25 janeiro 2016

COM QUEM COMEÇAR O NOVO ANO? (III)

            Frei Bento Domingues, O.P.

1. As renovadas investigações que, na observância do método histórico, procuram resgatar a memória de Jesus de Nazaré deixam muitos cristãos bastante desapontados: mas é só isto? Tanto barulho, tantos livros para tão pouco?
Esses estudos valem por si próprios, mas também ajudam, pelo menos indirectamente, a dar força à evocação que abre sempre, na Missa, a proclamação do Evangelho: naquele tempo!
É verdade que a grande maioria dos participantes na Eucaristia, se retiver apenas essa indeterminada evocação, continuará de memória vazia. De qualquer modo, essas investigações não fecham os cristãos no Ano I assistindo à autópsia do cadáver errado, como por vezes se diz.
O que está em causa é, sobretudo, a fidelidade à condição temporal do cristianismo. Teria algum sentido dizer naquela eternidade? Os participantes nas celebrações de fé cristã atraiçoam a sua genuína significação quando não as entendem e vivem em confronto com os problemas pessoais, familiares, sociais e eclesiais, do nosso tempo.
Os rituais cristãos mais estruturantes são poucos, belos e simples. Inscrevem-se nos momentos chave de transformação da vida espiritual, nas suas diversas etapas e dimensões. É por ignorância, rubricismo e inépcia pastoral que as suas configurações litúrgicas se podem tornar uma tristeza.
É indispensável fazer sempre a ponte entre o tempo das quatro narrativas evangélicas, dos Actos dos Apóstolos, das cartas de Paulo, de João, etc. e o nosso tempo. É fundamental saber mostrar que aquilo que aconteceu na intervenção histórica de Jesus tinha e tem energia e significação para todos os tempos e lugares. Esta é uma convicção de fé, de clarividência cristã. A fé dá que pensar e desejos de entender.
Note-se que os escritos do Novo Testamento são, em si mesmos, uma ponte entre o percurso histórico de Jesus e o tempo de revisão do seu sentido, segundo os novos e diferentes contextos de vida e celebração das comunidades cristãs do primeiro século.
2. Por causa de várias interpelações que recebi no tempo de Natal, quero destacar o sentido do contraste entre duas genealogias de Jesus. São aborrecidas para os leitores de hoje e fonte de equívocos.
Não pretendem fazer história. Com as referências bíblicas selecionadas para o efeito, tentam elaborar cristologias simbólicas.
O Evangelho segundo S. Mateus, com o intuito de mostrar que Jesus realizava as esperanças messiânicas judaicas, constrói-lhe uma ascendência essencialmente israelita: “Livro da origem de Jesus Cristo, filho de David, (…), Jacob gerou José, esposo de Maria da qual nasceu Jesus, chamado Cristo”.[1] O salvador de Israel só pode nascer de Israel e assumir a sua história!
O Evangelho de S. Lucas, escrito a partir da prática da Igreja aberta aos gentios – na convicção de que o horizonte de Jesus Cristo é toda a humanidade - segue outro processo. Coloca o próprio Adão - o antepassado mítico de toda a humanidade - como o próprio antepassado de Jesus: “filho de José (…), filho de Adão, filho de Deus”. Isto é, o enviado a toda a humanidade assume todo o seu passado[2].
Do ponto de vista estritamente histórico, isto pouco vale. Nos dois casos, porém, a astúcia simbólica, cristológica, messiânica é fantástica!
3. Vamos à questão decisiva. Jesus levou muito tempo a encontrar o seu caminho. Foi discípulo de João Baptista de quem recebeu o baptismo no rio Jordão. Existem boas razões para ver aí reminiscências históricas. No entanto, o importante não vai ser o encontro dos dois profetas, mas o seu irremediável desencontro.
João Baptista é o profeta apocalíptico da “cólera de Deus”. Conta-se que Jesus depois do baptismo no Jordão, encontrando-se em oração, teve uma experiência divina que o convenceu de que João, no qual reconhecia um homem extraordinário, estava completamente errado acerca de Deus e do ser humano. É o Espírito de Deus que lhe abre o céu numa declaração de puro amor: Tu és o meu Filho bem-amado; eu hoje te gerei![3]
Começa, aqui, a alteração radical do próprio messianismo. Esta revolução ficou clara na cena simbólica das tentações de Jesus. Ele considera diabólica, idolátrica a procura da dominação económica, política e religiosa[4].
O seu programa de libertação dos oprimidos resulta do jubileu da pura graça de Deus. Rompe e fecha para sempre o dia da sua ira e vê o mundo a partir das periferias sociais e religiosas[5].
Qual o maior obstáculo dos discípulos em entenderem o Mestre? Desejavam o mundo que Jesus recusou nas tentações messiânicas. Vem tudo no Evangelho de S. Marcos.[6] Cristo teve de convocar uma reunião de emergência para resolver o mal-estar no grupo que o seguia. Primeiro de forma surda e depois de modo explícito verificou que só lhes interessava o poder. Jesus apenas os queria preparar para servir e eles preparavam-se para mandar.
Sem a conversão do desejo não há reforma possível. O Papa Francisco que o diga.

Público 17.01.2016




[1] Mt 1,1-17
[2] Lc 3, 12-18
[3] Lc 3,21-22 par.
[4] Lc 4, 1-13 par.
[5] Lc 4, 16-30
[6] Mc 4-10 par.

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