Frei Bento Domingues, O.P.
1. Ao fazer das periferias o centro da Igreja Católica, Bergoglio tenta mudar, a partir da diocese de Roma, os sinais de trânsito de todas as dioceses do mundo, das paróquias, dos movimentos, das Conferências episcopais e da vida consagrada. O centro das igrejas locais terá de se deslocar para as periferias geográficas, sociais e culturais. O processo vai levar o seu tempo, pois não falta quem espere que o Papa acabe por se cansar, sobretudo se os padres, os bispos e os cardeais fizerem de conta que não estão para aí virados.
O antigo aforismo imperial - “todos os caminhos vão dar a Roma” – poderia ser substituído por outro: todos os caminhos das igrejas vão dar às periferias, aos “bairros problemáticos”, às cadeias, aos hospitais, às pessoas que vivem sós, ignoradas dos familiares e dos vizinhos. Seria apenas uma questão de tomar a sério um dos textos escolhidos para o começo desta Quaresma (Mt 25, 31-46).
No passado dia 15, no final da homilia da Missa com os “novos purpurados”, o bispo de Roma enunciou, de modo sintético e incisivo, essa reorientação pastoral:
“Amados irmãos novos Cardeais, com os olhos fixos em Jesus e na nossa Mãe, exorto-vos a servir a Igreja de tal maneira que os cristãos – edificados pelo nosso testemunho – não se sintam tentados a estar com Jesus, sem quererem estar com os marginalizados, isolando-se numa casta que nada tem de autenticamente eclesial. Exorto-vos a servir Jesus crucificado em toda a pessoa marginalizada, seja pelo motivo que for; a ver o Senhor em cada pessoa excluída que tem fome, que tem sede, que não tem com que se cobrir; a ver o Senhor que está presente também naqueles que perderam a fé, que se afastaram da prática da sua fé ou que se declaram ateus; o Senhor, que está na cadeia, que está doente, que não tem trabalho, que é perseguido; o Senhor que está no leproso, no corpo ou na alma, que é discriminado. Não descobrimos o Senhor, se não acolhermos de maneira autêntica o marginalizado. Recordemos sempre a imagem de São Francisco, que não teve medo de abraçar o leproso e acolher aqueles que sofrem qualquer género de marginalização. Verdadeiramente, amados irmãos, é no evangelho dos marginalizados que se joga, descobre e revela a nossa credibilidade!”
2. Entre os vários textos, intervenções e homilias deste Papa, esta é particularmente sugestiva. Recomendo vivamente a sua leitura, bem meditada e partilhada. É uma ponte entre a prática de Jesus e o que hoje é pedido aos cristãos. Ele não se resigna a fazer da Igreja uma tertúlia, um clube para bem-pensantes, um círculo bíblico, uma ONG ou um centro de apuramentos teológicos, canónicos e litúrgicos. Se as hermenêuticas bíblicas são infindáveis, ele não está à espera de as percorrer a todas para, finalmente, dizer qual é a boa e verdadeira. O que o preocupa é uma Igreja entretida com ela mesma e as suas sacristias, as discussões sem fim para nada. Uma Igreja auto-referente perde-se de Cristo e do mundo e só pode gerar marginalizados da boa doutrina e da moral consagrada, em vez de integrar os que o farisaísmo afastou. Dizia-se de Jesus que Ele não era como os fariseus e os doutores da lei: falava com autoridade, era autor de um novo caminho. Era vinho novo que não cabia em odres velhos. Não vinha remendar o que já não tinha conserto. É precisamente isto que Bergoglio está a partilhar, não a partir de uma cátedra, mas de uma experiência iluminada pelo encontro do Evangelho com as muitas periferias que foi encontrando ao longo dos anos.
Não se pode esquecer que esta homilia está tecida a partir do atrevimento revolucionário de um leproso e de Jesus – em campo aberto - violando ambos a Lei da marginalização de Moisés, preocupada, como é normal, em “salvar os sãos” e “proteger os justos”.
3. O Papa Bergoglio não está preocupado em resolver os problemas que Jesus enfrentou há dois mil anos. Isso já está feito. Mas ao seguir a mesma lógica, a prática deste Papa está a encontrar um grande entusiasmo, mas também grandes resistências nos interesses instalados. Recorro às suas palavras: Jesus, novo Moisés, quis curar o leproso, quis tocá-lo, quis reintegrá-lo na comunidade, sem se autolimitar nos preconceitos; sem se adequar à mentalidade dominante do povo; sem se preocupar de modo algum com o contágio. Jesus responde à súplica do leproso sem demora e sem os habituais adiamentos para estudar a situação e todas as eventuais consequências. Para Jesus, o que importa acima de tudo é alcançar e salvar os afastados, curar as feridas dos doentes, reintegrar todos na família de Deus. E isto deixou alguém escandalizado!
E Jesus não teme este tipo de escândalo. Não olha às mentes fechadas que se escandalizam até por uma cura, que se escandalizam diante de qualquer abertura, qualquer passo que não entre nos seus esquemas mentais e espirituais, qualquer carícia ou ternura que não corresponda aos seus hábitos de pensar e à sua pureza ritualista. Ele quis integrar os marginalizados, salvar aqueles que estão fora do acampamento (cf. Jo 10).
Não parece que Bergoglio ande muito assustado.
Público, 01.03.2015
1. Ao fazer das periferias o centro da Igreja Católica, Bergoglio tenta mudar, a partir da diocese de Roma, os sinais de trânsito de todas as dioceses do mundo, das paróquias, dos movimentos, das Conferências episcopais e da vida consagrada. O centro das igrejas locais terá de se deslocar para as periferias geográficas, sociais e culturais. O processo vai levar o seu tempo, pois não falta quem espere que o Papa acabe por se cansar, sobretudo se os padres, os bispos e os cardeais fizerem de conta que não estão para aí virados.
O antigo aforismo imperial - “todos os caminhos vão dar a Roma” – poderia ser substituído por outro: todos os caminhos das igrejas vão dar às periferias, aos “bairros problemáticos”, às cadeias, aos hospitais, às pessoas que vivem sós, ignoradas dos familiares e dos vizinhos. Seria apenas uma questão de tomar a sério um dos textos escolhidos para o começo desta Quaresma (Mt 25, 31-46).
No passado dia 15, no final da homilia da Missa com os “novos purpurados”, o bispo de Roma enunciou, de modo sintético e incisivo, essa reorientação pastoral:
“Amados irmãos novos Cardeais, com os olhos fixos em Jesus e na nossa Mãe, exorto-vos a servir a Igreja de tal maneira que os cristãos – edificados pelo nosso testemunho – não se sintam tentados a estar com Jesus, sem quererem estar com os marginalizados, isolando-se numa casta que nada tem de autenticamente eclesial. Exorto-vos a servir Jesus crucificado em toda a pessoa marginalizada, seja pelo motivo que for; a ver o Senhor em cada pessoa excluída que tem fome, que tem sede, que não tem com que se cobrir; a ver o Senhor que está presente também naqueles que perderam a fé, que se afastaram da prática da sua fé ou que se declaram ateus; o Senhor, que está na cadeia, que está doente, que não tem trabalho, que é perseguido; o Senhor que está no leproso, no corpo ou na alma, que é discriminado. Não descobrimos o Senhor, se não acolhermos de maneira autêntica o marginalizado. Recordemos sempre a imagem de São Francisco, que não teve medo de abraçar o leproso e acolher aqueles que sofrem qualquer género de marginalização. Verdadeiramente, amados irmãos, é no evangelho dos marginalizados que se joga, descobre e revela a nossa credibilidade!”
2. Entre os vários textos, intervenções e homilias deste Papa, esta é particularmente sugestiva. Recomendo vivamente a sua leitura, bem meditada e partilhada. É uma ponte entre a prática de Jesus e o que hoje é pedido aos cristãos. Ele não se resigna a fazer da Igreja uma tertúlia, um clube para bem-pensantes, um círculo bíblico, uma ONG ou um centro de apuramentos teológicos, canónicos e litúrgicos. Se as hermenêuticas bíblicas são infindáveis, ele não está à espera de as percorrer a todas para, finalmente, dizer qual é a boa e verdadeira. O que o preocupa é uma Igreja entretida com ela mesma e as suas sacristias, as discussões sem fim para nada. Uma Igreja auto-referente perde-se de Cristo e do mundo e só pode gerar marginalizados da boa doutrina e da moral consagrada, em vez de integrar os que o farisaísmo afastou. Dizia-se de Jesus que Ele não era como os fariseus e os doutores da lei: falava com autoridade, era autor de um novo caminho. Era vinho novo que não cabia em odres velhos. Não vinha remendar o que já não tinha conserto. É precisamente isto que Bergoglio está a partilhar, não a partir de uma cátedra, mas de uma experiência iluminada pelo encontro do Evangelho com as muitas periferias que foi encontrando ao longo dos anos.
Não se pode esquecer que esta homilia está tecida a partir do atrevimento revolucionário de um leproso e de Jesus – em campo aberto - violando ambos a Lei da marginalização de Moisés, preocupada, como é normal, em “salvar os sãos” e “proteger os justos”.
3. O Papa Bergoglio não está preocupado em resolver os problemas que Jesus enfrentou há dois mil anos. Isso já está feito. Mas ao seguir a mesma lógica, a prática deste Papa está a encontrar um grande entusiasmo, mas também grandes resistências nos interesses instalados. Recorro às suas palavras: Jesus, novo Moisés, quis curar o leproso, quis tocá-lo, quis reintegrá-lo na comunidade, sem se autolimitar nos preconceitos; sem se adequar à mentalidade dominante do povo; sem se preocupar de modo algum com o contágio. Jesus responde à súplica do leproso sem demora e sem os habituais adiamentos para estudar a situação e todas as eventuais consequências. Para Jesus, o que importa acima de tudo é alcançar e salvar os afastados, curar as feridas dos doentes, reintegrar todos na família de Deus. E isto deixou alguém escandalizado!
E Jesus não teme este tipo de escândalo. Não olha às mentes fechadas que se escandalizam até por uma cura, que se escandalizam diante de qualquer abertura, qualquer passo que não entre nos seus esquemas mentais e espirituais, qualquer carícia ou ternura que não corresponda aos seus hábitos de pensar e à sua pureza ritualista. Ele quis integrar os marginalizados, salvar aqueles que estão fora do acampamento (cf. Jo 10).
Não parece que Bergoglio ande muito assustado.
Público, 01.03.2015
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