Frei Bento Domingues, O.P.
1. A vida é feita de conflitos e consensos. As instituições precisam de mediações e instâncias que saibam estimular e regular a participação viva de todos os seus membros. Esta é também uma questão fulcral das Igrejas.
O último número da revista da faculdade de teologia, Didaskalia [1], é dedicado, precisamente, à Sinodalidade na Igreja. Não é importante apenas pela circunstância de continuar em debate o Sínodo dos bispos sob a família e de vários sínodos diocesanos. Merece especial destaque pela qualidade dos estudos reunidos, de várias nacionalidades, sobre um tema que percorre, desde o começo até aos nossos dias, os momentos mais marcantes da História da Igreja local e universal e que está longe de ter encontrado modalidades perfeitas, para não dizer minimamente aceitáveis.
Curiosamente, Medard Kehl, SJ, abre o seu texto dando a palavra a um céptico, o famoso Gregório Nanzianzo (329 – 389), bispo e teólogo de Constantinopla. Céptico, porque andava enjoado com a pouca produtividade de tantas assembleias de bispos locais ou universais em que participara. Ele próprio confessou: na verdade, eu evito todo e qualquer Sínodo, porque ainda não assisti a um final feliz em nenhuma dessas reuniões, nem vi que qualquer delas tivesse encontrado solução para os males. Pelo contrário, amplia-os. As disputas e as rivalidades são constantes e mais do que é possível descrever com palavras.
Este juízo arrasador sobre sínodos ou concílios tornou-se um lugar-comum para os adversários destas instituições: “muito palavreado, muita rixa, nenhumas soluções de monta para os problemas pendentes e, em vez disso, o seu agravamento”.
Por outro lado, este extremismo, azedo e mordaz, gerou outro muito recente e de sinal contrário: o clericalismo. O ministério eclesiástico e a hierarquia passaram a chamar a si a decisão de configurar o futuro da Igreja. Eles é que sabem, eles é que mandam. Não acreditam no diálogo, isto é, no equilíbrio a conseguir entre várias tendências e pontos de vista em conflito.
2. O Vaticano II (1962-65) apelou para a importância da colegialidade episcopal, embora em fórmulas de compromisso entre reformistas e conservadores. Não conseguiu destronar o clericalismo. Certa posteridade até o revigorou. 50 anos depois, o Papa Francisco, com poucos meses de pontificado, surpreendeu muita gente ao convocar uma terceira Assembleia Geral Extraordinária sobre “Os desafios pastorais da família no contexto da evangelização”. Celebrou-se em Outubro de 2014 e serviu de preparação para a XIV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, prevista para Outubro de 2015, com o lema: “Jesus Cristo revela o mistério e a vocação da família”.
Veremos o que daí vai sair, dado que a sensibilidade familiar dos bispos católicos e celibatários é configurada de forma bastante indirecta e a representação familiar propriamente dita é insignificante. Graças ao Papa Bergoglio, o processo foi reatado, está em andamento, mas por um caminho cheio de obstáculos.
Não se deve esquecer que foram bispos com o papa que assinaram os documentos conciliares, afirmando que a Igreja não é constituída apenas pela hierarquia. Esta está ao serviço de todos os cristãos e só com eles forma a Igreja de Jesus Cristo. Quem se atrevesse a dizer: os cristãos não contavam para a orientação da Igreja e devem continuar a ser ignorados, seria considerado uma anedota, mas ter, na prática, esse comportamento é apenas ser conservador. Teremos de renunciar à declaração fundamental e conciliar, nós, cristãos, somos a Igreja? Teremos de renunciar a ter voz na Igreja, para que ela tenha voz no mundo?
3. Por estas razões, importa rever toda a história da vida conciliar e sinodal, como pedia o grande historiador Guiseppe Alberigo, citado no estudo de I. Pereira Lamelas. De outro modo não saímos do mundo clerical em que “os demais membros da Igreja têm um papel meramente facultativo”.
Vale a pena observar a atmosfera descrita pelo bispo de Alexandria, Dionísio (séc. III), de uma reunião conciliar, para responder a alguns cristãos acusados de seguirem a heresia milenarista. O debate decorreu durante três dias, do nascer ao pôr-do-sol:
Público, 12.07.2015
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[1] Vol. XLV, 2015, fasc.1, pp. 135-144
1. A vida é feita de conflitos e consensos. As instituições precisam de mediações e instâncias que saibam estimular e regular a participação viva de todos os seus membros. Esta é também uma questão fulcral das Igrejas.
O último número da revista da faculdade de teologia, Didaskalia [1], é dedicado, precisamente, à Sinodalidade na Igreja. Não é importante apenas pela circunstância de continuar em debate o Sínodo dos bispos sob a família e de vários sínodos diocesanos. Merece especial destaque pela qualidade dos estudos reunidos, de várias nacionalidades, sobre um tema que percorre, desde o começo até aos nossos dias, os momentos mais marcantes da História da Igreja local e universal e que está longe de ter encontrado modalidades perfeitas, para não dizer minimamente aceitáveis.
Curiosamente, Medard Kehl, SJ, abre o seu texto dando a palavra a um céptico, o famoso Gregório Nanzianzo (329 – 389), bispo e teólogo de Constantinopla. Céptico, porque andava enjoado com a pouca produtividade de tantas assembleias de bispos locais ou universais em que participara. Ele próprio confessou: na verdade, eu evito todo e qualquer Sínodo, porque ainda não assisti a um final feliz em nenhuma dessas reuniões, nem vi que qualquer delas tivesse encontrado solução para os males. Pelo contrário, amplia-os. As disputas e as rivalidades são constantes e mais do que é possível descrever com palavras.
Este juízo arrasador sobre sínodos ou concílios tornou-se um lugar-comum para os adversários destas instituições: “muito palavreado, muita rixa, nenhumas soluções de monta para os problemas pendentes e, em vez disso, o seu agravamento”.
Por outro lado, este extremismo, azedo e mordaz, gerou outro muito recente e de sinal contrário: o clericalismo. O ministério eclesiástico e a hierarquia passaram a chamar a si a decisão de configurar o futuro da Igreja. Eles é que sabem, eles é que mandam. Não acreditam no diálogo, isto é, no equilíbrio a conseguir entre várias tendências e pontos de vista em conflito.
2. O Vaticano II (1962-65) apelou para a importância da colegialidade episcopal, embora em fórmulas de compromisso entre reformistas e conservadores. Não conseguiu destronar o clericalismo. Certa posteridade até o revigorou. 50 anos depois, o Papa Francisco, com poucos meses de pontificado, surpreendeu muita gente ao convocar uma terceira Assembleia Geral Extraordinária sobre “Os desafios pastorais da família no contexto da evangelização”. Celebrou-se em Outubro de 2014 e serviu de preparação para a XIV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, prevista para Outubro de 2015, com o lema: “Jesus Cristo revela o mistério e a vocação da família”.
Veremos o que daí vai sair, dado que a sensibilidade familiar dos bispos católicos e celibatários é configurada de forma bastante indirecta e a representação familiar propriamente dita é insignificante. Graças ao Papa Bergoglio, o processo foi reatado, está em andamento, mas por um caminho cheio de obstáculos.
Não se deve esquecer que foram bispos com o papa que assinaram os documentos conciliares, afirmando que a Igreja não é constituída apenas pela hierarquia. Esta está ao serviço de todos os cristãos e só com eles forma a Igreja de Jesus Cristo. Quem se atrevesse a dizer: os cristãos não contavam para a orientação da Igreja e devem continuar a ser ignorados, seria considerado uma anedota, mas ter, na prática, esse comportamento é apenas ser conservador. Teremos de renunciar à declaração fundamental e conciliar, nós, cristãos, somos a Igreja? Teremos de renunciar a ter voz na Igreja, para que ela tenha voz no mundo?
3. Por estas razões, importa rever toda a história da vida conciliar e sinodal, como pedia o grande historiador Guiseppe Alberigo, citado no estudo de I. Pereira Lamelas. De outro modo não saímos do mundo clerical em que “os demais membros da Igreja têm um papel meramente facultativo”.
Vale a pena observar a atmosfera descrita pelo bispo de Alexandria, Dionísio (séc. III), de uma reunião conciliar, para responder a alguns cristãos acusados de seguirem a heresia milenarista. O debate decorreu durante três dias, do nascer ao pôr-do-sol:
Pude, então, admirar o equilíbrio, o amor à verdade, a facilidade de acompanhar o raciocínio, a inteligência dos irmãos quando, por ordem e com moderação, íamos expondo as perguntas, as objecções e os pontos de convergência. Por um lado, tínhamos recusado agarrar-nos obstinada e zelosamente a decisões já tomadas, mesmo quando pareciam justas; por outro lado, não evitávamos as objecções, mas, na medida do possível, dispúnhamo-nos a abordar os temas propostos de forma cabal. Não nos envergonhávamos, tão pouco, de mudar de ideias e concordar se a argumentação o exigia; antes pelo contrário, de plena consciência e sem hipocrisia e com o coração aberto a Deus, aceitamos o que era exposto pelos argumentos e os ensinamentos das Sagradas Escrituras.Não estávamos lá para saber se o bispo Dionísio não seria um pouco lírico, mas, para considerações azedas, já temos as do bispo Gregório Nanzianzo. São bispos. Para vencer o clericalismo é preciso escutar também, nas cidades e nas aldeias, a voz dos cristãos que lutam por uma Igreja de todos ao serviço da casa comum.
Público, 12.07.2015
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[1] Vol. XLV, 2015, fasc.1, pp. 135-144
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