Entrevista
Carlos
Vaz Marques (Texto) e Nuno Ferreira Santos (Fotografia)
Público
20/12/2015
O
escritor Frederico Lourenço, fascinado pelo texto bíblico, tem dificuldade em
aceitá-lo como texto sagrado. Levámo-lo ao encontro de um religioso conhecido
pela sua heterodoxia. Há um aspecto em que Frei Domingues e Frederico Lourenço
estão de acordo: Jesus “sabe sempre bem".
Sabe bem
entrar na pequena sala do Convento de São Domingos, onde havemos de ficar a
conversar longamente. O anfitrião, Frei Bento Domingues, deixou previamente
ligado um aquecedor que nos reconforta, depois da ventania do Alto dos Moinhos.
Antes disso, foi cicerone pelos espaços do convento, onde vivem cerca de três
dezenas de religiosos. Em cima da mesa, entre papelada diversa, está um
exemplar de O Livro Aberto — Leituras da Bíblia (edição Cotovia), a publicação
mais recente de Frederico Lourenço. Aos 52 anos, o escritor define-se como um
ex-católico, à procura de uma conciliação entre o pensamento racional e a
figura de Jesus. A doutrina da Igreja acerca da homossexualidade não é alheia,
evidentemente, a esse corte com a prática religiosa, sendo Frederico Lourenço
um gay assumido. Mas há outras dúvidas e inquietações de que dá testemunho no
livro que serve de pretexto a este encontro. Frei Bento já o tinha lido quando
lhe liguei desafiando-o para a conversa com o escritor. Entre concordâncias e
discordâncias, salta à vista o mesmo entusiasmo pelo texto bíblico de dois
leitores da Bíblia separados pela questão da fé.
Ao lerem
a Bíblia, lêem ambos o mesmo livro ou a fé, que um tem e o outro não, altera
substancialmente a leitura?
Frederico
Lourenço — A fé pode alterar, naturalmente, o olhar sobre o livro. Se tivermos
fé, e sobretudo se estivermos a ler o livro de acordo com a crença e a prática
de uma qualquer modalidade do cristianismo — pode ser católica, luterana,
protestante —, estamos condicionados para ver um sentido que, se não tivermos
fé, não somos obrigados a ver.
Frei
Bento Domingues — O que é importante, antes de mais, é o facto de a Bíblia ser
a biblioteca de um povo: de épocas muito diferentes, com géneros literários e
problemáticas também muito diferentes.
Na
verdade são duas bibliotecas: o Antigo Testamento e o Novo Testamento.
F.B.D. —
Sim. Os cristãos depois integraram-na, fazendo a sua interpretação a partir de
Jesus. Releram o Antigo Testamento em função desse acontecimento. Por isso é
que muitas vezes aquilo é artificial. Depois do acontecimento lêem para trás.
Não é que antes já previssem Jesus, depois do acontecimento é que já vêem lá
tudo.
F.L. —
Pessoas como o Frei Bento já estudam estes assuntos há muitos anos. Dar-se-ão
conta de que muitas das coisas que pergunto no meu livro são perguntas feitas
já desde o século XVIII. Até desde antes disso. São interrogações que vale
sempre a pena voltar a colocar porque estamos agora numa altura em que,
sobretudo noutras vertentes do cristianismo que não o catolicismo, se está a
derivar para uma crença fundamentalista, voltando a interpretar à letra tudo o
que está na Bíblia, como se fosse a palavra infalível de Deus.
Esta
questão da literalidade na leitura é relevante.
F.B.D. —
É importante, sim. A exegese histórico-crítica da Bíblia começou em grande
parte no mundo protestante. Foi levantada por um padre francês mas abafada, e
depois reapareceu a partir dos séculos XVIII, XIX. Recordo-me que o meu
professor de Antigo Testamento, em Salamanca, nos dizia sempre: “Quando virem
números na Bíblia, tirem sempre dois zeros. Pode-se provar que nem sequer havia
naquela povoação tanta gente.” Era uma leitura extremamente crítica e que tinha
dois efeitos: vacinava uns contra todos esses fundamentalismos, mas encrespava
outros: “Então e a nossa teologia, todos os argumentos que temos?” Dizia ele
assim: “Já ensinei toda a vossa filosofia a um papagaio; vós repetis mas isso
nada tem a ver com o que se passa na Bíblia.” Quanto ao Frederico, há uma
tarefa lindíssima a que poderia dedicar-se: seria a tradução da Bíblia dos
Setenta, que foi escrita em grego.
F.L. —
Ando a pensar nisso. Já recebi vários incentivos.
F.B.D. —
Ainda bem. Aquilo que aparece no seu livro são coisas já muito debatidas,
embora sejam conhecidas sobretudo pelos especialistas. Quanto ao resto das
pessoas, ainda ouvem as leituras da Bíblia num clima, não digo de fé ou não fé,
mas mais piedoso ou menos piedoso. Quando as pessoas falam de fé incluem nisso
certas crendices e uma atitude interior em que encontram, na adesão ao mistério
do mundo, ao mistério da vida, ao mistério de Deus, aquilo a que chamam
“sagrado”. Descobrem aí uma expansão da vida.
F.L. —
São dois os problemas que identifico na leitura da Bíblia, os meus dois grandes
problemas como leitor da Bíblia. Um deles é que discordo racionalmente da
exegese que se faz, sobretudo do Antigo Testamento, por cristãos e católicos.
Em particular, a ideia de que o que temos de fazer é aprender a ler a Bíblia,
conseguindo ver no texto o que não está lá. A minha tese é que nenhum dos
autores dos 70 livros que compõem aquilo a que chamamos a Bíblia, nenhum,
escreveu com o intuito de que nós lêssemos nas palavras deles outra coisa que
não as palavras que foram escritas.
Poderá é
haver chaves de leitura que hoje é preciso conhecer.
F.L. —
Sim, todas as chaves são possíveis. E haverá um milhão de chaves. Mas a minha
leitura leva-me à crença de que isso é assim mesmo nos livros proféticos. Dou o
exemplo de Ezequiel, que é lido de forma totalmente alegórica, metafórica. Ele
escreveu tudo o que escreveu para ser lido exactamente com o sentido que as
palavras têm.
O que é importante, antes de mais, é
o facto de a Bíblia ser a biblioteca de um povo: de épocas muito diferentes,
com géneros literários e problemáticas também muito diferentes
Frei Bento Domingues
F.B.D. —
Uma coisa é ler o texto, outra coisa é a hermenêutica do texto, que tem sempre
muitos pressupostos filosóficos, literários. A grande dificuldade que sempre
tive é com o insuportável da violência na Bíblia. Um Deus que manda matar, que
se mate ele, não o aturo! E as pessoas diziam: “Mas isso está revelado.”
Revelado por quem? O Francolino Gonçalves, um confrade meu, que está na Escola
Bíblica de Jerusalém há 45 anos, foi fazer uma análise dos diferentes javeísmos
que havia na Bíblia, as diferentes formas de dizer Deus. São muitos, mas ele
distingue dois tipos. Um, o sapiencial: “Criou o Céu e a Terra.” Aqui a palavra
“criou” não tem o sentido de Darwin, nem o nosso sentido metafísico: é a
organização do caos. Os textos tipicamente sapienciais são universalistas. E
depois, a partir da saída do Egipto, há os textos patrióticos, que põem na boca
de Deus aquilo que lhes interessa a eles. Deus tem de dar porrada nos nossos
inimigos. Tem de estar do nosso lado. Somos capazes de pôr Deus ao serviço dos
nossos crimes. Aquilo que consideramos supremo, rebaixamo-lo a instrumento das
nossas políticas, das nossas intenções.
Isso é
válido também para um livro como o Livro de Job?
F.B.D. —
O Livro de Job é um livro da sabedoria.
F.L. —
Penso que o Deus que está implícito no Livro de Job não é muito melhor do que
este que acabou de ser referido, o daqueles livros históricos mais
sanguinários. Como leitor do Livro de Job, não fico muito enaltecido com a
imagem de Deus que transparece nele.
F.B.D. —
O Livro de Job tem várias políticas internas. Tem vários autores. Tomás de
Aquino, ao ler esse livro, perguntou: “Mas pode-se discutir com Deus?” Pode, se
se tem razão. E Job tinha razão, podia discutir com Deus.
Pode
ler-se a Bíblia apenas em termos estritamente literários?
F.L. — A
Bíblia interessa-me, claro, enquanto texto literário. Como leitor. Mas não é
essa a vertente que mais me interessa, sendo alguém que tenta reflectir um
pouco sobre o texto bíblico. Não nego de forma alguma a força e a qualidade
literária da Bíblia. São textos magníficos, todos eles. Uns mais do que outros,
claro. Mas a minha abordagem à Bíblia não é essa. A minha abordagem tem mais a
ver com a tentativa de conciliar racionalmente as dúvidas que ela me levanta,
como alguém que se interessa profundamente pela religião, pelo cristianismo e
pelo texto bíblico, desde sempre. Tento equacionar em que consistem as dúvidas
que me impedem de me afirmar como cristão, ou crente, a cem por cento. Outro
problema é o da lente transfiguradora através da qual a vida de Jesus é narrada
nos quatro evangelhos. Sempre como prova de que as profecias estavam a ser
cumpridas em tudo o que Jesus fez e não fez. Quando começamos a olhar mais
aprofundadamente para essa relação — entre aquilo que foi a vida de Jesus e
aquilo que os evangelistas narram —, somos constantemente levados a perguntar:
este facto que está aqui a ser narrado é ou não verdadeiro? Há, constantemente,
um véu entre aquilo que verdadeiramente aconteceu, que eu gostaria de saber o
que foi, e a minha leitura. Esse véu é a interposição do texto do Antigo
Testamento, que está a criar constantemente uma barreira entre a vida de Jesus
e nós, que estamos a tentar compreender o que foi a vida de Jesus. Isso
impede-nos de saber o que realmente se passou.
É por
isso que o seu evangelho preferido é o de João, por sentir que é o que está
mais próximo dos factos?
F.L. —
João também tem esse problema. É um texto magnífico.
F.B.D. —
Em relação a João, as últimas investigações são muito engraçadas: são três
“Joões”. O texto passou por três fases e hoje, como se faz análise
histórico-crítica, é como na Arqueologia: uma camada, depois outra…
F.L. —
Tenho problemas com isso. Tinham de ser três “Joões” muito bem combinados entre
si. Justamente por ser tão estilisticamente unitário.
F.B.D. —
Há um aspecto importante: Jesus não escreveu nada. Então, o que temos? Sei que
as outras pessoas não vão por aí mas isso não me interessa, o nosso primeiro
direito é o de pensar livremente. Os textos são muito posteriores ao que
aconteceu. O que me impressiona é que — apesar de enfoques distintos nas
diferentes comunidades, porque surgiram grupos muito diferentes em sítios muito
diferentes — todos me falam de alguém que me sabe sempre bem.
F.L. —
Ah, sim.
Consigo sentir que eu, pessoalmente,
Frederico Maria, sou amado por Deus. Isso consigo. E até me interrogo porquê.
Mas olhando para o mundo à nossa volta, não vejo de modo algum o Deus do amor.
Acho que ele foi mesmo para o desemprego
Frederico Lourenço
F.B.D. —
Depois, uma coisa a que ninguém liga nada e que é a minha iluminação. No
Evangelho de Lucas há uma passagem, no capítulo dez, que me faz rir sempre que
a leio. Apresenta as coisas com os 12 apóstolos. Também é um número simbólico
como nas 12 tribos de Israel. Mas ele achou que só com 12 não iam muito longe.
Então inventa um envio de discípulos, uns 70. Quando voltam, a situação que
narra é como a dos adolescentes quando vão para um campo de férias. Ao voltarem
a casa, contam tudo aos pais; contam, contam, contam. Também eles vieram ter
com Jesus e disseram-lhe: “Foi fantástico!” Contaram-lhe tudo o que tinha
acontecido. E Jesus: “De facto correu mesmo bem, sim senhor.” Depois diz isto,
que é o coração da minha fé, aquilo que me ilumina interiormente: “Mas cuidado,
alegrai-vos sobretudo porque os vossos nomes estão inscritos nos Céus.” A
palavra “céus” era um substituto de Javé, de Adonai, um substituto de Deus.
“Alegrai-vos porque a vossa vida está inscrita no coração de Deus.” E depois,
acrescenta o texto: “E ele naquele momento comoveu-se com o que disse.”
Comoveu-se! Séculos e séculos andaram a querer ouvir isto e não ouviram, a
querer ver isto e não viram. Costumo dizer que se Deus é amor e se não nos ama
vai para o desemprego.
F.L. —
Acho isso muito bonito. Acho lindo. Mas pessoalmente não consigo senti-lo de
uma forma racional. Consigo sentir que eu, pessoalmente, Frederico Maria, sou
amado por Deus. Isso consigo. E até me interrogo porquê. Mas olhando de forma
completamente fria e objectiva para o mundo à nossa volta, não vejo de modo
algum o Deus do amor. Acho que ele foi mesmo para o desemprego. Não está a amar
as pessoas.
F.B.D. —
O Frederico está como aquele rabino que, quando lhe disseram que veio o
Messias, foi à janela e concluiu que não havia prova nenhuma de que ele tivesse
chegado. É de facto o mundo que temos. Mas quando se coloca o problema da
racionalidade, devo dizer que ainda não percebi bem o que é a razão. O Immanuel
Kant diz algo que me ajuda: a nossa razão tem a capacidade de levantar
problemas que não sabe resolver. É da própria natureza da nossa razão levantar
permanentemente problemas.
F.L. — A
grande vantagem da filosofia em relação à teologia e à catequese é que a
filosofia nos ensina a pensar criticamente. Penso que isso é uma grande dádiva
que já vem desde os gregos. Acho que devemos pensar criticamente. Deus,
existindo ou não, mesmo que exista não quer que abdiquemos da capacidade de
pensar criticamente e que deixemos de aplicar o pensamento crítico a tudo o que
nos ocorre na vida. Temos de exercer o pensamento crítico, que é
necessariamente diferente de pessoa para pessoa, não pode ser sempre
coincidente. Esse é o grande problema de uma religião como a religião católica:
querer conciliar biliões de seres humanos, levando-os a pensar mais ou menos a
mesma coisa, a ter um pensamento que vai sempre desaguar numa conclusão já
pré-determinada. Esse é o meu problema em relação à abordagem teológica, à
Bíblia no geral. Estou a falar mais no Novo Testamento, e concretamente nos
evangelhos, que é aquilo que mais me interessa. A discussão está viciada à
partida porque a conclusão já está pré-determinada. A conclusão tem de ser
consentânea com a doutrina católica.
F.B.D. —
Há aí um problema importante. Creio que, na Igreja Católica, se não tivesse
havido o Concílio Vaticano II, estaríamos como estão agora muitos muçulmanos em
relação ao Corão. Também se interpretava tudo como um ditado divino. Na Igreja
Católica, durante muito tempo, também se fazia dos textos do Antigo Testamento
uma emanação divina. Isso punha-me sempre o problema: o que fizeram ali os
escritores, porque é que aquilo não saiu tudo certo? No Vaticano II, quando o
Papa João XXIII diz que estava a fazer a barba e se lembrou de convocar um
concílio, havia na Igreja muitas tendências, muitos grupos, mas havia um Santo
Ofício que vigiava, que condenava. E antes tinha havido a Inquisição, que
queimava. O que se passou no Vaticano II foi que, desde o primeiro momento, se
começou a discutir um documento que só foi aprovado um dia antes da conclusão
do Concílio. Era o documento sobre a liberdade religiosa, sobre a liberdade de
consciência. Aquilo que o Frederico diz, é verdade: há um catálogo de dogmas,
se és católico tens de acreditar, isto está definido. Rio-me sempre disso. Quem
é que soube que aquilo é que era a verdade? Foi por catálogo. Escrevi, em 1956,
numa revista de estudantes católicos, por aí, que se deviam fechar todas as
faculdades de Teologia, acabar com todas as leituras da Bíblia, e ter uma
central telefónica (naquela altura, ainda só havia telefones). Os telefonemas
eram atendidos em Roma e perguntava-se: “Como é isto?” E de lá respondiam
[risos]. Era uma poupança. As pessoas escusavam de se preocupar, era só ligar.
Isto é uma imagem do absurdo das posições absolutistas. Foi essa a luta de todo
o século XX. Uma luta muito difícil mas que culminou nisto da liberdade
religiosa.
O
Frederico sente esta abertura ou ainda vê zonas de dogma?
F.L. —
Com todo o apreço, o que acho muitas vezes das pessoas da Igreja Católica, dos
teólogos, mesmo aqueles que têm fama de progressistas, é que essa atitude
alegadamente progressista o é muito pouco. Tenho andado a ler, por curiosidade,
alguns escritos daquele teólogo muito controverso, o enfant terrible da
teologia, Hans Küng, e estou muito desiludido com essa leitura. Ele não é nada
revolucionário naquilo que escreve. É completamente acomodatício em relação a
praticamente tudo o que esperaríamos de um homem tão anatematizado.
F.B.D. —
Tem razão nisso. Mas a questão que o Frederico põe só pode ser resolvida por
cada um. Não há ninguém que possa pensar por nós, nem nós podemos servir-nos da
autoridade deste ou daquele teólogo. Há pessoas com quem concordo mais, outras
com quem concordo menos, e outras com quem não concordo nada. Tenho de
estabelecer o meu itinerário.
Nalguns
casos, esse itinerário faz com que as pessoas acabem por perceber que o seu
caminho não coincide com o mapa da Igreja Católica.
F.B.D. —
Muitas pessoas dizem: “Tens todo o direito de pensar isto ou aquilo mas, se
achas isso, devias abandonar a Igreja.” Abandonar o quê? A Igreja de quem é? É
tão minha como dos outros. O problema é quando me perguntam: “O que é que fazes
pela Igreja?” Eu sou da Igreja. Agora, se me dizem que há um regime militar que
diz o que se deve querer e o que se deve fazer, digo a quem pensa assim que
cumpra isso, eu não. No seu livro, Frederico, há coisas admiráveis a este
respeito. Em tudo o que se diz nos textos do Novo Testamento da arte de ser de
Jesus, das formas mais desencontradas, encontro a alegria da vida. Porque ele
não quis morrer. Depois puseram lá que ele quis morrer. Não. Ele quis não
trair, que é completamente diferente. Ele não quis a cruz, puseram-lha às
costas. Ele podia pôr-se a andar.
F.L. —
Mas ele quis a cruz, quis esse desfecho.
F.B.D. —
Não, não.
F.L. —
“Para que se cumpra o que estava escrito.”
Aquilo que Jesus é, ?é para todos os
tempos e lugares. Cheira-me que por aqui passa Deus, passa o ser humano e passa
a vida e passa a alegria
Frei Bento Domingues
F.B.D. —
Mas isso é o que há bocado estivemos a dizer: foi uma forma de harmonizar,
dizendo que estava tudo previsto.
É o tal
véu de palavras em que não se sabe o que é facto e o que é construção
posterior.
F.B.D. —
Há coisas muito engraçadas. Quando o vão acusar de trabalhar ao sábado, por
exemplo. O sábado estava proibido, era o dia mais santificado. Até imaginaram
que o próprio Deus parou para não trabalhar ao sábado. Há uma narrativa
sacerdotal da criação que põe Deus a descansar ao sétimo dia. Era uma forma de
justificar aquela instituição — aliás, admirável — que mostra que o ser
humano não é só para trabalhar, também é para descansar. Só que, ao fazer do
dia de descanso uma obrigação, transformaram-no num colete de forças. Não se
podia fazer nada. Isso ainda acontece entre os fundamentalistas judaicos. Ora,
Jesus diz: “Não é o ser humano para o sábado, é o sábado para o ser humano. Não
é o homem para o sacrifício, os sacrifícios é que são para os seres humanos.”
Creio, é a minha interpretação muito subjectiva, que Jesus não queria a cruz,
nunca a quis. Ele até foi acusado foi de estar com os copos.
F.L. —
Porque não jejuam, nem ele nem os discípulos. Ele responde: “Enquanto o noivo
está cá, porque é que hão-de jejuar?”
F.B.D. —
No Evangelho de Lucas dizem mesmo que ele é um beberrão e um glutão. Que não
faz nada como João Baptista, que era um homem austero. Jesus está sempre à mesa
com aqueles que são vistos como pecadores e marginais. Ele queria abrir um novo
caminho, um caminho de liberdade, um caminho de felicidade para as pessoas. Por
isso é que lhe chamavam evangélico; era um caminho de alegria, a boa nova. Ora,
correu tudo mal. O que me parece é que ele, pelo testemunho que temos, na
própria cruz transformou o seu Deus — “Senhor, porque me abandonaste?” — no
Deus das vítimas.
F.L. —
Ele só diz isso em dois evangelhos, nos outros dois não diz. Em João diz só:
“Está cumprido.” Só diz isso em Mateus e em Marcos.
F.B.D. —
Não, não diz, digo eu. Mas diz outra coisa: “Pai, perdoai-lhes porque não sabem
o que estão a fazer.”
F.L. —
Isso só diz em Lucas.
F.B.D. —
Só.
F.L. — E
numa frase considerada inautêntica nas edições críticas. Os manuscritos mais
antigos não têm isso. Ficamos com este problema. Queremos tanto que ele tenha
dito essa frase.
F.B.D. —
A minha resposta é esta, se não disse, devia ter dito [risos]. E as pessoas
podem dizer que eu também estou a querer criar um evangelho, mas pelo que dizem
os outros também tenho esse direito. Por aquilo que todos os outros textos
bíblicos dizem, também posso fazer a minha configuração de Jesus.
Essa
configuração não corre o risco de se tornar uma forma de religião à la carte?
F.B.D. —
Não, é o contrário. À la carte é o que encontram sempre para resolver problemas
particulares. Esse é o único problema do mundo. Os seres humanos são todos
seres humanos.
F.L. —
Eu estou numa fase em que ando à procura de uma atitude objectiva em relação à
religião, de um modo geral, e, em particular, em relação à figura de Jesus
Cristo. O que me interessa é tentar conciliar — enfim, sei que é a quadratura
do círculo mas ainda não desisti, e não vou desistir tão depressa — o
pensamento crítico, racional, objectivo (aplicando a toda esta questão as
mesmas armas e as mesmas estratégias que aplicaríamos a qualquer problema
filosófico), de modo a tentar uma compatibilização entre o pensamento racional
e a relação com Jesus. Sem ter de invocar mil coisas misteriosas, e mil coisas
que a mente humana não entende nem consegue alcançar. Pode ser que um dia me dê
completamente por derrotado e aí tenho de optar: ou a fé cega ou o ateísmo. Mas
ainda não estou nesse momento porque ainda não me dei por derrotado nessa
tentativa de conciliar o pensamento racional com a vontade de me aproximar de
Jesus. Fui crente, católico, durante muitos anos. Depois fui mais ou menos
católico durante muitos anos. Depois passei a ser mais ou menos ex-católico, e
agora estou numa fase em que duvido, de facto, por uma questão de coerência
interior, que alguma vez volte a ser católico praticante. Não por nenhuma
aversão à Igreja Católica.
Como é
que se quebrou essa relação?
F.L. —
Há muitas razões, muitas coisas que me dão a sensação de que aquilo que podemos
saber de objectivo sobre Jesus, que no fundo são as informações que nos vêm do
Novo Testamento, são coisas, muitas vezes incompatíveis com aquilo em que o
cristianismo se transformou. Logo desde os primeiros séculos.
Houve
uma perversão da mensagem original.
F.L. —
Uma das coisas que Jesus diz é: “Vereis aqui quem são os meus discípulos pelo
amor que têm uns pelos outros.” Isso é uma coisa que antes de Constantino já se
via, os ódios de morte entre essas grandes figuras da Igreja: São Jerónimo
odiava Santo Ambrósio... É todo um catálogo de discordâncias, de ódios, de
rivalidades, de invejas.
E
posteriormente de crimes.
F.L. —
Quando a versão ortodoxa católica teve o apoio político, conseguiu, de facto,
esmagar muitas heresias. Há aquela coisa muito típica do Concílio de Niceia,
quando queimam os escritos do herético Máximo. No final do século V já estavam
a queimar os escritos e os heréticos. Já não eram só os livros, era também quem
os lia.
F.B.D. —
Os perseguidos passaram a perseguidores.
F.L. —
Isso é uma história que não é compatível com o Jesus que eu encontro, mesmo com
esse véu que me impede de ver a pessoa real. Ainda assim consigo vislumbrá-la.
Como diz o Frei Bento, e estou inteiramente de acordo: apesar de tudo, lendo os
evangelhos, tudo o que se lê sobre Jesus sabe bem. Tudo tem um cunho
extremamente convincente. Apesar de haver todas estas interrogações que se
levantam. O mais problemático, para mim, é entender a vida deste homem e tudo o
que aconteceu à volta dele como uma manta de retalhos de citações do Antigo
Testamento.
F.B.D. —
Isso não me causa problema nenhum.
Ainda não me dei por derrotado nessa
tentativa de conciliar o pensamento racional com a vontade de me aproximar de
Jesus
Frederico Lourenço
F.L. —
Não? Ajude-me.
F.B.D. —
Coisas que causam ao Frederico muita espécie, a mim dão-me muito riso. Está-se
mesmo a ver que aquilo foi arranjado para calhar bem. Aquilo são querelas de
família. O judaísmo do tempo de Jesus tinha muitas tendências e muitos grupos
organizados. Meier tem um estudo em quatro volumes para dizer que Jesus era um
judeu marginal. É demasiado esforço para uma coisa que parecia evidente. Mas
para mim é o contrário: os fulanos eram formados no judaísmo, eram formados na
sinagoga ou no templo com os mestres que havia. O que eles sabiam eram
precisamente essas narrativas. Os autores — independentemente das dúvidas sobre
quem escreveu o quê — estão entre judeus e têm de provar aos outros judeus que
aquilo não é uma loucura, que até já estava previsto. É uma estratégia de
texto. As pessoas podem dizer: “É uma aldrabice.”
É uma
forma de legitimação?
F.B.D. —
É uma forma de argumentação. São estratégias de texto, estratégias de
pensamento. Se há um modelo de vida no Ocidente, é a arte de viver de Jesus.
Fazendo uma espécie de apanhado de tudo o que foi escrito no Novo Testamento,
parece-me que Jesus se sai bem no exame. Aquilo que Jesus é é para todos os
tempos e lugares. Jesus, não sei, tem um quê de especial, um quê não sei quê.
Cheira-me que por aqui passa Deus, passa o ser humano e passa a vida e passa a
alegria.
F.L. —
Com essas palavras concordo inteiramente.
F.B.D. —
Agora, a questão que põe, a questão da razão, considero-a muito verosímil.
Porquê? Nós somos seres racionais, sim, mas somos muito mais do que isso. Somos
muito mais do que o que se pode apurar pela razão. Somos sentimentos, somos tanta
coisa.
F.L. —
Há bocadinho, o Carlos falou no perigo da religião à la carte, e lembrei-me
daquela versão dos evangelhos feita pelo terceiro Presidente dos Estados
Unidos, Thomas Jefferson, que pegou numa tesoura e numa navalha e cortou tudo o
que eram milagres, tudo o que era contrário à razão. Deixou só o que podia ser
racionalmente compreensível. Ainda é muita coisa. Chamou àquilo a Filosofia de
Jesus Cristo. Mesmo reduzindo os evangelhos a essa expressão mínima, ainda
vemos aquilo que o Frei Bento estava a dizer: há qualquer coisa de
extraordinário em Jesus. Há ali qualquer coisa.
F.B.D. —
O Eduardo Lourenço diz que gostaria de estar sobre o ombro de Jesus enquanto
ele escrevia na areia, quando estavam a incriminar a mulher adúltera. Jesus
levanta-se e diz: “Quem não tem pecados que atire a primeira pedra.” Há
qualquer coisa na arte de ser de Jesus. Agora, o Papa fala de misericórdia. Ter
o coração junto da miséria dos outros é mais importante do que saber como é que
havemos de os culpar.
F.L. — Este
exemplo que o Frei Bento acabou de citar também é um caso difícil, numa visão
racional do Novo Testamento. Este episódio da mulher adúltera, que está no
evangelho de João, só está lá, e não deve ter feito parte dele originalmente. É
a única parte do evangelho de João que destoa estilisticamente. Os manuscritos
mais antigos não têm esse episódio da mulher adúltera, embora depois tenha
passado a ser considerado canónico pela Igreja Católica. Mas ao longo de toda a
história da Igreja houve sempre muitos problemas em aceitar aquilo. Por isso,
muitos manuscritos gregos, do século X, omitem totalmente esse episódio. Pura e
simplesmente, não existiu. É inconveniente.
F.B.D. —
Os escritores têm uma coisa boa; diz um: isto aqui ficava bem; depois vem
outro: isto aqui fica mal, por causa das convicções. Agora, há uma coisa que
lhe quero dizer: o seu pai [o poeta e filósofo M.S. Lourenço] escreveu um livro
pelo qual tenho uma devoção especial, Os Degraus do Parnaso. Um dia antes de
ele morrer, disse-lhe isso ao telefone. No momento em que ele escreveu pela
segunda vez aquele livro, aquelas crónicas, disse que procurou um efeito
estético, quis que aquilo fosse uma obra de arte. Eu creio que os evangelhos
não tiveram esse intuito: de escrever uma obra de arte. Tiveram o intuito de
escrever sobre alguém que é uma obra de arte.
F.L. —
Concordo inteiramente.
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in Público, 20 de dezembro de 2015