26 junho 2016

DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO E CONVERSÃO DAS RELIGIÕES

  
1. Nunca vivi em países que invocassem explicitamente a religião para fazer a guerra. No próprio coração da civilização moderna, os totalitarismos do século XX - soviético, fascista, nazi, maoista – com mais de cem milhões de vítimas inocentes, não eram movidos por qualquer religião. A guerra foi muitas vezes encarada como o motor da história. Com o desenvolvimento sempre crescente das ciências e das técnicas poderá tornar-se a sua destruição.
 Foi em épocas de muita violência que trabalhei em alguns países de Africa ou da América Latina. Nenhum deus era invocado para abençoar a crueldade. Em alguns casos, o ateísmo era a regra. Essas guerras não precisavam da bênção de nenhuma divindade. Ainda hoje, o comércio de armas, o tráfico de pessoas e de órgãos, o trabalho escravo, a prostituição, o narcotráfico, a criminalidade organizada nem sempre pertencem a organizações religiosas! A idolatria do dinheiro tem pessoas e serviços bem organizados, a nível local e à escala global, que dispensam o recurso a qualquer outra divindade.
No plano religioso, a pergunta mais importante talvez seja esta: ainda haverá religiões que se alimentam de sacrifícios humanos? Se isto for verdade, o dever da memória não pode substituir a coragem de olhar para o presente.
2. Ao longo dos anos, tenho sido convidado para participar em colóquios de e sobre o diálogo inter-religioso. Sempre que posso, aceito com fervor. Como diz o Papa Francisco, com diálogo verdadeiro, seja em que campo for, todos ganham.
Desde os finais do séc. XIX que existem fóruns permanentes de diálogo religioso, como o Parlamento Mundial de Religiões, fundado em 1893. No âmbito da Igreja católica, foi, sobretudo, a partir do Vaticano II que várias iniciativas confluíram para a criação do actual Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-Religioso. Estas actividades tornaram-se frequentes, bem aceites e já marcantes no campo da teologia[1].
Esta normalidade corre sempre o risco de se tornar um ritual que se cumpre e do qual pouco se espera, mas seria injusto desvalorizá-lo. A passagem das hostilidades para o conhecimento e acolhimento mútuos das religiões é um acontecimento que já não nos espanta. Tornou normal o que deveria ter sido sempre a norma.
Deve tornar-se um caminho para a universalização da prática da liberdade religiosa. Antes do Vaticano II, para muitos católicos, era absurdo defender esta liberdade. A tese ortodoxa era simples: só a verdade tem direitos; a depositária da verdade e da sua defesa era a Igreja católica, fora da qual não havia salvação.
A declaração sobre a liberdade religiosa foi discutida, desde o início deste admirável Concílio, mas teve de vencer tantos obstáculos, que só a 7-12-1965 é que foi aprovada. Hoje, é uma bandeira e, sem ela, estaríamos como as religiões que exigem liberdade para si no estrangeiro, mas que a negam onde são elas próprias a impor a lei. É a velha táctica: em nome das vossas leis, exigimos liberdade e auxílios especiais; em nome dos nossos princípios e do nosso regime religioso e político, temos de vos negar essa liberdade.
3. Nenhuma religião tem o direito de impor os seus dogmas, ritos e normas às outras confissões. Seria continuar uma violência execrável, mas se cada uma só pensar em manter-se, defender-se e expandir-se, o chamado diálogo torna-se uma simples capa para o proselitismo das mais aguerridas. Todas têm de procurar descobrir de que reformas precisam.
 Não será o dever de todas as religiões, no mundo actual, para além daquilo que as possa individualizar, aplicar a Declaração Universal dos Direitos Humanos? Poderá discutir-se a universalidade desta declaração, no entanto, o primeiro dever é o reconhecimento de que todos têm direito a ter direito. Os cristãos dispõem de um princípio fundamental para avaliar o alcance ético de todas as instituições, religiosas ou não: o Sábado é para o ser humano e não o ser humano para o Sábado. A instituição, tida por mais sagrada, está submetida a algo de ainda mais sagrado: o bem do ser humano.
Do ponto de vista católico, o Vaticano II representa uma grande revolução a respeito de muitos comportamentos e instituições que se desenvolveram dentro da história da Igreja. Aplicou-se um velho princípio: ecclesia semper reformanda. Isto significa que a Igreja não se pode contentar com o que foi realizado nesse concílio. Os desafios, que os sinais dos tempos vão identificando, precisam sempre de novas respostas. Sabemos que, infelizmente, as contra-reformas não desarmam. O Papa Francisco já está a ver que não pode contar com nenhuma auto-estrada. Um processo de reforma nunca pode ser um acto voluntarista. Precisa de criar um clima que possa atrair mesmo aqueles que andam a criar obstáculos e denunciar aqueles fariseus que, como dizia Jesus de Nazaré, não entram nem deixam entrar. O diálogo inter-religioso, para ter sentido, deve ajudar a conversão das religiões a partir daquilo que é essencial em cada uma delas. 
Frei Bento Domingues O.P.
26.06.2016 in Público


[1] Andrés Torres Queiruga, O diálogo das religiões, Paulus, 2005 

19 junho 2016

APÓSTOLA DOS APÓSTOLOS

1. Uma senhora inglesa confessava a uma amiga teóloga: Quando vou à Igreja sinto que tenho de deixar lá fora o meu cérebro. Não é caso único.

Em vários documentos do Vaticano II, nomeadamente na Constituição sobre a Igreja[i], a participação na Eucaristia é fonte e cume de toda a vida cristã. No documento da V Conferência do episcopado latino-americano[ii], afirma-se que “todas as comunidades e grupos eclesiais darão fruto na medida em que a Eucaristia for o centro da sua vida e a Palavra de Deus for o farol de seu caminho e da sua actuação na única Igreja de Cristo[iii]”. 

Por falta de presbíteros, só no Brasil, 70% dos católicos estão privados da Eucaristia. Mas se na América Latina, a situação é difícil, que dizer de África? Na Europa, a situação é caricata. Os padres são cada vez menos e correm de um lado para o outro, não só aos Domingos, mas também nos dias de semana, dados os constantes pedidos de Missas. Decidiu-se, no pontificado de João Paulo II, que as mulheres, por não serem homens, não podem ser chamadas ao presbiterado. Por outro lado, confessa-se que não existe nenhuma objecção à ordenação de homens casados, mas o resultado é igual ao das mulheres: a seara é grande, mas os feitores recusam ao Senhor da messe a hipótese de chamar e diversificar mais operários.

Por razões de teologia incompetente, de miopia pastoral, de confiança cega em grupos e movimentos pseudo-salvadores, a situação eclesial agrava-se de dia para dia.

2. Até agora, tem havido bastante má vontade do comando masculino das instituições romanas e episcopais em reconhecer o papel das mulheres na Igreja. Não foi difícil designar uma mulher como mãe da Igreja, a mãe de Jesus. Nada de espantar, a ladainha dos atributos de Maria dá para isso e muito mais. Há mulheres canonizadas e está reconhecido que algumas têm muito a ensinar ao conjunto das comunidades cristãs. Foram declaradas Doutoras da Igreja. Excepções… 

Os textos do Novo Testamento foram, provavelmente, escritos por homens. Apesar do seu normal machismo cultural e religioso, não puderam evitar a presença actuante das mulheres que tiveram um comportamento muito superior ao dos discípulos. Estes manifestaram sempre a sua vontade de poder e, quando viram o Mestre crucificado, abandonaram-no. Pelo contrário, tanto os Evangelhos sinópticos como o de João manifestam que elas, do começo ao fim, seguiram Jesus com dedicação extrema – financiaram o projecto - sem nunca pedirem nada em troca[iv]. Tanto a Samaritana como Marta, irmã de Lázaro, fizeram declarações de fé muito mais profundas e abrangentes do que a de Pedro. As mulheres foram as primeiras testemunhas da ressurreição e Maria Madalena foi constituída por Jesus como a apóstola dos apóstolos, como dirá S. Tomás de Aquino.

3. O Papa Francisco, como já revelou em várias circunstâncias e textos, anda empenhado em reconhecer a urgência e o alcance do papel cristão das mulheres na Igreja. Não o faz para entrar na onda importante dos movimentos feministas. Para ele, isso é pouco. Bergoglio tem uma razão mais simples e fundamental: não há dois baptismos, um para homens e outro para mulheres. Não há uma identidade cristã própria dos homens e uma, secundária, de mulheres. Não existe apartheid sacramental, mas dão-nos a ideia do contrário. Como dizia uma criança de 12 anos: parece-me a mim que, de facto, Deus gosta de mulheres, mas dizem-me que Deus prefere os homens. É o resultado da triste imagem oferecida pelos ministérios ordenados!

O terreno está armadilhado contra as mulheres[v]. A restauração das diaconisas não me parece que vá ser difícil. O Papa deseja ir mais longe. Acaba de abrir uma grande janela, ao ver tantas portas fechadas. Pela sua expressa vontade, a celebração litúrgica de Santa Maria Madalena, a 22 de Julho, passou a figurar, no Calendário Romano Geral, ao mesmo título que as festas dos apóstolos, uma forma de evidenciar a missão e exemplo desta mulher na Igreja. Isto pode parecer um bocado ridículo: quase dois mil anos, para reconhecer que, afinal, Jesus não estava assim muito errado: fazer de uma mulher a evangelizadora dos evangelizadores, a apóstola dos apóstolos. Quem pode o mais, como não há-de poder o menos, ser chamada a presidir a uma celebração da Eucaristia? 

Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 19.06.2017


[1] Lumen Gentium nº 11
[2] Aparecida, Brasil, 2007
[3] Cf. Conclusão do referido documento, nº 180
[4] Lc 8, 2s, financiam o projecto de Jesus; Mc 15, 40s e Mt 27, 56, seguiram Jesus até à cruz. Se nos Sinópticos o Ressuscitado aparece primeiro às mulheres, que devem anunciar aos discípulos o ocorrido, em João, 20, 11-18, é M. Madalena – não Pedro! – que recebe a missão de ser a apóstola dos apóstolos.
[5] Cf. A. Cunha de Oliveira, Jesus de Nazaré e as mulheres. A propósito de Maria Madalena, Angra do Heroísmo, 2011

12 junho 2016

AS FREIRAS E O PAPA

         1. Diz-se que entre as coisas que o Espírito Santo ignora é o nome e o número das congregações religiosas femininas. Não é segredo para ninguém que muitas estão em crise, o que pode baralhar ainda mais as contas. Ao contrário do que muita gente pensa, não são uma espécie em extinção. É verdade que nenhuma tem promessa de eternidade, mas ao longo da história da Igreja, quando algumas desaparecem surgem outras. Deslocam-se, de país para país, de continente para continente muito mais depressa do que as comunidades masculinas. Estão, por vezes, com muitas dificuldades num país ou num continente e cheias de vigor noutros. Entre as de vocação contemplativa, há semelhanças e diferenças, mas entre as de vida activa, variam mais os estilos e a história do que os carismas propriamente ditos.
Perguntar se o futuro da Igreja é também feminino é ridículo. O livro[i], recentemente publicado, com esta interrogação é muito estimulante para pensar o papel das mulheres na Igreja, que se encontram sempre nas periferias mais arriscadas e nas intervenções mais inovadoras.
A interrogação não me espanta. Segundo as narrativas do Novo Testamento - alterando os esquemas da situação da mulher no judaísmo – foram elas que ressuscitaram a fé e a esperança do movimento cristão, nos ânimos dos discípulos, abalados com a crucifixão das suas espectativas de poder.
Os homens nunca lhes perdoaram esse atrevimento e depressa arranjaram doutrinas para as secundarizar a nível da direcção das comunidades e da presidência da celebração dos sacramentos, especialmente da Eucaristia.
         Esqueceu-se que mulheres e homens, na Igreja, são todos sacerdotes pela mesma razão sacramental: não existe um baptismo próprio para homens e outro próprio para mulheres! A sacramentalidade da identidade cristã exprime-se no baptismo e alimenta-se na celebração da Eucaristia, cuja simbólica é uma refeição familiar, de muitas famílias. Jesus, aliás, exprimiu o seu projecto fazendo família com quem não era da sua família.
        Isto não significa que Deus teve de esperar pela criação dos sacramentos cristãos para agir no coração de todas as pessoas, povos, culturas e religiões, com ou sem sistema expresso de crenças. Os sacramentos evocam a presença actuante de Deus. Precisam de Deus, mas Deus não depende das nossas celebrações para nos amar e nos fazer bem.
Criaram-se, na história da Igreja, muitos equívocos acerca da própria palavra sacerdote. No Novo Testamento, é reservada a Cristo e ao conjunto dos baptizados. Com o tempo, passou a chamar-se sacerdote a quem desempenhava um ministério ordenado na Igreja e foi eclipsado o sacerdócio de todos os fiéis, homens e mulheres. Santo Agostinho ainda distinguia: Convosco sou cristão, para vós sou Bispo. Bispo era, e continua a ser, uma função destinada ao serviço do povo sacerdotal.
2. Uma freira, a Irmã Rita Giaretta, da Congregação das Irmãs Ursulinas do Sagrado Coração de Maria, dirigiu ao Papa, uma carta aberta mostrando que a Igreja deve respirar com dois pulmões: feminino e masculino.
Caro Papa Francisco, entre tantas “revoluções” que foste chamado a levar por diante, penso que este é um dos desafios mais importantes e necessários: libertar a face da igreja da sua escravidão masculina, isto é, daquela imagem que sabe a autoritarismo, privilégio, poder sagrado, domínio e restituir-lhe o rosto bonito, luminoso e transparente de Deus, Mãe e Pai[ii].
Esta carta exprime algo que surgiu também no diálogo do Papa com as participantes no Plenário da União Internacional das Superioras Gerais, em Maio de 2016.[iii] Foi, de facto, um diálogo longo. As freiras disseram o que tinham a dizer e o Papa também lhes respondeu com toda a franqueza. Manifestou as suas convicções, as suas hesitações e, sobretudo, que há muita coisa que é necessário rever. Não apareceu dotado de infabilidade e com receitas para o futuro. Quer abrir caminhos com elas. Não pretende ser a superiora geral das freiras.
Acautelou para dois perigos: a intervenção activa da mulher na vida da Igreja não resulta de uma moda feminista. Seria reduzir o seu direito de baptizada com os carismas e os dons que o Espírito lhe concedeu. O outro é uma tentação muito forte, o clericalismo. O padre a mandar sozinho em tudo. Ou seja, deseja clericalizar o leigo, a leiga, o religioso, a religiosa e, pior ainda, quando todos estes pedem, por favor, para serem clericalizados, porque é mais cómodo. Bergoglio, porém, insistiu com as freiras: estai sempre prontas para servir; não aceiteis a servidão!
3. O acesso de mulheres ao diaconado é visto como uma esperança e um receio. Uma esperança, porque não há dois sacramentos da Ordem. Será, portanto, um ministério ordenado. Um receio porque não se vê, depois, qual o obstáculo a que não sejam também ordenadas ao presbiterado e ao episcopado. No diálogo do Papa com as superioras gerais, sente-se um incómodo deixado pela recusa, como definitiva, de João Paulo II. Mas não houve proclamação de um dogma de fé. Um obstáculo teológico é também um convite às teólogas e aos teólogos para não deixarem eternizar uma decisão muito circunstanciada.
Bom trabalho.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 12.06.2016


[i] Lucetta Scaraffia (coor), O futuro é também feminino?, Paulinas, 2016
[ii] Cf. Frei Severino, Mulheres diaconisas, Mensageiro de Sto António, Junho, Nº 6, 2016
[iii] Diálogo do Papa com as superioras gerais, As mulheres na vida da Igreja, L’ Osservatore Romano, 19 de Maio 2016, pp 7-11

05 junho 2016

ÉTICA E RELIGIÃO


1. Tornou-se um lugar-comum dizer que, na fonte de todas as grandes tradições religiosas, existe uma experiência original do Mistério Absoluto, ou de Deus, irredutível a qualquer categoria criada para o exprimir. Foi o que tentei mostrar no domingo passado.
Mahatma Gandhi estava convencido de que, se pudéssemos ler as escrituras das diversas religiões, chegaríamos à conclusão de que todas elas estão de acordo nos seus princípios básicos, úteis para todos.
Pode-se perguntar se haverá alguém que possa viver, por dentro, as experiências de todas as tradições religiosas nas suas diversas evoluções e interpretações? Duvido! Será isso necessário para cultivar o respeito pela diversidade cultural e religiosa? Creio que não. O que julgo indispensável é o questionamento ético dentro de toda a actividade humana e, por isso, também dentro de todas as práticas religiosas.
Para o grande cientista, Francisco J. Ayala, professor de genética na Universidade da Califórnia, o comportamento ético é determinado pela nossa natureza biológica. Por comportamento ético, ele não entende a boa conduta, mas o imperativo de julgar as acções humanas como boas ou más.
       A constituição biológica do ser humano determina-lhe a presença de três condições necessárias - e, em conjunto, suficientes - para que se dê esse comportamento ético: a capacidade de prever as consequências das suas próprias acções; a de fazer juízos de valor; a de escolher entre linhas de acção alternativas. A capacidade de estabelecer relação entre meios e fins é a aptidão básica que permitiu o desenvolvimento da cultura e das tecnologias humanas.
Este cientista sustenta que as normas morais e os códigos éticos não dependem da nossa natureza biológica, mas da evolução cultural. As premissas dos nossos juízos morais provêm da tradição religiosa e de outras tradições sociais, mas apressa-se a acrescentar: os sistemas morais, assim como qualquer outra actividade cultural, não podem sobreviver muito tempo se evoluem em franca contraposição com a nossa natureza biológica[1]
2. Sem o exercício de uma ética intercultural é difícil criar um clima de respeito mútuo que exija a recusa das tentações de dominação económica, política, cultural e religiosa. Todas as tradições religiosas precisam de viver em reforma permanente a partir do que existe de mais humanizante em cada uma delas. Este é sempre um bom teste da sua autenticidade mística, se não confundirmos uma pessoa mística com uma múmia.
Jesus de Nazaré pôs em causa o que havia de mais sagrado na religião em que cresceu, a partir de um postulado ético radical: o Sábado é para o ser humano e não o ser humano para o Sábado. O dia de Deus, para não se tornar o dia da suprema idolatria, tem de coincidir com o da promoção da maior liberdade. As instituições que não seguem este critério metem os humanos numa cadeia religiosa e fazem-lhes o que não fazem aos animais[2].
O Papa Francisco, ao propor o Evangelho da Alegria, como base das suas reformas libertadoras, encontrou um terreno armadilhado com doutrinas e práticas pastorais, com sistemas de resistência, a nível central e local, de cardeais, bispos, padres e leigos clericalizados e mais papistas que o Papa. Como Bergoglio disse, o medo da alegria é uma doença do cristão. São como aqueles animais, especificou o Papa, que conseguem sair apenas de noite, porque à luz do dia não conseguem ver nada. São os cristãos morcegos[3].
3. Para Michael Lonsdale, um grande actor de cinema e teatro, baptizado aos 22 anos, depois de uma longa busca espiritual, confessa: Jesus é o coração da luz, a fonte de toda a respiração humana. Este homem é, para mim, a verdade que não pode mentir. Li muitos grandes textos espirituais, interessei-me por diferentes religiões e sabedorias, muçulmanas, budistas ou vindas da Índia… Há coisas muito belas nos Upanishads, no Budismo e, sem dúvida, nos filósofos que tenho dificuldade em ler. Com Cristo, eis-nos na única religião onde o amor vem primeiro que tudo. Para mim, não há nada mais forte do que as palavras de Jesus.
O ser humano procura Deus. Há budistas maravilhosos, hindus com uma sabedoria impressionante, mestres sufis… Senti-me muito feliz a gravar textos de Lao-Tsé ou de Confúcio. Mesmo nas religiões primitivas como os Maias ou os Aztecas, a humanidade aspira a este encontro com o divino, ficando por vezes disposta aos gestos mais loucos.
(…) Em toda a minha vida, aquilo que li mais verdadeiro foi o Evangelho. A palavra de Jesus é a mais justa, a que suscita mais vida. É fonte de bondade, de generosidade entre os seres humanos. Esta generosidade, este cuidar dos outros em primeiro lugar, toca-me profundamente[4].
Reproduzi uma breve passagem deste emocionado testemunho porque ao dizer a originalidade da sua fé, não precisou de diminuir o que de belo e verdadeiro encontrou nas outras tradições religiosas. A ética e a religião encontraram-se e são boa companhia.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 05.06.2016




[1] Francisco J. Ayala, A Natureza Inacabada, Dinalivro, 1998, pp.261294
[2] Lc 13, 10-17; 14, 1-6
[3] Papa Francisco, O espírito da Quaresma e da Páscoa, Paulus, 2016 pp 121 - 124
[4] Michael Lonsdale, O amor tem rosto, Paulinas, 2016