Frei Bento Domingues, O.P.
1. As renovadas investigações
que, na observância do método histórico, procuram resgatar a memória de Jesus
de Nazaré deixam muitos cristãos bastante desapontados: mas é só isto? Tanto
barulho, tantos livros para tão pouco?
Esses estudos valem por si próprios, mas também ajudam, pelo
menos indirectamente, a dar força à evocação que abre sempre, na Missa, a
proclamação do Evangelho: naquele tempo!
É verdade que a grande maioria dos participantes na
Eucaristia, se retiver apenas essa indeterminada evocação, continuará de
memória vazia. De qualquer modo, essas investigações não fecham os cristãos no Ano I assistindo à autópsia do cadáver errado,
como por vezes se diz.
O que está em causa é, sobretudo, a fidelidade à condição
temporal do cristianismo. Teria algum sentido dizer naquela eternidade? Os participantes nas celebrações de fé cristã
atraiçoam a sua genuína significação quando não as entendem e vivem em confronto
com os problemas pessoais, familiares, sociais e eclesiais, do nosso tempo.
Os rituais cristãos mais estruturantes são poucos, belos e simples.
Inscrevem-se nos momentos chave de transformação da vida espiritual, nas suas
diversas etapas e dimensões. É por ignorância, rubricismo e inépcia pastoral
que as suas configurações litúrgicas se podem tornar uma tristeza.
É indispensável fazer sempre a ponte entre o tempo das quatro narrativas evangélicas,
dos Actos dos Apóstolos, das cartas de Paulo, de João, etc. e o nosso tempo. É fundamental saber mostrar que aquilo que aconteceu na
intervenção histórica de Jesus tinha e tem energia e significação para todos os
tempos e lugares. Esta é uma convicção de fé, de clarividência cristã. A fé dá
que pensar e desejos de entender.
Note-se que os escritos do Novo Testamento são, em si
mesmos, uma ponte entre o percurso histórico de Jesus e o tempo de revisão do seu
sentido, segundo os novos e diferentes contextos de vida e celebração das comunidades
cristãs do primeiro século.
2. Por causa de
várias interpelações que recebi no tempo de Natal, quero destacar o sentido do
contraste entre duas genealogias de Jesus. São aborrecidas para os leitores de
hoje e fonte de equívocos.
Não pretendem fazer história. Com as referências bíblicas
selecionadas para o efeito, tentam elaborar cristologias simbólicas.
O Evangelho segundo S. Mateus, com o intuito de mostrar que
Jesus realizava as esperanças messiânicas judaicas, constrói-lhe uma
ascendência essencialmente israelita: “Livro da origem de Jesus Cristo, filho
de David, (…), Jacob gerou José, esposo de Maria da qual nasceu Jesus, chamado
Cristo”.[1] O salvador de Israel só
pode nascer de Israel e assumir a sua história!
O Evangelho de S. Lucas, escrito a partir da prática da
Igreja aberta aos gentios – na convicção de que o horizonte de Jesus Cristo é toda
a humanidade - segue outro processo. Coloca o próprio Adão - o antepassado
mítico de toda a humanidade - como o próprio antepassado de Jesus: “filho de
José (…), filho de Adão, filho de Deus”. Isto é, o enviado a toda a humanidade
assume todo o seu passado[2].
Do ponto de vista estritamente histórico, isto pouco vale.
Nos dois casos, porém, a astúcia simbólica, cristológica, messiânica é
fantástica!
3. Vamos à
questão decisiva. Jesus levou muito tempo a encontrar o seu caminho. Foi
discípulo de João Baptista de quem recebeu o baptismo no rio Jordão. Existem
boas razões para ver aí reminiscências históricas. No entanto, o importante não vai ser o encontro dos dois
profetas, mas o seu irremediável
desencontro.
João Baptista é o profeta apocalíptico da “cólera de Deus”. Conta-se
que Jesus depois do baptismo no Jordão, encontrando-se em oração, teve uma
experiência divina que o convenceu de que João, no qual reconhecia um homem
extraordinário, estava completamente errado acerca de Deus e do ser humano. É o
Espírito de Deus que lhe abre o céu numa declaração de puro amor: Tu és o meu Filho bem-amado; eu hoje te
gerei![3]
Começa, aqui, a alteração radical do próprio messianismo.
Esta revolução ficou clara na cena simbólica das tentações de Jesus. Ele
considera diabólica, idolátrica a procura da dominação económica, política e religiosa[4].
O seu programa de libertação dos oprimidos resulta do jubileu
da pura graça de Deus. Rompe e fecha para sempre o dia da sua ira e vê o mundo
a partir das periferias sociais e religiosas[5].
Qual o maior obstáculo dos discípulos em entenderem o Mestre?
Desejavam o mundo que Jesus recusou nas tentações messiânicas. Vem tudo no
Evangelho de S. Marcos.[6] Cristo teve de convocar
uma reunião de emergência para
resolver o mal-estar no grupo que o seguia. Primeiro de forma surda e depois de
modo explícito verificou que só lhes interessava o poder. Jesus apenas os
queria preparar para servir e eles preparavam-se para mandar.
Sem a conversão do desejo
não há reforma possível. O Papa Francisco que o diga.
Público 17.01.2016
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