Frei Bento Domingues O.P.
1. “Sejam quais forem os fenómenos inesperados do futuro, Jesus não será ultrapassado. O seu culto rejuvenescer-se-á constantemente; a sua lenda provocará lágrimas sem fim; o seu sofrimento enternecerá os corações mais bondosos, todos os séculos proclamarão que entre os filhos dos homens, nunca nasceu um maior do que Jesus”.
Cito estas palavras de Ernest Renan escritas, em 1873, no final da sua pouco ortodoxa Vida de Jesus, porque são belas.
É verdade que essa obra já está muito longe das últimas vagas de reconstruções históricas das origens do cristianismo, nascido no mundo judaico e greco-romano no Ano I, um dos mais importantes da História universal.
Foi em referência a Jesus de Nazaré que surgiu o movimento religioso mais significativo do Ocidente e provavelmente o de maior influência cultural e social do mundo. Isto, apesar dos crimes anticristãos que, em seu nome, foram cometidos.
Segundo o historiador Antonio Piñero, tanto entre os judeus como entre os gentios de há dois mil anos, havia uma grande aspiração a que o mundo mudasse de signo, como se pode ler nos oráculos de Sibila: com o menino que vai nascer concluir-se-á finalmente a época de ferro e nascerá, por todo o mundo, a idade doirada…
Os seguidores do Nazareno interpretaram, com eficácia, esses “sinais dos tempos”.
É urgente perceber que o rumo do mundo actual, com tantos recursos científicos e técnicos, facilmente globalizáveis, carece de lideranças que o pensem a partir dos que foram e são os mais sacrificados aos imperativos da idolatria do dinheiro, rei e senhor.
2. Estive a ler, comovido, os discursos do Papa Francisco, em Nápoles, seguindo o roteiro do seu percurso. Na sua espantosa arte de escutar, nas suas palavras, gestos e atitudes verifico que o seu Jesus é nosso contemporâneo.
É verdade que o dominicano S. Tomás de Aquino (1225-1274) defendeu, com excelentes razões teológicas, que a eficácia salvadora, transformante, da intervenção histórica de Jesus, de há dois mil anos, atinge todos os tempos e lugares. O monge beneditino alemão, Odo Casel (1886-1948), morreu a cantar o Exultet, um hino muito belo da Vigília Pascal, na célebre abadia de Maria-Laach. Depois de ter defendido, contra ventos e marés, a convicção de que ao celebrar o mistério do culto cristão estamos sempre envolvidos pela presença misteriosa, actual e actuante da morte e da ressurreição de Cristo, entrou no reino da luz. Não se nega a memória. É, todavia, o presente, cheio de futuro, o que mais importa.
Mas então, o que haverá e novo na intervenção de Bergoglio para nos sugerir, nas formas mais surpreendentes, que o tempo e a geografia de Jesus são hoje, seja numa prisão, num hospital, em Nápoles, em Lampedusa, na Turquia, num bairro de lata em Roma ou no Parlamento Europeu?
Diria o seguinte: os teólogos bons e os bons liturgos pensam e celebram, com consciência, a absoluta transcendência de Deus conhecido como desconhecido. Trabalham, de forma brilhante, ideias brilhantes.
Francisco segue outro caminho: não defende apenas que a teologia, a liturgia, a pregação, a catequese, a pastoral devem cheirar a povo e a rua. Não traz apenas para o nosso tempo o que aconteceu naquele tempo, na história de Jesus, interpretada pelos escritos do Novo Testamento nem faz aplicações moralizantes desses textos fantásticos, muito desconhecidos do povo católico. Faz outra coisa: recria, com uma espantosa imaginação, as narrativas de antigamente com histórias e realidades dos pobres, dos doentes, dos desempregados, jovens e adultos de hoje, a quem roubam o presente e a todos roubam a dignidade, reduzindo os idosos a produtos descartáveis e sobrantes.
Prefiro dar-lhe a palavra: “A situação de Nápoles não é só uma responsabilidade da cidade, nem somente do país, mas do mundo! Por quê? Porque há um sistema económico que descarta o povo e agora toca aos jovens serem descartados, sem trabalho e isso é grave!
Diz-se que há obras de caridade, há os voluntários, há a Caritas, há aquele centro, há aquele clube que dá de comer…”
O problema, diz Bergoglio, não é ter de comer, por esmola. “O problema mais grave é não ter a possibilidade de levar o pão para casa, de o ganhar! E quando não se ganha o pão, perde-se a dignidade. Esta falta de trabalho rouba-nos a dignidade. Devemos lutar por isso, devemos defender a nossa dignidade de cidadãos, de homens e mulheres, de jovens. Este é o drama do nosso tempo. Não devemos permanecer em silêncio”.
Hoje, Domingo de Ramos, começa a Grande Semana – a da esperança invencível - e dedicada, pela liturgia católica, a evocar a condenação à morte, por crucifixão, de Jesus de Nazaré. Pelo que consta, isto aconteceu devido a interesses político-religiosos, provavelmente, no dia 7 de Abril do ano 30, véspera do grande dia da Páscoa judaica.
Cristo não morre mais. Esta semana será santa se as vítimas da dominação económica, política, religiosa e de qualquer discriminação forem o nosso cuidado afectivo, orante, político. “Ao tocar nas feridas do mundo, tocamos em Deus” (T. Halík).
Público, 29.03.2014
1. “Sejam quais forem os fenómenos inesperados do futuro, Jesus não será ultrapassado. O seu culto rejuvenescer-se-á constantemente; a sua lenda provocará lágrimas sem fim; o seu sofrimento enternecerá os corações mais bondosos, todos os séculos proclamarão que entre os filhos dos homens, nunca nasceu um maior do que Jesus”.
Cito estas palavras de Ernest Renan escritas, em 1873, no final da sua pouco ortodoxa Vida de Jesus, porque são belas.
É verdade que essa obra já está muito longe das últimas vagas de reconstruções históricas das origens do cristianismo, nascido no mundo judaico e greco-romano no Ano I, um dos mais importantes da História universal.
Foi em referência a Jesus de Nazaré que surgiu o movimento religioso mais significativo do Ocidente e provavelmente o de maior influência cultural e social do mundo. Isto, apesar dos crimes anticristãos que, em seu nome, foram cometidos.
Segundo o historiador Antonio Piñero, tanto entre os judeus como entre os gentios de há dois mil anos, havia uma grande aspiração a que o mundo mudasse de signo, como se pode ler nos oráculos de Sibila: com o menino que vai nascer concluir-se-á finalmente a época de ferro e nascerá, por todo o mundo, a idade doirada…
Os seguidores do Nazareno interpretaram, com eficácia, esses “sinais dos tempos”.
É urgente perceber que o rumo do mundo actual, com tantos recursos científicos e técnicos, facilmente globalizáveis, carece de lideranças que o pensem a partir dos que foram e são os mais sacrificados aos imperativos da idolatria do dinheiro, rei e senhor.
2. Estive a ler, comovido, os discursos do Papa Francisco, em Nápoles, seguindo o roteiro do seu percurso. Na sua espantosa arte de escutar, nas suas palavras, gestos e atitudes verifico que o seu Jesus é nosso contemporâneo.
É verdade que o dominicano S. Tomás de Aquino (1225-1274) defendeu, com excelentes razões teológicas, que a eficácia salvadora, transformante, da intervenção histórica de Jesus, de há dois mil anos, atinge todos os tempos e lugares. O monge beneditino alemão, Odo Casel (1886-1948), morreu a cantar o Exultet, um hino muito belo da Vigília Pascal, na célebre abadia de Maria-Laach. Depois de ter defendido, contra ventos e marés, a convicção de que ao celebrar o mistério do culto cristão estamos sempre envolvidos pela presença misteriosa, actual e actuante da morte e da ressurreição de Cristo, entrou no reino da luz. Não se nega a memória. É, todavia, o presente, cheio de futuro, o que mais importa.
Mas então, o que haverá e novo na intervenção de Bergoglio para nos sugerir, nas formas mais surpreendentes, que o tempo e a geografia de Jesus são hoje, seja numa prisão, num hospital, em Nápoles, em Lampedusa, na Turquia, num bairro de lata em Roma ou no Parlamento Europeu?
Diria o seguinte: os teólogos bons e os bons liturgos pensam e celebram, com consciência, a absoluta transcendência de Deus conhecido como desconhecido. Trabalham, de forma brilhante, ideias brilhantes.
Francisco segue outro caminho: não defende apenas que a teologia, a liturgia, a pregação, a catequese, a pastoral devem cheirar a povo e a rua. Não traz apenas para o nosso tempo o que aconteceu naquele tempo, na história de Jesus, interpretada pelos escritos do Novo Testamento nem faz aplicações moralizantes desses textos fantásticos, muito desconhecidos do povo católico. Faz outra coisa: recria, com uma espantosa imaginação, as narrativas de antigamente com histórias e realidades dos pobres, dos doentes, dos desempregados, jovens e adultos de hoje, a quem roubam o presente e a todos roubam a dignidade, reduzindo os idosos a produtos descartáveis e sobrantes.
Prefiro dar-lhe a palavra: “A situação de Nápoles não é só uma responsabilidade da cidade, nem somente do país, mas do mundo! Por quê? Porque há um sistema económico que descarta o povo e agora toca aos jovens serem descartados, sem trabalho e isso é grave!
Diz-se que há obras de caridade, há os voluntários, há a Caritas, há aquele centro, há aquele clube que dá de comer…”
O problema, diz Bergoglio, não é ter de comer, por esmola. “O problema mais grave é não ter a possibilidade de levar o pão para casa, de o ganhar! E quando não se ganha o pão, perde-se a dignidade. Esta falta de trabalho rouba-nos a dignidade. Devemos lutar por isso, devemos defender a nossa dignidade de cidadãos, de homens e mulheres, de jovens. Este é o drama do nosso tempo. Não devemos permanecer em silêncio”.
Hoje, Domingo de Ramos, começa a Grande Semana – a da esperança invencível - e dedicada, pela liturgia católica, a evocar a condenação à morte, por crucifixão, de Jesus de Nazaré. Pelo que consta, isto aconteceu devido a interesses político-religiosos, provavelmente, no dia 7 de Abril do ano 30, véspera do grande dia da Páscoa judaica.
Cristo não morre mais. Esta semana será santa se as vítimas da dominação económica, política, religiosa e de qualquer discriminação forem o nosso cuidado afectivo, orante, político. “Ao tocar nas feridas do mundo, tocamos em Deus” (T. Halík).
Público, 29.03.2014
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