1. Apesar
do Papa Francisco e das suas intervenções carregadas de humanidade divina, o
fundamentalismo religioso, mesmo no seio da Igreja católica, não desarma. Panfletos
como o da folha dominical de uma paróquia da Califórnia - votar no Partido
Democrata é pecado mortal; declarações como a do padre italiano à emissora
católica Rádio Maria- os sismos, em
Itália, são um castigo divino pelas uniões civis dos homossexuais, ou as expressas
à revista Família Cristã pela responsável
da Associação de Psicólogos Católicos - um filho homossexual é como ter um
filho toxicodependente, são afirmações que não pecam por muito inteligentes.
Infelizmente há outras mais tóxicas. Cresce um mal-estar muito vasto não só em
relação ao tom e ao conteúdo fundamentalista das homilias dominicais, como acerca
das desastradas atitudes no acolhimento aos pedidos de baptismo e de casamento.
Em certos casos, em vez de constituírem uma oportunidade de evangelização,
resultam em afastamento e azedume contra a Igreja.
Talvez mais perigoso
ainda, sob todos os pontos de vista, é o populismo político que tomou
proporções alarmantes com a eleição do pobre Trump. Geralmente, há sempre
queixas por os eleitos não cumprirem as promessas eleitorais. Neste caso, até
os republicanos gostariam que ele não as cumprisse todas. O homem é um susto e
a aliança com o Putin faz aquecer a guerra fria. A Europa, que teve momentos de
lucidez, já não tem certezas de nada. Tudo pode acontecer.
Com perspectivas
diferentes, existe uma curiosa coincidência de desassossego entre os textos de
encerramento do ano litúrgico e os textos políticos do Público[1]
desta segunda-feira, em que escrevo.
2. Não
vou regressar ao meu texto do Domingo passado. Dizem-me que gozei com a exclusão definitiva das mulheres ao
sacerdócio, embora pelo baptismo sejam tão sacerdotes como os homens. As
minhas razões eram e são de ordem teológica. Não são apenas minhas, que não
teriam importância nenhuma. Como diz Edward Schillebeeckx[2],
seguindo Tomás de Aquino, não temos nenhum conceito adequado para falar de
Deus. A nossa linguagem é e permanece limitada. É uma linguagem terrestre para
coisas terrestres.
Deus é inexprimível: nós
não sabemos o que é Deus em si mesmo; dele captamos, apenas, um esplendor fraco
através do mundo criado e no decurso da nossa história no mundo, história feita
de acontecimentos felizes e de tragédias. Não é só o Deus incognoscível, mas
também as expressões ou os dogmas sobre Deus que pertencem, à sua maneira, ao
objecto da fé. Isto não implica, porém, de modo nenhum, que devam ser tratados em pé de igualdade.
A auto-revelação de Deus
é dada em experiências humanas interpretadas. Nunca temos acesso à “Palavra de
Deus” de modo imediato. Estritamente falando, a Bíblia não é a Palavra de Deus,
mas um conjunto de testemunhos de fé
de crentes que se situam numa tradição particular da experiência religiosa. É
por isso que E. Schillebeeckx, no uso litúrgico, utiliza, o menos possível, a
conclusão solene: “palavra do Senhor”, precisamente porque Deus nunca fala
assim. São crentes que falam.
Isto significa que, se em
todo o dogma uma verdade se exprime de facto, fá-lo, no entanto, sempre de modo
defeituoso e historicamente condicionado. Enquanto expressão verbal da fé, o dogma
pode mudar no decurso do tempo. A partir das nossas questões, a fidelidade
ao Evangelho e aos dogmas da Igreja pode, por vezes, exigir de nós romper com a
imagem ultrapassada do ser humano e do mundo, na qual a verdade evangélica foi
outrora expressa.
Há aí uma missão
importante de diálogo no seio do cristianismo, missão que constitui uma missão
própria para os teólogos. O que nos é transmitido
a partir do Antigo e do Novo Testamento são interpretações
de experiências de Deus. Ora, experiências não podem ser comunicadas a outros
enquanto experiência. Cada geração deve, ela mesma e de modo pessoal, fazer a
experiência. A experiência cristã de Deus também não pode ser transmitida.
Podemos apenas permitir que essas expressões e descrições se abram, em nós, como
experiência pessoal. Só a partir do ponto de falhanço de todas as nossas
palavras é que podemos falar do mistério divino. Mas nessa palavra, decifração
rigorosa e tacteio razoável no seio das possibilidades culturais de
compreensão, o Deus vivo já “se dirigiu” silenciosamente a nós, antes mesmo de
termos podido exprimir a nossa experiência. São experiências humanas que são, no entanto, realmente
suscitadas pelo Deus incompreensível, esse Deus activo, embora não intervenha
nem se imponha.
3. E.
Schillebeeckx, neste texto, como em várias das suas obras, diz as razões pelas
quais um dogma pode mudar. A sua expressão já não serve para defender o que
estava em causa quando foi formulado. Mas se um dogma pode mudar, quanto mais
uma declaração que só é definitiva porque foi declarada como tal, mesmo que
pretenda interpretar uma tradição secular.
Em qualquer caso, não
podemos usar o nome de Deus em vão como legitimação das afirmações, frutos da
nossa responsabilidade ou irresponsabilidade.
Frei Bento Domingues,
O.P.
in Público, 20.11.2016
[1]
Público 14.11.2016
[2]
A Identidade Cristã: Desafio e Desafiada,
in Deus no século XXI e o futuro do cristianismo (coor. Anselmo Borges), Campo
das Letras, 2007, pp 409-411. O texto de E. Schillebeeckx interpreta duas
referências fundamentais da Summa
Theologiae, I. q. 1. a 7. ad 1; II-II. q. 1. a. 2, c. São da minha
responsabilidade os recortes, as divisões e a pontuação das transcrições do
texto de E. Schillebeeckx, para facilitar a sua leitura.
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