: apresentar-se como ministro do Evangelho, como aquele que serve, mas no fundo estar a servir-se dos outros, a exibir-se.

Também na Igreja, há carreiristas e apegados ao dinheiro. Quantos sacerdotes e bispos não vimos já assim? Sei que é triste dizer isto, mas também quanta alegria ao ouvir as narrativas daqueles e daquelas que, desde a Amazónia a África, me vêm dizer, sorrindo, que “há 30 anos sou missionário, missionária” ou que “há 30 ou 40 anos sirvo em centros hospitalares pessoas com necessidades especiais”. Isto é aquilo que Paulo fez: servir. Igreja que não serve torna-se Igreja mercantil!

3. Hubert Wolf [1], ao falar na Igreja-Reforma da cabeça e dos membros, chama a atenção para o seguinte: “um Papa que aplica em si mesmo o projecto de oposição à rica e faustosa Igreja papal – isso tem uma potência explosiva. Francisco precisará de aliados influentes para impor as suas reformas, de modo a que não lhe aconteça o mesmo que ao seu antecessor Adriano VI: este Papa nascido em Utrecht ficou marginalizado em Roma. O seu estilo de vida simples, que abdicou de toda a pompa da autoencenação papal, a sua austeridade e a sua humilde piedade foram rejeitados pela Roma renascentista. As suas ideias radicais de reforma ameaçaram a alteração do estilo de vida de cardeais e prelados que se viam mais como príncipes do Renascimento do que como homens da Igreja. Assim, não tardou muito até que as Eminências lamentassem, num momento de fraqueza e impulso religioso, ter elegido um reformador e começassem a torpedear todas as suas iniciativas. Adriano VI morreu derrotado, após um pontificado de escassos treze meses. É de Plínio, o Velho, uma frase que Adriano citava regularmente durante o seu pontificado e que foi inscrita no seu túmulo [2]: Ah, como influem os tempos na eficácia dos actos até do melhor dos homens”.

Jesus também não teve grande sorte por ter resistido às tentações do poder político, económico e religioso, coisa que os discípulos nunca entenderam, mesmo depois de lhes ter sido muito bem explicado [3].

Público, 15.11.2015
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[1] Professor na Universidade de Münster, Brotéria, 181 (2015) 231-241
[2] Igreja nacional alemã de Santa Maria dell’Anima, em Roma
[3] Marcos 10, 35-45; Lucas 17,16; 22, 4-28; João 13,1-7

08 novembro 2015

800 anos é muito tempo!

Frei Bento Domingues, O.P.

1. Continuam a perguntar-me o que significa o acrescento, O.P., à minha assinatura, nomeadamente nestas crónicas.

Explico. Em 1953, no Convento de Nossa Senhora do Rosário, em Fátima, abrindo o tempo de Noviciado, o Prior conventual, numa celebração comovente, perguntou-me: que pedis? A misericórdia de Deus e a vossa, respondi.

Disse-me que esperava que já tivesse recebido a misericórdia de Deus, mas a da Ordem dos Pregadores (O.P), não era incondicional. Depois de um tempo de experiência, haveria uma avaliação recíproca e nela se veria se queríamos continuar juntos ou não. Entretanto, Frei Bento passava a sobrepor-se ao nome que usara até esse dia.

Não estranhei muito, pois o padroeiro da minha aldeia é S. Bento e muito perto havia a romaria de S. Bento da Porta Aberta, a mais importante do norte de Portugal. Por outro lado, o meu irmão chamava-se Domingos e ao entrar na Ordem fundada por S. Domingos, passou a chamar-se Frei Bernardo!

2. Dou agora esta explicação, porque ontem, em Fátima, no Convento que há 62 anos me acolheu, participei na abertura do Jubileu do VIII Centenário desta Ordem a que pertenço. O Papa Honório III reconheceu-a, mediante algumas Bulas de recomendação (1216 e 1217), como a Ordem dos Pregadores (O.P.).

Vale a pena atender a esta designação cuja história sempre me fascinou. Fala-se, com frequência, da Ordem de S. Domingos, da Ordem Dominicana e, para abranger todos os seus ramos, da Família Dominicana. É verdade que o seu fundador foi São Domingos de Gusmão (1170-1221). Era castelhano, viveu em França e morreu em Itália. Em muito poucos anos, rodeado de alguns companheiros, decidiu responder a uma lacuna grave na Igreja do seu tempo: a pregação do Evangelho ao povo que reclamava a reforma de uma Igreja feudal.

Existiam, é certo, várias tentativas para enfrentar a situação minada pela heresia cátara, maniqueia. As tentativas existentes não seguiam nem o caminho nem o estilo de Jesus Cristo e dos Apóstolos. Ao propor o Evangelho, atraiçoavam-no. O grande poeta, Francisco de Assis, encontrou um caminho: seguir nu o Cristo nu. Domingos de Gusmão era um teólogo e viveu os primeiros anos de pregação missionária no Sul da França com um bispo espanhol extraordinário, Diego de Acebes. Quando este regressou a Espanha, Domingos ficou sozinho até decidir fundar a Ordem dos Pregadores.

Esta designação não encontrou bom acolhimento em Roma. Por uma razão simples: a Ordem dos pregadores era a ordem episcopal. Que surgissem fundações dedicadas à pregação, era desejável. Domingos, no entanto, não aceitou uma bula papal que recomendava a sua fundação, como de irmãos que pregam (praedicantes). Ele queria uma fundação de irmãos cuja vocação e ofício era a pregação e não a de meros pregadores eventuais. Por isso, conseguiu que a bula fosse raspada e por cima de praedicantes, o Papa tenha mandado escrever Praedicatores.

Isto pode parecer um pormenor, mas não é. Estava em jogo a própria essência desta nova e insólita ordem religiosa.

3. S. Domingos não queria palradores. Desejava pregadores, pessoas que no silêncio, na oração, no estudo se deixassem transformar pela graça da Palavra feita carne, para a salvação do mundo. Ficou cunhada para sempre a expressão sintética deste carisma: contemplar e anunciar a Realidade contemplada.

Para transformar os sonhos em realidade, o santo castelhano decidiu, com os seus companheiros, que a Ordem dos Pregadores seria uma instituição democrática. As suas Constituições e Ordenações poderiam ser sempre revistas, mas segundo regras estabelecidas para e pelos Capítulos Gerais. Para unir as leis humanas e a fidelidade à graça do Evangelho, os Capítulos reuniam-se no Pentecostes.

A democracia dominicana permite o melhor, mas cede ao pior quando atraiçoa o seu carisma e se abandona à vontade de dominar. Todas as vezes que, ao longo dos séculos, soube ver e escutar a novidade dos sinais dos tempos; sempre que a fidelidade às suas origens foi vivida nas novas fronteiras do presente, a Ordem dos Pregadores foi espantosamente criativa. Quando, pelo contrário, confundiu fidelidade com repetição e se deixou manipular pelos poderes da igreja ou da sociedade, ofendeu o seu carisma.

Para encurtar razões e exemplos, recorro a S. Tomás de Aquino, de quem Umberto Eco dizia: transformaram um incendiário num bombeiro.

«Frei Tomás (…) nas suas aulas levantava problemas novos, descobria novos métodos, empregava novas redes de provas e, ao ouvi-lo ensinar uma nova doutrina, com argumentos novos, não se podia duvidar, pela irradiação dessa nova luz e pela novidade desta inspiração, que era Deus quem lhe concedeu ensinar, desde o princípio, com plena consciência, por palavras e por escrito, novas opiniões [1]».

Cada sociedade tem a sua história e reescreve-a à medida que ela mesma muda. O passado só está definitivamente fixo quando deixa de ter futuro, dizia R. Aron. Desde a sua origem que a Ordem faz a sua história reescrevendo-a para hoje. Não reproduzimos o passado. Inovamos [2].

Público 08.11.2015
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[1] Cf. Guilherme de Tocco, discípulo e biógrafo de S. Tomás
[2] Cf. Fr. José Augusto Mourão. O.P., A Palavra e o Espelho, Paulinas, 2000, pp 179-186

01 novembro 2015

Que temos nós a ver com os migrantes?

Frei Bento Domingues, O. P.

1. Alguns leitores reagindo ao meu texto do domingo passado, disseram-me: se o panorama da família em desconstrução e reconstrução é tão caótico, como poderão as famílias agrupar-se para evangelizar, encher de alegria, antigos e novos projectos familiares?

Podem. Com diferentes configurações, existem, por todo o mundo, milhões de famílias que o amor reuniu - de avós a netos - que sem alarido, já vivem antigos e novos processos de alimentar e renovar a esperança das futuras gerações. Por outro lado, a graça do Evangelho não contraria os trabalhos escondidos da natureza e da cultura, como certa apologética pouco católica, ignorante e sectária, insiste em proclamar.

Dito isto, para evangelizar a família importa não esquecer o contencioso agreste de Jesus com a sua família e com as famílias dos seus discípulos. Tão agreste que os seus familiares o quiserem deter, julgando que ele estava doido. Quem o diz é S. Marcos, ao descrever o entusiasmo que a sua intervenção estava a suscitar: «Voltou para casa. E de novo a multidão se apinhou, a ponto de não se poderem alimentar. Logo que os seus tomaram conhecimento disso, saíram para o deter, dizendo: enlouqueceu [1]». S. João descreve uma cena familiar de ciúmes, crueldade, troça e desprezo, precisamente quando Jesus mais precisava de compreensão, porque nem mesmo os seus irmãos acreditavam nele.[2]

Esse contencioso é ignorado na catequese e na pregação porque não quadra com a iconografia da exemplar família de Nazaré! No entanto, é o desentendimento no seio da Sagrada Família que revela, da forma mais abrangente e radical, a essência do cristianismo: fazer família com quem não é da família, esperança activa e horizonte da humanidade, sempre a retomar, nos mais diversos estilos, tempos e lugares.

Por isso, é ridículo dizer que Jesus era contra a família. Pelo contrário. Repito e voltarei a repetir: vivia e interpretava a sua missão como a loucura de fazer família com quem não era da família. O que ele combatia era a família como central de egoísmo, a família fechada sobre si mesma que não se preocupa com os de fora.

Era precisamente esse egoísmo que impedia a sua família e a dos discípulos de entender o caminho desta estranha criatura: «Chegaram, então, a sua mãe e os seus irmãos e, ficando do lado de fora, mandaram-no chamar. Havia uma multidão sentada em torno dele. Disseram-lhe: a tua mãe, os teus irmãos e as tuas irmãs estão lá fora e procuram-te. Ele perguntou: quem é minha mãe e meus irmãos? Percorrendo com o olhar os que estavam sentados ao seu redor disse: eis a minha mãe e os meus irmãos. Quem fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe.»[3]

No Evangelho de S. Mateus a questão da revolução na família alarga-se: «Quanto a vós, não permitais que vos chamem Rabi, pois um só é o vosso Mestre e vós sois todos irmãos. A ninguém na terra chameis Pai, pois um só é o vosso Pai, o celeste».[4]

2. É evidente que Jesus não estava a ditar um catecismo de pastoral familiar nem a desautorizar as chamadas famílias biológicas e as suas múltiplas configurações culturais.[5] Estava a semear algo de muito mais importante e para sempre: fazer da vida em família, o tempo e o lugar da descoberta do mundo como família. Ao aprofundar e estreitar os laços internos, construindo a igreja doméstica, tudo seria orientado para redes de igrejas em saída, para usar a linguagem do Papa Francisco.

Dir-se-á que esse é o caminho dos sonhos. Os sonhos são antecipações do futuro e o futuro é a união na diferença.

Esta expressão está ameaçada. A UE em vez de trabalhar pela união dos países desenvolveu um sistema no qual os grandes comem os pequenos e ainda querem passar por benfeitores. As fronteiras foram abolidas, mas não as fronteiras económicas. Os pequenos enriquecem os grandes que ainda passam por preguiçosos. Quem procura entrar na Europa encontra muros e mares de sepultura. Perante os migrantes, quem pensará que se trata de gente da nossa família humana? E as chamadas famílias cristãs terão olhos, inteligência e coração verdadeiramente cristãos para alterar as políticas que vêm nos pobres uma ameaça?

3. Seria normal procurar no Sínodo dos Bispos orientações para responder a estas perguntas. Ainda é cedo para essa pesquisa. Não estamos no vazio. O Papa Francisco desenvolveu durante um ano, nas audiências gerais de quarta-feira [6], uma reflexão sobre a família que começa em Nazaré e termina com Os Povos. Não encontrei nada sobre a família comparável a esses textos. Estão longe da usual e aborrecida linguagem eclesiástica. Os diversos aspectos da vida familiar surgem a uma nova luz e abrem brechas de esperança para as situações mais difíceis.

Público, 01.11.2015

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[1] Marcos 3,20-21
[2] João 7,1-5
[3] Marcos 3,31-35
[4] Mateus 23,8-9
[5] Sobre as relações entre Jesus de Nazaré e a família ver o meu texto em Cadernos ISTA nº 31, 2015, pp. 49-58. Este número é todo subordinado a interrogação: A Família tem Futuro?
[6] Dezembro de 2014 e duraram até Setembro de 2015. Ver Rev. Lumen Setembro-Outubro 20154, pp 17-75