O bispo de Leiria-Fátima
está, no entanto, absolutamente convencido que o argentino virá, a menos que
problemas com a saúde o impeçam[1].
Nesta vinda ainda não se
fala de um programa para pôr a Igreja portuguesa a mexer, acusada, em alguns
sectores, de estar muito parada e só reagir quando vê os seus interesses
corporativos ameaçados. Como, porém, dispomos da imagem de Nossa Senhora a
viajar pelo país e pelo mundo, compreende-se que os católicos lusitanos, no
geral, não sofram de ansiedade com as propostas da nova evangelização. Esperam
que a “debandada da juventude” se cure com a idade.
Oiro sobre azul seria que a presumível
visita papal coincidisse com a canonização dos pastorinhos e a beatificação da
Irmã Lúcia, embora haja outros casos bem colocados na fila de espera.
Quanto a canonizações, como a de Frei
Bartolomeu dos Mártires parece garantida, não escondo que gostava muito que o
Padre Américo, da Obra do Gaiato, viesse juntar-se a S. João de Deus. São duas
figuras do catolicismo português que fizeram da fé uma vitória sobre a
alienação religiosa e a exclusão social. Os meninos
da rua encontraram no Padre Américo
um caminho inédito para a alegria de viver. S. João de Deus, o louco de
Montemor-o-Novo e de Granada, experimentou, ele próprio, no corpo e no espírito,
o que não aceitou nos abandonados, nos pobres e nas vítimas de todas as
doenças. Pelo que viveu, sofreu e criou é reconhecido como padroeiro dos
hospitais, dos doentes e dos enfermeiros.
Estas são incarnações cristãs, em épocas
diferentes, que abalam os muros ideológicos e pseudo religiosos das Igrejas.
São pessoas que partem para as periferias mais assustadoras, sem medo de serem
surpreendidas pelo bem ou pelo mal. Cada passo pode tornar-se uma oportunidade
para encontrar a vida heroica e humilhada, entrelaçadas, onde menos se espera.
Sabendo também que cada instituição, por mais santa que se diga, é sempre uma
decepção.
2. Descobrir
que a vida humana é “sem repetição, sem paralelo, sempre uma atribuição nova,
uma concessão do divino, uma excepção em cada uma das suas formas, cânticos e
ultrajes”, é uma graça inesperada. O romance, Os Incuráveis, de Agustina Bessa Luís, é uma das obras portuguesas
de ficção que revela, aos solavancos, o mais sublime nas situações mais
abjectas. Ao criar, na figura da miséria extrema, a existência digna de
adoração, aponta para o verdadeiro modelo de vida que vale a pena canonizar,
pelo menos segundo os critérios do Evangelho.
“ (…) Uma mendiga, a
Perdiz, abusada de mil formas ao longo dos anos, arrastando-se de um lado ao
outro da estrada sobre umas joelheiras de pneu, coçando as pústulas das pernas,
que pareciam decepadas e à parte da sua existência, (…) é surpreendida pela voz
de Maria .
- Ainda és viva, Perdiz?
- Já devia ter ido que
não faz falta a ninguém, disse a vendedeira das castanhas,
- “Mulher! A vida é só
dos ricos? A vida é de cada um, não é só dos que têm pernas para andar e pão
para comer! “
A partir daí, Agustina
escreve o hino mais belo sobre a condição humana, que deveria figurar em todas
as escolas do mundo.
“ (…) eu te digo,
princesa, dona de todas as riquezas, ó fabulosa, ó digna de todos os reinos da
Atlântida e de Sabá – porque tu, manchada, viciosa, cuspida, és o sacrário da
vida, és alta e magnificente como as sequoias, ou como o céu”.
3. Para
Agustina, não vivemos apenas para cantar a beleza da santidade humilhada. A
realidade responsabiliza-nos.
“ (…) Em vão pousamos as
mãos sobre os olhos e ouvidos, e dizemos não assistir, não comparticipar, não
sermos responsáveis de um simples cortejo fúnebre, dessa fisionomia carregada e
alvar que o segue, não acompanharmos nem a sua frieza, nem a sua dor, nem a
fealdade desse corpo mutilado, nem o rasto pimpão dessas botas negras e que
reluzem. De facto, nós estamos lá; em consciência, até ao fim do mundo,
recusando ou aceitando, negando três vezes como Pedro e chorando a nossa
cobardia, pactuando com o nosso não e o nosso sim. Todos nos viram lá não há
trevas, em todos os crimes, em todas as redenções nós somos cúmplices, e aliados,
e irmãos. Eis que, tremendo, muitas vezes forjamos um Deus que nos substitua
nessa tarefa sempre sem precedente que é estar vivo, contribuir com a nossa
força, a nossa vontade. Mas, enquanto que o homem é toda a linha condutora do
passado e só ele, apenas ele, Deus é o tempo anónimo que se converterá a nós”[2].
Deus nunca é desculpa!
Frei Bento Domingues, O.P. in Público 22.05.2016
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