1. Segundo o mito bíblico, a Criação[1]
é uma vitória sobre o caos. Deus viu tudo
o que tinha feito e era muito bom. Um paraíso. Os antigos próximo-orientais
faziam um balanço da história da humanidade diametralmente oposto ao dos
modernos ocidentais. Contrariamente à ideia do progresso irreversível, os
antigos pensavam que o mundo começou perfeito, mas degradou-se
progressivamente. Os mitos mesopotâmicos também expressam essa convicção. No
mundo grego, esta ideia esquematizou-se no mito das cinco idades do universo[2]. Esses
mitos vêem no dilúvio a principal fronteira dos primórdios da humanidade. Na
versão bíblica, é uma descriação[3].
No
entanto, quando parece que se chegou à degradação sem remédio, surge sempre uma
esperança. A título de exemplo, cito o Profeta Isaías[4]:
“O povo que andava nas trevas viu uma grande luz (…) porque um menino nos
nasceu, um filho nos foi dado que anuncia uma paz sem fim”. A IV Bucólica de Virgílio[5]
parece copiada desse profeta. No seu poema há também um Menino que vai deixar o
mundo livre do medo, governando a terra em paz.
Os
cristãos viram nessas figuras míticas do Menino, Jesus de Nazaré, o príncipe da
paz, cuja proposta foi rejeitada em público e em tribunal. Acabou na cruz. Este
facto foi tão traumatizante para os discípulos que lhes matou a esperança.
Todas as narrativas da Ressurreição testemunham que se sentiram completamente
perdidos. O Ressuscitado encontrou, nas mulheres que o seguiram e procuravam,
as evangelizadoras dos apóstolos, paralisados pelo medo. A era da audácia,
dentro e fora do judaísmo, é atribuída à irrupção do Espírito de Cristo.
2. Na sua apologia da Roma cristã, o bracarense Paulo
Orósio[6]
vê no Império Romano um sistema quase perfeito, no preciso momento em que está
a ruir, dilacerado pelas contradições internas e pelas invasões germânicas: “as
mesmas leis que se subordinam ao Deus único reinam por toda a parte e por onde
quer que eu vá, sem ser conhecido, não receio uma violência repentina, como se
fosse um homem sem protecção. Entre romanos, como disse, sou romano; entre
cristãos sou cristão; entre homens sou homem; apelo para a república pelas suas
leis, para a consciência pela fé, para a natureza pela igualdade. Faço uso
temporariamente de toda a terra como se fosse a minha pátria, porque aquela que
é a verdadeira pátria e que eu amo não está, de modo algum, na terra[7]”.
Sol de pouca dura.
Na
Idade Moderna, entramos noutro mundo. Desenvolveu-se a suspeita de que a religião
era a fonte de todos os males, de todas as opressões, de todas as guerras. Para
que o ser humano fosse livre e criador do seu destino, precisava de se desfazer
da ideia de Deus. As ciências e as técnicas acabariam por vencer todas as
interrogações de ordem psicológica, metafísica e religiosa.
O
liberalismo desconstrutivista transferiu para os seres humanos os atributos divinos.
As
ciências, as técnicas e as suas indústrias acabarão por criar o pós-humano. O
niilismo de todos os juízos de valor liberta o terreno de preocupações éticas e
deixa o pragmatismo puro e duro à solta. Em breve conheceremos a mecânica da
biologia humana e desaparecerá o inconsciente individual e colectivo. Seremos
transparentes.
3. Ou talvez não. Num mundo, em mudança acelerada,
produz-se uma disfunção entre o tecno-económico e o sentido da vida dos
cidadãos e das suas identidades. Entre as fontes onde podem ser recuperadas,
encontra-se o mundo das religiões. Entre estas, destaca-se o islão e o
cristianismo. Mas estas estão a afirmar-se na pior das suas configurações, no
fundamentalismo. Por vezes até como justificação religiosa do terrorismo.
As
sociedades democráticas ocidentais são e serão, cada vez mais, heterogéneas. A
imigração configurou uma paisagem humana e religiosa multicolor. Esta situação
exige especiais cuidados para que a integração se faça de tal modo que todos se
reconheçam, ao mesmo título, cidadãos do mesmo país, em direitos e deveres.
Qual
o papel das religiões numa sociedade democrática? Tentar reduzir o seu papel às
sacristias é ilusório. Deixar que, em nome das religiões e do seu peso numérico,
dominem o espaço público é minar o papel da cidadania, da política e da
religião. Não basta uma cultura do diálogo inter-religioso. A cultura do
diálogo deve atingir a vida da cidadania, da política e da religião. Sem
distinguir o papel de cada uma destas dimensões, criam-se conflitos
desnecessários. Não se resolvem negando às religiões, que respeitam as regras
da democracia, a sua voz no espaço público.
O
papel dos cristãos consiste em saber que, em cada época, lhes compete praticar
e proclamar uma religião universal: fazer aos outros aquilo que gostamos que os
outros nos façam. A lei da reciprocidade completada pelo amor aos próprios
inimigos[8].
Frei
Bento Domingues, O.P.
in
Público 10.04.2016
[1] Gn 1-2
[2] Ouro, Prata, Bronze, Sem-Deuses, Ferro
[3] Francolino J. Gonçalves, Bíblia e Natureza, cadernos ISTA, nº 8.
1999, pp 7-40
[4] 9,1-6
[5] Poeta romano, 70-19 a.C.
[6] ca 375 ca 416. Ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Or%C3%B3sio
[7]
Cf. António Borges Coelho, Donde viemos, Caminho, 2010, pp 49
[8] Mt 7, 12; 5, 38-44
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