1. Igreja sem conflitos? Nem hoje nem ontem nem amanhã.
A própria evocação dos seus mortos mais célebres serve, muitas vezes, para
levantar conflitos entre os vivos.
Ninguém dispõe da fórmula exacta para realizar o mundo
de novos céus e nova terra, sem lágrimas de dor ou de luto . Ao sair da Missa
onde foi anunciado esse sonho antigo, dizia-me um amigo: nos anos 50 do século
passado, o P. Lombardi e o P. Vieira Pinto, contentavam-se com modestas
propostas para um “mundo melhor” e nem aí chegamos! A própria União Europeia
perdeu a pouca alma que tinha, desistiu da ousadia e caiu na burocracia.
Sem condições para
comentar a significação do papel dos sonhos de uma “terra sem males”, comum a
várias culturas arcaicas – com frutos amargos quando se tentou convertê-los em
“programas científicos” de ordem social e política –, observei apenas que
também a opção pelos “paraísos fiscais” talvez não seja a festa da ascensão aos
céus da população mundial. Por aí ficamos.
No Domingo passado, transcrevi uma breve passagem
da extraordinária Exortação, A Alegria do Amor, na qual o Papa Francisco se
referia a duas lógicas que percorrem toda a história da Igreja, desde o
concílio de Jerusalém até hoje: marginalizar e reintegrar. Jesus, morto
por uma coligação táctica, foi excluído de Israel e do Império romano .
A lógica que Bergoglio deseja adoptar é, sem dúvida, a
da reintegração. Quando é possível. Perante situações escandalosas que
envenenaram o serviço que a Cúria vaticana deve prestar à Igreja – os
escândalos bancários, a vida faustosa de alguns cardeais e a situação de
eclesiásticos pedófilos – impõem-lhe a destruição dessa falsa paz alimentada
por corruptos. A justiça que é devida às vítimas desse nojo não é matéria de
negociação. As manobras dos lobistas, desde há muito estabelecidas, não são
fáceis de neutralizar, embora o Papa afirme que não desiste da linha de
actuação anunciada, desde o começo. Ele não é omnipotente. Uma verdadeira
reforma não se decreta nem se consegue apenas com a mudança de alguns nomes.
Por vezes, quando se pensa que se conseguiu um bom colaborador encontrou-se um
judas.
2. O desígnio pastoral de Bergoglio continua o de um
verdadeiro pontífice: fazer pontes onde outros levantam muros, voltar os nossos
olhos para a vergonha de um mundo sem os mínimos éticos e tornar a Igreja um
exemplo de democracia participativa. Isto exige um clima eclesial onde a união
se realize na diversidade criadora. Mas, para ser autenticamente pastoral,
precisa de se deslocar para as periferias existenciais, o centro esquecido das
comunidades cristãs.
Os obstáculos à sua lógica de reintegração revestem-se,
muitas vezes, de razões pseudo dogmáticas e de doutrinas ditas irreformáveis,
sobretudo no tocante aos ministérios ordenados, à moral sexual, à situação da
Mulher na Igreja e às chamadas situações familiares irregulares.
O Papa abriu um debate que, por ele, teria sido muito
mais fecundo se a consulta às dioceses tivesse sido mais ampla, mais
aprofundada e com menos boicotes. Mesmo assim, não se deixou intimidar pelas
manobras que ameaçavam rupturas irreparáveis. Pelo contrário, geriu, com muita
firmeza, os conflitos, mantendo aberto o diálogo entre todas as tendências,
para que todos pudessem aprender com todos. Fez do diálogo e da firmeza o seu
comportamento.
3. As origens do cristianismo não foram um mar de
rosas. Estão semeadas de conflitos e dois mil anos de história das igrejas
também não são o deslisar de um rio pacífico, muito pelo contrário.
O livro admirável dos Actos dos Apóstolos – uma obra
sem epílogo, abrindo apenas o futuro – oscila entre uma imagem idílica da
comunidade cristã dos começos e a do conflito entre hebreus e helenistas
, apresentando, depois, uma suave abertura aos gentios , muito diferente da
relatada por Paulo . O seu projecto não esconde a lógica das tentativas de
marginalização, mas a opção do seu projecto literário é marcar a vitória da
lógica da integração, mostrando os resultados da boa gestão dos conflitos.
Hoje, celebra-se a festa da Ascensão do Senhor. S.
Lucas já tinha, no primeiro volume da sua obra, tocado nesta metáfora de fim de
carreira . Agora, nos Actos dos Apóstolos, desenvolve o cenário com mais
cuidado. Tem de resolver duas situações. A primeira é a da ânsia de poder que
continua a dominar os discípulos de Jesus: o único poder que vos garanto é o do
Espírito Santo que vos vai meter em trabalhos até aos confins da terra. A
segunda é a do medo: preparai-vos para acolher essa divina energia e não
fiqueis pasmados a olhar para o céu. Há muito que fazer .
Igrejas sem conflitos? Nem ontem nem hoje nem amanhã. A
grande sabedoria consiste em não os negar nem os acirrar. As comunidades
católicas não deveriam dispensar bons gestores de conflitos.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público
08.05.2016
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