Frei Bento Domingues, O. P.
1. Dizem-me que estou a ficar viciado no Papa argentino. É possível. Seja como for, o seu pontificado retomou, de forma original e surpreendente, o impulso meticulosamente abafado de João XXIII (1881-1963). Este filho de camponeses pobres, de Sotto il Monte (Bergamo), foi uma bênção inesperada para um mundo dividido e ameaçado por um confronto nuclear. Já muito idoso teve a ousadia de provocar um abalo sísmico numa Igreja obsessionada com dogmas e anátemas, ao convocar o Vaticano II, o concílio do acolhimento universal e do diálogo irrestrito. Consta que este bispo pobre, piedoso e cheio de humor sempre se sentiu bem na companhia de hereges, cismáticos e não-católicos. Destruiu barreias e construiu pontes, em todas as direcções, sem nunca se julgar infalível.
Não esqueço que já passaram várias gerações e que, hoje, é difícil imaginar o que se passou, na Igreja, entre 1958 e 1962. Além disso, em Portugal, esse concílio não foi nem preparado, nem acompanhado, nem recebido.
Tive a graça de ter podido participar em várias das suas audiências públicas. Em poucos segundos, o fausto do Vaticano evaporava-se e ficávamos perante um rosto iluminado de bondade, a escutar palavras não ensaiadas que o tornavam numa pessoa da nossa família. Naquele contexto até ficava mal falar de “ Sua Santidade” ou de “ Santo Padre”!
Ao olhar para aquele cristão, ficava-se com a certeza de que tudo o que tinha havido de mais criativo na Igreja e na sociedade, ao longo do tempo da repressão da liberdade, estava ali intacto à espera de uma oportunidade para todos, sobretudo para os que tinham sido mais ofendidos.
Quando a palavra foi devolvida à Igreja, aconteceram muitas coisas admiráveis em todos os continentes. No entanto, algumas precipitações e ingenuidades reformistas foram o pretexto para o regresso e vingança dos ressentidos pela perda de poder.
O retorno ao pensamento único, às doutrinas “irreformáveis” do magistério, à paralisação da teologia crítica, à enfase em catecismos prontos a substituir o estudo, ao direito canónico, à proliferação de movimentos com ânsias de dominação da Igreja e da sociedade, tiveram tempo e condições para um triunfalismo que, afinal, encobria sepulcros caiados, como depois se revelou, de modo escandaloso.
Lembro isto para não esquecermos donde vimos, se quisermos perceber o radical e sagaz processo dialético do Papa Francisco.
2. Bergoglio também se esqueceu, como João XXIII, da ladainha dos títulos papais que os séculos inventaram para os distanciar dos pobres e para calar os outros membros da Igreja. Reteve apenas o de “pontífice”, o encarregado de lançar e reparar pontes para Deus e para todos os seres humanos, a começar pelos sobrantes e descartáveis, vítimas de uma economia que mata, num mundo em que 1% da população possuiu mais de metade da riqueza mundial.
No começo, a sua predilecção pelas periferias era vista como uma forma populista de desviar a atenção da urgente reforma da Cúria, responsável pelos escândalos que encheram, anos a fio, os meios de comunicação social e sepultaram o Vaticano II, com medidas contra a liberdade, na Igreja. Instaurou-se o sentimento de que Bergoglio não iria conseguir qualquer reforma. Nunca foi essa a minha interpretação.
O seu texto programático, E.G. não engana. Na Igreja, a hierarquia, as instituições e organizações, a liturgia e as doutrinas não são para ela e para a sua auto reprodução. São para a fazer sair para o mundo dos pobres, dos oprimidos, dos excluídos, das vítimas de doutrinas e práticas sociais e culturais que lhes negam o céu e a terra. Enquanto as populações não virem que o Evangelho é a alegria da libertação, não se podem interessar pela cozinha interna das instituições e organizações da Igreja.
3. Depois de alguns retoques na administração económica e financeira, na orgânica administrativa e na substituição de algumas pessoas e cargos, resolveu atacar frontalmente a falta de ética e de espírito cristão dos cardeais. A denúncia esmiuçada das doenças do Vaticano, em 15 pontos, nunca tinha sido feita de modo tão contundente e desabrido por um Papa. O que o terá levado a não aguentar mais? O vocabulário de carreirismo, de alzheimer espiritual, de anseios de poder e de vã glória, etc. não pertence à linguagem palaciana ou do protocolo. Sente-se, em Bergoglio, a urgência de operar aquele cancro. Mais estranho ainda é a necessidade de uma carta aberta aos cardeais que serão criados no próximo dia 14 de Fevereiro, para lhes dizer que não se trata de premiar uma carreira, de uma dignidade, de poder ou de distinção superior. É um serviço. Depois de o realizar digam: somos servos inúteis. Não é uma fórmula de boa educação, é a verdade (Lc 17, 10). Na vossa festa não deixem que o espírito de mundanidade se insinue: entontece mais do que águardente como pequeno-almoço.
São tantos e tais os problemas acumulados, em todos os sectores da vida da Igreja que, ou muito me engano ou o Papa Francisco anda a preparar, passo a passo, um Concílio Ecuménico, cuidando para que não lhe aconteça o mesmo que ao Vaticano II.
Público, 01.02.2015
1. Dizem-me que estou a ficar viciado no Papa argentino. É possível. Seja como for, o seu pontificado retomou, de forma original e surpreendente, o impulso meticulosamente abafado de João XXIII (1881-1963). Este filho de camponeses pobres, de Sotto il Monte (Bergamo), foi uma bênção inesperada para um mundo dividido e ameaçado por um confronto nuclear. Já muito idoso teve a ousadia de provocar um abalo sísmico numa Igreja obsessionada com dogmas e anátemas, ao convocar o Vaticano II, o concílio do acolhimento universal e do diálogo irrestrito. Consta que este bispo pobre, piedoso e cheio de humor sempre se sentiu bem na companhia de hereges, cismáticos e não-católicos. Destruiu barreias e construiu pontes, em todas as direcções, sem nunca se julgar infalível.
Não esqueço que já passaram várias gerações e que, hoje, é difícil imaginar o que se passou, na Igreja, entre 1958 e 1962. Além disso, em Portugal, esse concílio não foi nem preparado, nem acompanhado, nem recebido.
Tive a graça de ter podido participar em várias das suas audiências públicas. Em poucos segundos, o fausto do Vaticano evaporava-se e ficávamos perante um rosto iluminado de bondade, a escutar palavras não ensaiadas que o tornavam numa pessoa da nossa família. Naquele contexto até ficava mal falar de “ Sua Santidade” ou de “ Santo Padre”!
Ao olhar para aquele cristão, ficava-se com a certeza de que tudo o que tinha havido de mais criativo na Igreja e na sociedade, ao longo do tempo da repressão da liberdade, estava ali intacto à espera de uma oportunidade para todos, sobretudo para os que tinham sido mais ofendidos.
Quando a palavra foi devolvida à Igreja, aconteceram muitas coisas admiráveis em todos os continentes. No entanto, algumas precipitações e ingenuidades reformistas foram o pretexto para o regresso e vingança dos ressentidos pela perda de poder.
O retorno ao pensamento único, às doutrinas “irreformáveis” do magistério, à paralisação da teologia crítica, à enfase em catecismos prontos a substituir o estudo, ao direito canónico, à proliferação de movimentos com ânsias de dominação da Igreja e da sociedade, tiveram tempo e condições para um triunfalismo que, afinal, encobria sepulcros caiados, como depois se revelou, de modo escandaloso.
Lembro isto para não esquecermos donde vimos, se quisermos perceber o radical e sagaz processo dialético do Papa Francisco.
2. Bergoglio também se esqueceu, como João XXIII, da ladainha dos títulos papais que os séculos inventaram para os distanciar dos pobres e para calar os outros membros da Igreja. Reteve apenas o de “pontífice”, o encarregado de lançar e reparar pontes para Deus e para todos os seres humanos, a começar pelos sobrantes e descartáveis, vítimas de uma economia que mata, num mundo em que 1% da população possuiu mais de metade da riqueza mundial.
No começo, a sua predilecção pelas periferias era vista como uma forma populista de desviar a atenção da urgente reforma da Cúria, responsável pelos escândalos que encheram, anos a fio, os meios de comunicação social e sepultaram o Vaticano II, com medidas contra a liberdade, na Igreja. Instaurou-se o sentimento de que Bergoglio não iria conseguir qualquer reforma. Nunca foi essa a minha interpretação.
O seu texto programático, E.G. não engana. Na Igreja, a hierarquia, as instituições e organizações, a liturgia e as doutrinas não são para ela e para a sua auto reprodução. São para a fazer sair para o mundo dos pobres, dos oprimidos, dos excluídos, das vítimas de doutrinas e práticas sociais e culturais que lhes negam o céu e a terra. Enquanto as populações não virem que o Evangelho é a alegria da libertação, não se podem interessar pela cozinha interna das instituições e organizações da Igreja.
3. Depois de alguns retoques na administração económica e financeira, na orgânica administrativa e na substituição de algumas pessoas e cargos, resolveu atacar frontalmente a falta de ética e de espírito cristão dos cardeais. A denúncia esmiuçada das doenças do Vaticano, em 15 pontos, nunca tinha sido feita de modo tão contundente e desabrido por um Papa. O que o terá levado a não aguentar mais? O vocabulário de carreirismo, de alzheimer espiritual, de anseios de poder e de vã glória, etc. não pertence à linguagem palaciana ou do protocolo. Sente-se, em Bergoglio, a urgência de operar aquele cancro. Mais estranho ainda é a necessidade de uma carta aberta aos cardeais que serão criados no próximo dia 14 de Fevereiro, para lhes dizer que não se trata de premiar uma carreira, de uma dignidade, de poder ou de distinção superior. É um serviço. Depois de o realizar digam: somos servos inúteis. Não é uma fórmula de boa educação, é a verdade (Lc 17, 10). Na vossa festa não deixem que o espírito de mundanidade se insinue: entontece mais do que águardente como pequeno-almoço.
São tantos e tais os problemas acumulados, em todos os sectores da vida da Igreja que, ou muito me engano ou o Papa Francisco anda a preparar, passo a passo, um Concílio Ecuménico, cuidando para que não lhe aconteça o mesmo que ao Vaticano II.
Público, 01.02.2015
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