31 maio 2015

Assassinado no altar

Frei Bento Domingues, O. P.

1. Óscar Romero, arcebispo de San Salvador, nasceu a 15 de Agosto de 1917 e foi assassinado, a 24 de Março de 1980, enquanto celebrava a Eucaristia. Antes de ser morto, ainda teve tempo de explicar, durante a homilia, que, apesar das ameaças de morte que lhe eram feitas, estava disposto a continuar a lutar contra a violência e a favor dos mais desprotegidos de El Salvador: Outros continuarão, com mais sabedoria e santidade, os trabalhos da Igreja e do meu país.

G. Gutiérrez, considerado o pai da Teologia da Libertação, sublinha: Romero não buscou o martírio, encontrou-o no caminho da sua fidelidade a Jesus Cristo, na firme atitude de pastor que não se calou perante as injustiças e humilhações quotidianas que vitimavam o seu povo [1].

Em Fevereiro de 2015, o papa Francisco venceu as manobras dos cardeais adversários de Óscar Romero. Reconhecendo-o como mártir, aprovou o decreto da sua beatificação, celebrada solenemente, no passado dia 23 de Maio, na capital de El Salvador e evocada no Convento de S. Domingos de Lisboa.

Para entender o desígnio deste assassinato e o sentido desta beatificação é preciso ter em conta a grande turbulência política e eclesial, caracterizada por um longo período de extrema violência, na América Central e no conjunto da América Latina. Os anos compreendidos entre 1977 e 1987 foram especialmente duros.

Nesse decénio crítico, muitos desses Estados tiveram regimes repressivos que se autojustificavam pela luta contra as guerrilhas revolucionárias ou comunistas. Os Estados Unidos apoiavam as lutas contra-revolucionárias; Cuba e os países de Leste sustentavam, com frequência, as guerrilhas.

Recordemos algumas datas bem conhecidas: a Argentina, depois do regresso e da morte de Péron, viveu numa ditadura militar de 1973 a 1982; o Brasil, de 1964 a 1985; o Chile encontrava-se, desde 1973 até 1989, sob a ditadura de Pinochet; o Paraguai foi governado pela ditadura militar de 1954 a 1989; o Uruguai conheceu uma feroz repressão entre 1973 e 1985; o Perú foi atingido pela guerrilha e pelo tráfico de droga; a Colômbia conheceu, a partir de 1947, uma dramática guerra civil e depois foi atravessada por fortes violências de vários grupos revolucionários ou de cartéis de narcotraficantes [2].

2. Perante os acontecimentos e a repressão, a análise dessas situações levou alguns movimentos cristãos à conclusão de que o caminho reformista era insuficiente. É neste contexto que é preciso entender a progressiva radicalização de O. Romero. O arcebispo Rivera, seu sucessor, observa: não estou de acordo com aqueles que apresentam Romero como um homem de batina que passou à revolução. O que aconteceu foi simplesmente isto: as massas populares, exacerbadas por tantas injustiças e repressões, desceram às ruas, praticando a desobediência civil e política. A Segurança Pública respondeu com uma repressão ainda mais violenta e, em seu auxílio, ocorreram também os esquadrões da morte.

O episcopado salvadorenho estava dividido. João Paulo II aconselhava o arcebispo a manter uma posição equilibrada, pois não se podia pensar apenas em defender a justiça, mas também em evitar que uma vitória revolucionária colocasse a Igreja em dificuldade.

A defesa do equilíbrio é também a preocupação do Arcebispo, mas não coincidia com o calculismo do Papa. A situação estava cada vez mais polarizada. A sua opção pelos pobres e pela defesa dos direitos humanos não lhe permitiam partilhar as posições revolucionárias, mas por outro, estava cada vez mais distante do poder económico e político. A violência e a morte contra as populações exerciam-se de forma preferencial sobre os padres.

O alvo principal foi atingido quando declarava na catedral: Assim como Cristo florescerá numa Páscoa de ressurreição imperecível, é necessário acompanhá-lo numa Quaresma, numa semana santa que é cruz, sacrifício, martírio. E, sem o procurar, foi martirizado a 24 de Março de 1980.

3. Diz-se que, entre os adversários da canonização de D. Óscar, estavam dois influentes cardeais colombianos: Alfonso López Trujillo, que já morreu, e Darío Castrillón Hoyos, aposentado. Ambos eram conhecidos pelas suas posições ultra-conservadoras e ocupavam, na década de 1990, importantes cargos na Cúria Romana. A arrogância desses cargos e posições não lhes garantiu grande clarividência.

A homilia de Romero, a 21 de Janeiro de 1979, no funeral do padre Octávio Ortiz e de mais quatro jovens assassinados pelas forças de segurança salvadorenhas, numa casa de retiros, é mais realista: Este mundo passa; somente permanece a alegria de se ter vivido para implantar, nele, o reino de Deus. Passarão pela boca do mundo todos os boatos, todos os triunfos, os capitalismos egoístas, os falsos êxitos da vida. Tudo isso passa. O que não passa é o amor, a coragem de reverter o dinheiro, os bens e a profissão ao serviço dos outros, a felicidade de compartilhar e de sentir todos os seres humanos como irmãos. Ao entardecer da vida, julgar-te-ão pelo amor.


Público, 31. 05. 2015

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[1] Cf. O excelente trabalho de António Marujo em Óscar Romero: 35 anos depois da morte.

[2] Cf. Andrea Riccardi, O Século do Martírio, Quetzal, Lisboa, 2002, 395-401; Victor Codina, SJ, El Espírito del Señor actúa desde abajo, cap.I,  Sal Terrae, 2015; Roberto Morozzo della Rocca, Oscar Romero, Ed. A.O, Braga, 2015

24 maio 2015

Não desistir do Espírito do Pentecostes

Frei Bento Domingues, O. P.

1. Ao começar a crónica deste Domingo, escrevi: a festa de Pentecostes não celebra o que já foi, mas o que falta fazer. De repente, deparei com a notícia: a morte de cerca de uma centena de passageiros de um navio carregado de migrantes do Bangladesh e da Birmânia. Este navio andou quase dois meses à deriva no alto mar, depois da guarda costeira da Malásia e da Tailândia o ter impedido de aportar a estes países. A luta desesperada pelos últimos mantimentos, a bordo, provocou a morte de uma centena dos passageiros. Já em segurança na Indonésia, os sobreviventes contaram a crueldade dessas mortes: esfaqueados, sufocados, atirados ao mar.

A Europa, depois de ver o Mediterrâneo transformado num imenso cemitério, resolveu discutir a atribuição, por cada país, dos migrantes que batem à sua porta. Veremos, como diz o cego.

Apesar das apregoadas virtudes da modernidade e da laicidade, a fraternidade universal foi ficando pelo caminho. O pensamento liberto do obscurantismo da religião não construiu a realidade, segundo o bem do ser humano, isto é, de todos os seres humanos. A grande maioria não passa de simples meio e instrumento de uma minoria privilegiada.

Permito-me revisitar a Bíblia para recuperar algumas perspectivas para o presente e o futuro do ser humano, como animal sagrado e político. 

A Bíblia – a biblioteca fundamental hebraica e cristã – nem sempre é muito recomendável. Nessa biblioteca há passagens criminosas e escandalosamente blasfemas que não ficam nada bem numa literatura divinamente inspirada. Hoje, depois de alguns estudos publicados nos Cadernos ISTA por Frei Francolino Gonçalves, professor da Escola Bíblica de Jerusalém, há mais de 40 anos e consultor da Pontifícia Comissão Bíblica, cheguei à conclusão – que só me responsabiliza a mim - que as Sagradas Escrituras estavam muito bem inspiradas acerca do bem a fazer e do mal a evitar. A literatura sapiencial, na sua mítica e simbologia, é admiravelmente universalista, mas a literatura nacionalista, a par de muitas maravilhas, mostra como os seres humanos podem cair na aberração de fazer de Deus um criminoso que incita à violência, isto é, o que nenhum Deus pode ser, fazer ou incitar a fazer. É apenas um ídolo do mal. Voltou nos nossos dias sob diversas formas e grupos.

2. A narrativa da criação – a não confundir com as representações das ciências – começa em beleza: No princípio, quando Deus criou os céus e a terra, a terra era informe e vazia, as trevas cobriam o abismo e o Espírito de Deus movia-se sobre as águas [1]. O poema continua ao ritmo da natureza. Por fim, Deus disse: façamos o ser humano à nossa imagem e semelhança. O salmista, espantado, escreveu: o que é o Homem para te lembrares dele? Quase o fizeste um ser divino [2].

Esta maravilhosa criatura não está formatada nem para o bem nem para o mal. Pode fazer o melhor e o pior. Perante o crime de Caim, ouvimos a primeira pergunta de Deus: Que fizeste do teu irmão? Quem faz esta pergunta rompe o ciclo da violência. A guerra não é a boa lei da História. No Levítico nasce a regra de ouro: amarás o teu próximo como a ti mesmo, na sua diferença.

Tornou-se um hábito contrapor o Pentecostes cristão à Torre de Babel. Não nos precipitemos. O conto da construção dessa espantosa torre tem muitas lições ou, pelo menos, pode ter várias leituras. Por um lado, a eficácia e os benefícios de uma só língua, de uma só cultura e de uma só técnica. A imagem do sucesso sem obstáculos. A escalada do céu. O sonho de todas as pessoas, de todos os povos. Por outro, a complicação de várias línguas, de várias culturas, ter de traduzir e aprender uns com os outros. Diante destas dificuldades, quem não sonha ser um poliglota universal?

Deus aparece neste conto como ameaçado. De facto, o que Deus impede é a repetição do mesmo, a clonagem cultural e linguística. Defende a pluralidade de línguas e culturas. Os seres humanos só podem viver bem em relação uns com os outros: são todos mestres e discípulos, cooperantes.

A invenção do Espírito Santo, narrada na segunda obra de Lucas, ainda é mais divertida. O Espírito fez descer sobre cada um dos apóstolos línguas de fogo e eles começaram a falar outras línguas que nem conheciam. A multidão reuniu-se e ficou muito admirada, pois cada um os ouvia falar na sua própria língua e eram de muitos povos.

3. No começo dos Actos dos Apóstolos, Jesus Cristo manifestou-se um bocado desesperado. Tinha passado a vida a tentar convencer os Doze de que foram chamados, não para ocupar lugares de chefia, mas para dar a vida por um mundo novo, no qual as pessoas são apreciadas pelo serviço que prestam. Ele próprio veio para servir, não para dominar. No entanto, a única pergunta que lhe fazem depois da ressurreição é miserável: Senhor, será agora que vais restaurar a realeza em Israel? O Mestre é muito firme: só vos pertence ser minhas testemunhas até aos confins da Terra e da única coisa que precisais é do Espírito de Deus. Foi ele que animou a minha vida.

Não celebramos a festa de Pentecostes por nostalgia. A Terra nunca foi um paraíso. Precisamos do espírito do Pentecostes para que nenhuma geração desista de um mundo onde não haja indigentes, mas irmãos.

Público, 24.05.2015

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[1] Gn 1, 1-2; 26-27
[2] Sl 8, 4-7

17 maio 2015

Não é preciso ir à “Terra Santa”

Frei Bento Domingues, O.P.

1. Quem se sentir desafiado por Jesus Cristo não deve ignorar que, para além da sua experiência vital e do conhecimento afectivo, tem de recorrer também aos estudos que ajudam a ler os escritos do Novo Testamento (NT) e os ziguezagues da sua influência, ao longo dos séculos. A não ser que se aposte na preguiça piedosa: quanta mais ignorância, mais devoção.

Os resultados da investigação histórica e os frutos da hermenêutica das configurações simbólicas, legadas pelas primeiras gerações cristãs, não devem servir apenas para compor as estantes das bibliotecas das faculdades de teologia.

O seu estudo livre e rigoroso será sempre o melhor remédio contra a manipulação de algumas censuras eclesiásticas, feita em nome da salvaguarda da fé. Só é possível acreditar, de modo decente, interpretando e dialogando com outras interpretações. Como já disse nestas crónicas, a defesa da tradição cristã não se faz com os métodos das indústrias de conserva. É vitalizada no confronto e no diálogo com os desafios de cada época, na diversidade dos povos, a partir dos guetos sociais e culturais criados pelos interesses financeiros e económicos da nova desordem do mundo.  

Segundo o exegeta Xabier Pikaza, neste momento, a preocupação desses estudos deslocou-se da problemática do Jesus da história e do Cristo da fé para a investigação das origens do cristianismo: como surgiu a Igreja e qual o seu sentido? Não está centrada apenas no Nazareno, ocupa-se cuidadosamente dos seus primeiros seguidores. Aqueles que nos deram a conhecer o Mestre também precisam de ser conhecidos.

S. Lucas escreveu a sua obra entre os anos 90 e 100 d.C.. De origem pagã, mas talvez prosélito judeu, conhecia a Bíblia Grega, a dos LXX. Foi o primeiro autor cristão a apresentar a história de Jesus e do seu movimento, segundo os modelos judeu e helenista [1], sendo, também, o primeiro a interessar-se pela identidade social da Igreja e pelo lugar que ela ocupa na história, como movimento messiânico. Não tenta mostrar, em primeiro lugar, como é que as coisas se passaram. Interessa-lhe fazer entender a perspectiva da missão de Paulo que desembocou em Roma, capital do Império.

Sobre este fundo, destaca os dois polos da sua obra, o judaico e o helenista ou romano. O judaico mantem-se como raíz, pois constitui a origem e o destino israelita de Jesus e o princípio da Igreja em Jerusalém [2].

O polo romano constitui o enquadramento final e definitivo da Igreja que chegou a Roma e onde Paulo estava preso, mas anunciava abertamente o Evangelho. Esta perspectiva é muito sugestiva, mas exclui as Igrejas da Síria e da Ásia Menor [3].

No desenho deste cenário, Lucas idealiza e destaca as origens da Igreja em torno de Pedro e dos Doze, quando de facto, como se sabe desde o princípio, a origem real das igrejas ou comunidades foi muito mais ampla e plural.

Se as outras grandes “testemunhas” do NT (Marcos e Mateus, Paulo e João…) não precisaram de escrever uma história da Igreja foi porque, do seu ponto de vista, ela já estava incluída nas narrativas dos seus Evangelhos.

2. Xabier Pikaza chama a atenção para uma obra original de “desconstrução” do segundo livro de Lucas, os Actos dos Apóstolos (Act), feita por um destacado investigador espanhol [4] que se tornou uma autoridade na interpretação das origens cristãs.

Esta desconstrução pôs em causa a visão mais clara do nascimento e expansão da Igreja que tínhamos. Começa-se a saber, agora, que essa obra não conta a história da Igreja primitiva. É uma interpretação muito particular.  Lucas construiu uma tese. Desconstruindo essa interpretação, recuperam-se possíveis materiais mais antigos e valorizam-se outras fontes do NT (Paulo, tradição evangélica, etc.). Talvez se torne possível reconstruir melhor a história das igrejas do princípio e de forma mais ampla.

Neste livro, há personagens importantes que dominam, por algum tempo, a trama deste “romance” (os Doze e Pedro, os helenistas e Estêvão, Filipe, Tiago…), mas acabam todos por ficar em segundo plano. Actuam por um momento e, cumprida a sua missão, desaparecem. Quem garante a unidade e a continuidade da Igreja é a acção do Espírito Santo que a vai conduzindo de Jerusalém a Roma. O grande protagonista desta obra é o Espírito Santo.

3. Cumpriu-se a promessa: Recebereis a Força do Espírito Santo, que virá sobre vós. Sereis, então, minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e Samaria e até aos confins da terra. Dito isto, elevou-se à vista deles e uma nuvem o ocultou aos seus olhos [5].

Cumpriu-se a promessa, em parte. A promessa não era colocar os discípulos pasmados a olhar para o céu: Jesus agora está com o Deus que está com todos em todo o mundo. Não adianta ir procurá-lo à Terra Santa, terra da violência sacralizada.

O segredo da simbólica da Ascensão é o Pentecostes, uma Igreja de saída que o Papa Francisco veio acordar. Convite para o próximo Domingo.

Público, 17.05.2014

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1  Act 1 1-4
2  Act 1-15
3  Act 28
4  Senén Vidal, Hechos de los apóstoles y orígenes cristianos, Sal Terrae, Santander 2015.
5  Act 1, 8-9

10 maio 2015

Um prefeito nem sempre é perfeito

Frei Bento Domingues, O. P

1. A vontade de fixar certas interpretações, declarações, doutrinas e instituições religiosas como sendo absolutas, irreformáveis e definitivas - marcadas por tradições, contextos históricos e culturais muito circunscritos – roça a idolatria. Substitui o Absoluto transcendente pelo que há de mais relativo e banal, numa linguagem inacessível. Os textos do Novo Testamento (NT) mostram um constante empenhamento de Jesus em dessacralizar tempos, lugares e instituições divinizadas, pois tornavam o acesso a Deus privilégio de alguns e a condenação de quase todos.

O próprio Jesus, ao andar em más companhias, ao comer com os classificados como pecadores, não só se desautorizava como homem de Deus, como se expunha a ser considerado um agente do diabo:[1] Ele não expulsa demónios, a não ser por Beelezebu, príncipe dos demónios.

Jesus não era da tribo sacerdotal, não andou em nenhuma escola rabínica, não era um teólogo profissional e, no entanto, pôs tudo em causa. [2]

Segundo os textos disponíveis, Jesus foi educado na religião da sua família, mas levou muito tempo encontrar o seu próprio caminho e, quando o encontrou, os antigos companheiros não o entenderam, a família julgava que ele estava doido [3] e os Doze que escolheu nunca conseguiram compreender o seu desígnio. [4]

Como não deixou nada escrito, e muito menos um catecismo bem arrumado, surgiram várias teologias cristãs. Os escritos do NT são irredutíveis a uma só teologia ou a uma só cristologia. Ler esses textos de estilos, épocas, lugares e propósitos tão diferentes, pelo olhar formatado de um Catecismo, é uma cegueira provocada pelo instinto de segurança e necessidade de controlar. São textos simbólicos, alusivos ao mistério inabarcável de Deus, que só com recurso à teologia negativa, apofática, é possível não cair na idolatria teológica. De Deus, tanto mais sabemos quanto mais nos dermos conta que ele excede todo o conhecimento. Nunca será prisioneiro dos nossos conceitos.

2. A falta de profissionalismo teológico está a agitar o Vaticano. Numa entrevista concedida ao jornal francês La Croix, o próprio Cardeal Müller – Prefeito da Congregação para Doutrina da Fé (CDF), ex-Santo Ofício, Presidente da Pontifícia Comissão Ecclesia Dei, Presidente da Pontifícia Comissão Bíblica e Presidente da Comissão Teológica Internacional - declarou algo de muito inédito: “A chegada à Cátedra de Pedro de um teólogo como Bento XVI foi, provavelmente, uma excepção. João XXIII não era um teólogo de ofício. O Papa Francisco também é mais pastor e a Congregação para a Doutrina da Fé, tem uma missão de estruturação teológica do Pontificado”. Assim, pois, segundo a declaração deste cardeal, a CDF deve “estruturar teologicamente” o Pontificado do Papa Francisco. É provável que este seja um dos motivos pelos quais o Prefeito intervém tão frequentemente em público, algo sem precedentes na história.

Até agora, ninguém havia teorizado, a partir do próprio centro da Cúria Romana, uma exigência de normalização do pontificado, como se depreende das palavras citadas por Müller. Acredito que aqui se deva constatar, com preocupação, que esse parece ser, até agora, o mal-entendido mais substancial dos pontificados de João XXIII e de Francisco, curiosamente unificados pela característica de terem “pouca estrutura teológica”.

3. Estamos numa situação delicada. Como vimos, Jesus não tinha nada de teólogo profissional, a sua profissão era outra. S. Francisco, ainda menos. João XXIII, convocando o Concílio e neutralizando a vigilância do cardeal Octaviano, do Santo Ofício, deixou o debate teológico à solta, decisão que nunca mais lhe será perdoada pelos vigilantes da ortodoxia. O pós-Concílio foi de uma grande efervescência e criatividade teológicas, tanto na Europa como na América latina, na África e na Ásia. Com o cardeal Ratzinger procurou-se a normalização pela condenação de tudo que não reproduzisse a teologia deste Prefeito da CDF.

Chegou o Papa Francisco e soltou, de novo, a palavra na Igreja e manifestou, numa carta à Faculdade de Teologia de Buenos Aires, a vontade de que os teólogos profissionais cheirassem a povo, não ficassem isolados numa redoma. Há atrevimentos que se pagam caro.
A ambição do poder de dominar – também há poder de servir – é presunçosa e ridícula. Quem se julga o centro da Igreja, perde-se do Espírito de Cristo e pensa que só ele tem a chave da salvação.

Público, 10.05.2015

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[1] Mt 12, 1-37:Mc 2-3
[2] Mc  6, 1-5
[3] Mc 3,20-21.31-35
[4] Mc 10,35-45

07 maio 2015

Filipa Lowndes Vicente escreve sobre Ana Vicente

Texto escrito e lido por Filipa Lowndes Vicente no dia 29 de Abril de 2015 na missa de sétimo dia de sua mãe, Ana Vicente, na Igreja do Convento de São Domingos, Alto dos Moinhos, Lisboa. 


Não vos vou falar da minha perda, do amor profundo e cúmplice que sentia e sinto pela minha mãe, nem como me sinto uma órfã de 43 anos, a aprender a viver esta segunda parte da vida em que sou mãe mas já não posso ouvir a palavra "filha". Muitas das pessoas presentes sabem do que falo. Não somos as primeiras nem seremos as últimas.

Também não vos vou contar como, numa comunhão absurda e misteriosa, me senti fisicamente doente durante todos estes últimos meses em que a doença da minha mãe lhe começou a coartar os sentidos, as vontades e os gestos: jantar fora com o meu pai e os amigos; viajar; os concertos na Gulbenkian; as reuniões do Nós Somos Igreja e do grupo de autoajuda para doentes oncológicos que criara há poucos anos; o trabalho diário em forma de escrita - artigos de opinião, emails, mas também os livros, projectos intelectuais que sabia começar, acabar e gozar; os almoços com as tantas amigas, queridas; a leitura dos livros e jornais que transbordavam sempre da mesa de cabeceira; ou olhar para as ondas selvagens do Guincho ao fim da tarde. Só quando deixou de poder fazer tudo aquilo que lhe enchia a vida e que foi capaz de fazer plenamente durante todos estes anos, é que partiu. Quando quis partir.

Disse várias vezes à minha mãe, a brincar, como na sua forma de ser inclassificável e pouco convencional, ela combinava o melhor de ser inglesa e portuguesa. Sei que a minha mãe, no seu optimismo pragmático, agora diria, "não há nada a fazer, não vale a pena lamentarmo-nos e vamos, sim, tentar ser positivos". E eu, como a menina obediente que nunca tive que ser, porque a minha mãe também fez da maternidade uma forma de liberdade e de aceitação, vou agora tentar "obedecer-lhe", tentando transformar a minha tristeza nos três verbos que a moviam, sempre entrelaçados uns nos outros: escrever, rezar e agir. A palavra escrita, a palavra em prece e a acção. Uma forma de a lembrar-mos é a de todas, e todos nós, pormos estes verbos ao serviço de algumas das causas pelas quais lutou, naquele seu modo único de ser combativa e serena, subversiva e paciente:

1. Em primeiro lugar, e central a todas as outras inquietações, a sua consciência feminista, os direitos das mulheres, local e globalmente, nas suas relações com todas as dimensões sociais, políticas, religiosas, jurídicas ou culturais. Os modos como não só nunca teve medo da palavra "feminista", como a imbuiu dos sinónimos de justiça, direitos humanos, e prática cristã.
    
2. Em segundo lugar, as formas como fez da Igreja Católica também a sua Igreja, como a sua fé, sempre forte, ao serviço de uma transformação: o sacerdócio das mulheres, e as mulheres, em geral; uma nova posição face à sexualidade, ao planeamento familiar, à orientação sexual; uma Igreja mais pobre, próxima, e pacífica.        

3. Em terceiro lugar, e através do "Projecto Vida", as alternativas à toxicodependência numa década em que a droga se tornou uma história portuguesa que marcou tantas vidas - a daqueles que a viveram e a das pessoas que lhes eram próximas, também dos milhares de crianças que hoje ainda vivem em instituições públicas portuguesas.

4. A protecção legal, social e afectiva dos mais frágeis - dos idosos, das crianças, e das pessoas com deficiência que estão a cargo do Estado - tal como a necessidade de um novo empenho institucional e político em relação à adopção foram outras esferas profissionais que mereceram o seu empenho. Na sua acepção holística e aberta de todas as esferas humanas, a minha mãe não sabia isolar os "problemas sociais". As crianças sem a presença e o amor das mães e dos pais, a violência física contra as mulheres por parte de ex-namorados, maridos e ex-maridos, a pobreza, a droga, a maior fragilidade salarial ou laboral das mulheres, muitas vezes cruzam-se numa só pessoa ou numa só família. Proteger e defender os direitos daqueles que têm menos voz e menos poder foi outra das suas formas de ser cristã.  

5. O cancro surgiu como mais uma causa, claro. A fragilidade transformada em força. Não apenas a sua força, mas uma força partilhada com outras pessoas. Criou o grupo de autoajuda de doentes e pessoas próximas de doentes oncológicos e estava no processo de criar um grupo de apoio a pessoas em fim de vida. Quem é que toma conta das pessoas que tomam conta de outras e ficam doentes? Quem acompanha e apoia aqueles, muitos, que estão sozinhos e ficam doentes? A dignidade na morte, foi assim uma das suas últimas causas. Sobre a qual escreveu, rezou, agiu, mas também viveu. Viveu a sua morte com a dignidade que queria. E rodeada de muitas formas de amor. Os abraços e as palavras, de quem gostava dela têm sido para mim um enorme conforto.

A minha mãe morreu no dia em que cerca de 1000 pessoas também morreram nas águas do Mediterrâneo. Eu só me apercebi da dimensão do que tinha acontecido uns dias depois, porque a história é feita pela simultaneidade de muitos tempos e muitos lugares, e a nossa história individual e o nosso sofrimento tende a sobrepor-se às histórias alheias. A minha mãe tinha o dom de cruzar a sua história, e o seu caminho, com as histórias das pessoas com nome ou sem nome que lhe estavam próximas, ou que estavam do outro lado do mundo. Teria escrito um artigo para o Público sobre estas mil pessoas que não tiveram a possibilidade de ter a dignidade na morte. Agora que a minha mãe está no outro lado do caminho, já não pode escrever. Mas a sua força, as suas lutas, a sua serenidade, o seu sorriso, a sua fé podem continuar a motivar-nos para fazer deste o tal mundo melhor de que falava o seu querido amigo Frei Bento Domingues.   

Filipa Lowndes Vicente

03 maio 2015

Não vos conformeis com este mundo

Frei Bento Domingues, O.P.

1. Nada mais irritante, no plano religioso, do que a invocação da vontade de Deus para justificar situações, acontecimentos trágicos, doenças, injustiças e misérias. Essa invocação é um insulto à inteligência humana e ao mistério insondável da divindade e da natureza. A laicização dessa mentalidade justificou a imoralidade de medidas de ordem económica, financeira e política, repetindo, anos a fio, que não havia alternativa à austeridade. Austeridade que, segundo outros, colocou milhares de pessoas na zona do insuportável e paralisou as energias criadoras de vastos sectores da sociedade.

Seja como for, Thomas Piketty, o celebrado autor de O Capital no século XXI, veio agora dizer ao Público [1] que há sempre alternativas: ”O que é realmente dramático é que transformámos uma crise que nasceu no sector financeiro privado americano numa crise de dívida pública, apesar de, inicialmente, a zona euro não ter mais dívida pública do que os EUA, o Reino Unido ou o Japão. Conseguimos, apenas por causa das nossas más instituições e más decisões macroeconómicas, criar uma crise a partir de nada”.

Este investigador mostra-se interessado em transformar a opinião pública, acabando com a sacralização da economia como conhecimento de um pequeno grupo de iluminados, que difunde a ideia de um universo “demasiado complicado”.

Vem isto a propósito de uma conferência, realizada em Tomar. Estava inscrita numa série destinada à preparação das festas do Espírito Santo que, nesta cidade, se exprime no exuberante “cortejo dos tabuleiros”. O tema que me foi atribuído - a dimensão social dessas celebrações – obrigou-me ao cruzamento do religioso, do económico, do social e do político, procurando não diluir nem separar esses diversos planos.

2. Na origem de tudo – para lá da festa agrária das colheitas - está a narrativa dos Actos dos Apóstolos [2], sobre uma comunidade de partilha integral dos bens, consequência do Pentecostes cristão: tinham tudo em comum, entre os seus membros não havia indigentes e cada um recebia conforme a sua necessidade.

O Abade Joaquim de Flora [3], da Calábria, viu nessa experiência do passado, em pequena escala, o futuro, a última era do mundo. Mediante uma original teologia da história, distribuiu o tempo por cada uma das pessoas da Santíssima Trindade. A era do reinado do Divino Espírito Santo superava e tornava caduca a época do Pai e a do Filho. Inaugurava o reinado do puro amor, da liberdade e da alegria, cume insuperável da história humana, sem contradições nem mediações. [4]

Este visionarismo teve uma posteridade, sempre renascente, desde a Idade Média, passando pela modernidade até aos nossos dias, em diversas versões, de modo original, na cultura portuguesa. [5]

3. O percurso inaugurado pela Rainha Santa Isabel, dentro de uma espiritualidade franciscana, desde Alenquer, Sintra e outras localidades teve, nos Açores, um lugar privilegiado e, através da sua imigração, alcançou uma difusão imparável para o Brasil, EUA, Canadá, etc.

Já no século XVI esta festa era celebrada a bordo das Naus do Brasil e das Armadas da India. Em carta enviada para Itália, desde Goa, o missionário jesuíta, Fúlvio de Gregori, comunica o seguinte: “Costumam os portugueses eleger um imperador pela festa de Pentecostes e assim aconteceu também nesta nau S. Francisco. Com efeito, elegeram um menino para imperador, na vigília de Pentecostes, no meio de grande aparato. Vestiram-no depois muito ricamente e puseram-lhe na cabeça a coroa imperial. Escolheram também fidalgos para seus criados e oficiais às ordens, de modo que o capitão foi nomeado mordomo da sua casa, outro fidalgo foi nomeado copeiro, enfim, cada um com o seu ofício, à disposição do imperador. Até entraram nisto os oficiais da nau, o mestre, o piloto, etc. Depois, no dia de Pentecostes (ou Páscoa do Espírito Santo), trajando todos a primor, fez-se um altar na proa da nau, por ali haver mais espaço, com belos panos e prataria. Levaram, então, o imperador à missa, ao som de música, tambores e festa e ali ficou sentado numa cadeira de veludo com almofadas, de coroa na cabeça e ceptro na mão, cercado pela respectiva corte, ouvindo-se entretanto as salvas de artilharia. Comeram depois os cortesãos do imperador e, por fim, serviram toda a gente ali embarcada, à volta de trezentas pessoas.” [6]

O recurso à entronização de uma criança-imperador, com todas as insígnias imperiais, assim como a partilha da mesma mesa, é uma subversão política, económica e social. Pode alimentar o desejo de um mundo às avessas do actual, mas ao acontecer uma vez por ano, em versão folclórica, pode reforçar o conformismo.

Prefiro, por isso, o carácter imperativo da posição de S. Paulo sobre o Espírito Santo, pois é este mundo que geme e sofre a dores de parto até ao presente, que é preciso transformar: Não vos conformeis com este mundo. [7] 

Público, 03.05.2015

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[1] 28. 04. 2015
[2]  Act 4, 32-37
[3] 1132-1202
[4] O Google tem diversas entradas sobre toda esta vasta problemática
[5] José Eduardo Franco, Revista Portuguesa de Ciência das Religiões – Ano I, 2002 / n.º 1 – 75-94, Cf Google,
[6] CF Irmandades do Divino Espírito Santo, Google
[7] Rm 8