O que
eu deveria questionar, segundo dizem, era o estado lamentável em que se encontra
a liturgia da Igreja, nomeadamente a da Semana Santa. Não enche as igrejas nem
as almas. A pergunta que os padres não deveriam evitar seria esta: porque será
que os feriados de cariz religioso e os próprios domingos servem sobretudo para
umas miniférias dos laicos e dos católicos não praticantes, cada vez mais
numerosos?
Um dia abordarei o que há de interessante e
falacioso nesta pergunta. Se os feriados religiosos servem para um merecido “descanso”,
já não é mau. A mítica e bela narrativa da Criação coroa de humor um Iavé feliz
e fatigado: Deus concluiu no sétimo dia a
sua obra e descansou (Gn 1-2).
Esta
justificação, ao mais alto nível teológico, do descanso semanal é uma das
expressões mais sublimes desta versão cósmica e humanista da sabedoria divina. Quando
o dia da liberdade se perverteu com ritualismos opressivos, um judeu, Jesus da
Nazaré, foi radical na denúncia das instituições religiosas ou outras: o sábado foi feito para o ser humano e não o
ser humano para o sábado (Mc 2,27).
O dia do culto que não seja o da celebração da
alegria e da liberdade é um insulto a Deus. O homo faber, a tempo inteiro, é um escravo ou um idiota. Não é um
criador.
2. Por outro lado, no coração da liturgia cristã lateja
a memória da luta de Cristo contra todas as formas de fatalismo: sempre assim
foi, sempre assim será!
O
programa que Jesus apresentou publicamente era um manifesto libertário. Para o
tornar possível desmascarou as tentações diabólicas da dominação económica,
política e religiosa. Nunca quis o sacrifício, a opressão, o sofrimento, a
cruz, a morte. Tudo isto lhe foi imposto, porque preferiu ser preso, torturado,
crucificado, a trair o seu projeto de fraternidade ilimitada. Preferiu ser
morto a trair o sentido último da sua vida.
Por
tudo isto, a Cruz de Jesus, resultado imediato de um crime jurídico de natureza
política, tornou-se o símbolo da generosidade e da extrema fidelidade. Nada tem
a ver com a sacralização do sofrimento, como muitas vezes ainda ressoa na
liturgia e na espiritualidade. Os sacrifícios exigidos pela fidelidade ao amor
são a glória da vida humana. O amor do sofrimento é uma doença grave!
Passando
em revista todas as narrativas e interpretações do processo de Jesus, retenho o
retrato dos Actos dos Apóstolos: coligaram-se,
nesta cidade, contra o teu servo Jesus que ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos,
com as nações pagãs e os povos de Israel (Act 4, 17-18).
O extraordinário movimento litúrgico do séc.
XX e que preparou a reforma da Semana Santa nos anos 50, consagrada no Vaticano
II, teve muitas oscilações na sua orientação. Tanto o modelo monacal como o
pastoral tiveram sempre dificuldade em perceber que não é Deus que precisa do
culto litúrgico. É o ser humano que o exige para ser cristão na transformação
da vida em todas as suas dimensões: imanente e transcendente, interior e
exterior, pessoal e social.
A Eucaristia celebra a memória do
itinerário de Jesus Cristo para não nos perdermos do essencial nos labirintos
do quotidiano. Na parábola do bom samaritano, o sacerdote e o levita para não
falharem o encontro com Deus no culto do Tempo, falharam o encontro com o
próximo, o ser humano espancado e atirado para a valeta. O próximo é a nova
categoria social dos sem categoria: o estrangeiro, o excluído de quem nos
aproximamos. O amor incondicional – a
caridade – é o sentido escondido do social, passa pelas instituições, mas
nunca se reduz ao que elas podem abranger. Nas sociedades acontece o inesperado,
a alteridade irredutível, do qual também somos responsáveis, onde devemos
reconhecer o humano, o irmão sem qualquer outra etiqueta, gente da família!
3. Há 60 anos, alguns políticos, sobretudo democratas cristãos
e sociais-democratas, lançaram a União Europeia com o objectivo de promover a
paz, os seus valores e o bem-estar dos seus povos. Em 2012, a União Europeia
foi laureada com o Nobel da Paz. Donde virá, então, o mal-estar actual? O mundo
mudou. Entretanto quer a Democracia Cristã, quer a Social-Democracia perderam a
alma ao abandonarem a economia social e a política do bem comum. Renderam-se à economia que mata seguindo os caminhos
que aprofundam as desigualdades entre super-ricos e o mundo imenso dos pobres.
Não
adianta lamentar a diminuição da prática religiosa dos cristãos. O que importa
perguntar: qual é a dimensão interior e política dessa prática em favor da
transfiguração da Europa aberta à transformação do mundo?
Frei
Bento Domingues, O.P.
in Público 03.04.2016
Muito obrigado Frei Bento.
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