Frei Bento Domingues, O.P.
1. Em 1946, depois de cuidada preparação, começava, em Palma de Maiorca, o conhecido movimento Cursilhos de Cristandade. Eduardo Bonnin Aguiló foi sempre reconhecido como o seu carismático fundador. Vi-o e ouvi-o apresentar-se apenas como “aprendiz de cristão”.
Em Portugal, realizou-se o primeiro cursilho, em Fátima, de 19.11 a 02.12, de 1960. Frequentei o terceiro realizado no Porto. Ainda conservo o meu Guia de Peregrino.
No princípio, este movimento destinava-se a proporcionar aos homens a descoberta, em três dias, de uma nova paisagem católica e operar uma viragem radical de comportamento pessoal, para alterar ambientes onde os participantes fossem considerados “vértebras da sociedade”.
Cada cursilho obedecia a uma selecção dos participantes, apenas de varões, apoiado em ficha secreta. Era moderadamente interclassista. O cenário do acolhimento, o cancioneiro espanholado, de colores, os gestos, os rolhos doutrinais, recheados de anedotas certeiras, destinavam-se a desconstruir o imaginário de uma religião beata e para beatas e fazer a passagem exaltante para o essencial de um catolicismo másculo, marcado pela euforia do sacrifício e do testemunho, sem preocupações de transformação social imediata. O grande e repetido enunciado de marca, com eficácia do melhor marketing, era este: a religião católica não é para mulheres.
Se os conteúdos dos cursilhos, os rolhos, eram tradicionalistas, a sua inscrição num ritmo de emoções muito fortes criava um ambiente que não deixava lugar para dúvidas ou questionamentos. Estavam espantosamente bem concebidos do ponto de vista técnico e psicológico, com tudo previsto até ao último pormenor e uma rede informativa que não deixava ao acaso nenhuma reacção dos participantes.
Tratava-se de um acontecimento da graça do Espírito Santo do qual a organização e os intervenientes eram puros instrumentos, pincéis do divino artista, mas que Ele não dispensava nem era possível alterar.
Quando, no Domingo, pelas duas da manhã, muitos daqueles inebriados chegavam a casa, acordavam a família e punham-na a rezar de joelhos e a cantar, em espanhol, de colores! As mulheres que, anos a fio, com tanto esforço, tentaram levar os maridos à Missa, sem qualquer resultado, passavam a não entender donde vinha tanto fervor.
O pós-cursilho tentava reeditar o fervor emocional e delirante da noite da sua conclusão, a “mega-ultreia”.
Dizia-se que os cursilhos de senhoras nasceram para que pudessem entender a nova religião dos maridos.
Segundo me dizem, realizaram-se, entretanto, ajustamentos de acordo com as redescobertas eclesiológicas do Vaticano II.
Apesar de tudo, os cursilhos foram uma pedrada eficaz no charco do conformismo anti-religioso.
2. Sabemos que foi às mulheres, suas discípulas, que Jesus ressuscitado confiou a reevangelização dos Apóstolos. Cristo respondeu assim ao seguimento e à fidelidade inquebrantável de um grupo de mulheres que, ao contrário dos discípulos, nunca lhe pediu nada em troca.
Numa obra, de grande e rigorosa erudição [1], A. Cunha de Oliveira desmascara O Código Da Vinci, de Dan Brown, retomando todo o dossier do absolutamente inverosímil casamento de Jesus com Maria Madalena e aborda, de forma minuciosa, o discipulado das mulheres, assim como os seus ministérios ordenados até ao séc. IV.
Jesus de Nazaré, celibatário, “apreciava a amizade, a companhia, o apoio, o serviço e até as provas de apreço e de gratidão que as mulheres lhe prestavam”. Quando, no Concílio de Niceia, se considerou a hipótese de impor o celibato aos diáconos, padres e bispos, foi Pafnúcio, o famoso bispo celibatário do Alto Egipto, quem dissuadiu os colegas de tomar tal decisão!
3. A bibliografia sobre a relação entre a Igreja Católica e o Estado Novo não pára de aumentar [2]. A longa agonia da Acção Católica, a chegada de movimentos católicos, de índole internacional e a sua marca na configuração do catolicismo português, a partir dos anos 60, apresenta-se, pelo contrário, ainda pouco estudada. Parece-me urgente, no entanto, dar a conhecer às novas gerações o papel desenvolvido por um conjunto de mulheres, na segunda metade do séc. XX e no séc. XXI de um caminho, muito novo, em Portugal.
Estou a referir-me à reabilitação exemplar de um catolicismo feminista, sem complexos nem obsessões anti-masculinas.
É sempre como mulheres e homens que Deus os cria e recria, sem subordinações nem imposições recíprocas. São apenas admiravelmente diferentes e cooperantes. Substituindo o poder de dominar pelo gosto de servir a emancipação de todos os seres humanos, as mulheres retomam o testemunho do Evangelho da ressurreição do mundo.
Foi assim que conheci Maria Natália Duarte Silva Teotónio Pereira (1930-1971); Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004): Maria de Lourdes Pintasilgo (1930-2004); Ana Vicente (1943-2015); Maria de Jesus Simões Barroso Soares (1925-2015). Evoco apenas aquelas que já vivem na alegria de Deus e no cuidado da nossa Casa Comum.
Público, 19.07.2015
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[1] Jesus de Nazaré e as Mulheres. A propósito de Maria madalena, Instituto açoriano de cultura, Angra do Heroísmo, 2011
[2] Cf. Povos e Culturas, Nº Especial, 2O14
1. Em 1946, depois de cuidada preparação, começava, em Palma de Maiorca, o conhecido movimento Cursilhos de Cristandade. Eduardo Bonnin Aguiló foi sempre reconhecido como o seu carismático fundador. Vi-o e ouvi-o apresentar-se apenas como “aprendiz de cristão”.
Em Portugal, realizou-se o primeiro cursilho, em Fátima, de 19.11 a 02.12, de 1960. Frequentei o terceiro realizado no Porto. Ainda conservo o meu Guia de Peregrino.
No princípio, este movimento destinava-se a proporcionar aos homens a descoberta, em três dias, de uma nova paisagem católica e operar uma viragem radical de comportamento pessoal, para alterar ambientes onde os participantes fossem considerados “vértebras da sociedade”.
Cada cursilho obedecia a uma selecção dos participantes, apenas de varões, apoiado em ficha secreta. Era moderadamente interclassista. O cenário do acolhimento, o cancioneiro espanholado, de colores, os gestos, os rolhos doutrinais, recheados de anedotas certeiras, destinavam-se a desconstruir o imaginário de uma religião beata e para beatas e fazer a passagem exaltante para o essencial de um catolicismo másculo, marcado pela euforia do sacrifício e do testemunho, sem preocupações de transformação social imediata. O grande e repetido enunciado de marca, com eficácia do melhor marketing, era este: a religião católica não é para mulheres.
Se os conteúdos dos cursilhos, os rolhos, eram tradicionalistas, a sua inscrição num ritmo de emoções muito fortes criava um ambiente que não deixava lugar para dúvidas ou questionamentos. Estavam espantosamente bem concebidos do ponto de vista técnico e psicológico, com tudo previsto até ao último pormenor e uma rede informativa que não deixava ao acaso nenhuma reacção dos participantes.
Tratava-se de um acontecimento da graça do Espírito Santo do qual a organização e os intervenientes eram puros instrumentos, pincéis do divino artista, mas que Ele não dispensava nem era possível alterar.
Quando, no Domingo, pelas duas da manhã, muitos daqueles inebriados chegavam a casa, acordavam a família e punham-na a rezar de joelhos e a cantar, em espanhol, de colores! As mulheres que, anos a fio, com tanto esforço, tentaram levar os maridos à Missa, sem qualquer resultado, passavam a não entender donde vinha tanto fervor.
O pós-cursilho tentava reeditar o fervor emocional e delirante da noite da sua conclusão, a “mega-ultreia”.
Dizia-se que os cursilhos de senhoras nasceram para que pudessem entender a nova religião dos maridos.
Segundo me dizem, realizaram-se, entretanto, ajustamentos de acordo com as redescobertas eclesiológicas do Vaticano II.
Apesar de tudo, os cursilhos foram uma pedrada eficaz no charco do conformismo anti-religioso.
2. Sabemos que foi às mulheres, suas discípulas, que Jesus ressuscitado confiou a reevangelização dos Apóstolos. Cristo respondeu assim ao seguimento e à fidelidade inquebrantável de um grupo de mulheres que, ao contrário dos discípulos, nunca lhe pediu nada em troca.
Numa obra, de grande e rigorosa erudição [1], A. Cunha de Oliveira desmascara O Código Da Vinci, de Dan Brown, retomando todo o dossier do absolutamente inverosímil casamento de Jesus com Maria Madalena e aborda, de forma minuciosa, o discipulado das mulheres, assim como os seus ministérios ordenados até ao séc. IV.
Jesus de Nazaré, celibatário, “apreciava a amizade, a companhia, o apoio, o serviço e até as provas de apreço e de gratidão que as mulheres lhe prestavam”. Quando, no Concílio de Niceia, se considerou a hipótese de impor o celibato aos diáconos, padres e bispos, foi Pafnúcio, o famoso bispo celibatário do Alto Egipto, quem dissuadiu os colegas de tomar tal decisão!
3. A bibliografia sobre a relação entre a Igreja Católica e o Estado Novo não pára de aumentar [2]. A longa agonia da Acção Católica, a chegada de movimentos católicos, de índole internacional e a sua marca na configuração do catolicismo português, a partir dos anos 60, apresenta-se, pelo contrário, ainda pouco estudada. Parece-me urgente, no entanto, dar a conhecer às novas gerações o papel desenvolvido por um conjunto de mulheres, na segunda metade do séc. XX e no séc. XXI de um caminho, muito novo, em Portugal.
Estou a referir-me à reabilitação exemplar de um catolicismo feminista, sem complexos nem obsessões anti-masculinas.
É sempre como mulheres e homens que Deus os cria e recria, sem subordinações nem imposições recíprocas. São apenas admiravelmente diferentes e cooperantes. Substituindo o poder de dominar pelo gosto de servir a emancipação de todos os seres humanos, as mulheres retomam o testemunho do Evangelho da ressurreição do mundo.
Foi assim que conheci Maria Natália Duarte Silva Teotónio Pereira (1930-1971); Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004): Maria de Lourdes Pintasilgo (1930-2004); Ana Vicente (1943-2015); Maria de Jesus Simões Barroso Soares (1925-2015). Evoco apenas aquelas que já vivem na alegria de Deus e no cuidado da nossa Casa Comum.
Público, 19.07.2015
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[1] Jesus de Nazaré e as Mulheres. A propósito de Maria madalena, Instituto açoriano de cultura, Angra do Heroísmo, 2011
[2] Cf. Povos e Culturas, Nº Especial, 2O14
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