1.
Pertencem a Paulo os primeiros escritos do Novo Testamento. Não são de carácter
narrativo. São tentativas de interpretação de uma experiência que mudou
completamente a sua vida, que o fez nascer de novo. A iluminação que derrubou
as suas certezas não o fez ver apenas que nem Jesus nem os seus discípulos eram
traidores da autêntica fé de Israel. Esta tinha sido atraiçoada ao deixar-se
prender pela Lei, pelos seus preceitos e regulamentos, tornando-se uma questão
nacionalista.
Jesus não cabia em Israel
e não era só um judeu fora de série. Era um começo novo da humanidade. S. Lucas
imaginou a sua genealogia como filho de Adão, como filho de Deus[i]
e S. Mateus dirá, citando Isaías, que ele é Deus
connosco[ii].
É o evangelho de um filho da humanidade para toda a humanidade.
Quem frequentar as
engenhosas narrativas, magníficos romances do nascimento e dos começos da vida
de Jesus, não corre o perigo de imaginar que estamos a preparar, com o Advento,
o nascimento de Cristo, assunto há muito resolvido. O que nos falta é consentir
em nascer de novo. Como já referimos na semana passada, a grande figura do
Natal é Nicodemos, um fariseu membro do Sinédrio[iii],
que andava de noite à procura da luz.
2.
Maria, nunca foi, nunca será tirada do Presépio, mesmo que este não figure nem
no Evangelho de Marcos nem no de João, que apanharam Jesus já em andamento.
No Evangelho de João, Maria
é surpreendida entre dois milagres, ou sinais, como ele gosta de dizer. Tudo
começa com um casamento onde se encontrava a Mãe de Jesus e para o qual também o
seu filho e os seus discípulos foram convidados.
É estranho que numa boda falte
vinho. Maria mostra-se muito ansiosa com aquela vergonha e pede ao filho que
faça alguma coisa. Recebe uma resposta mal criada, agressiva. Maria faz-se
desentendida e diz aos serventes: fazei o
que ele vos disser. Água não faltava e,
de repente, torna-se num vinho de excepção. Todos conhecemos o resto da
conversa, o milagre da água convertida em vinho. Só que o verdadeiro milagre não
foi esse. Esquecemos o milagre dos milagres.
Fixemos o contraste da
narrativa. No começo, Maria é a mãe que mostra a sua relação com o filho. O seu filho. É ela que toma a iniciativa. Não
esqueçamos a continuação.
Depois do que aconteceu, desceu a Cafarnaum ele, a sua mãe, os seus
irmãos e os discípulos. Ali ficaram alguns dias.[iv]
Qual foi, então, o grande
milagre? A partir daquele momento, no Evangelho de S. João, nunca mais se fala
de Maria, mãe de Jesus. Só reaparece durante a crucificação do seu filho: Perto da cruz de Jesus, permaneciam de pé a
sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria, mulher de Clopas e Maria Madalena. Jesus
então, vendo a sua mãe e, perto dela, o discípulo a quem mais amava, disse à
sua mãe: Mulher, eis o teu filho! Depois disse ao discípulo: eis a tua mãe! E,
a partir dessa hora, o discípulo recebeu-a em sua casa[v].
3. Que
significa este longo silêncio? Jesus viveu uma longa polémica com os discípulos:
traído por um e abandonado por muitos[vi].
Os seus irmãos também não acreditavam nele[vii].
O caso de Maria é
completamente diferente. O Evangelho de João mostrou que a mãe de Jesus deixou
de mandar no seu filho, mas não o
abandonou, nem deixou de acreditar nele. Tornou-se a mãe que vai,
silenciosamente, para a escola do filho. Só reaparece quando já está
identificada com o projecto de Jesus e com a decisão de o acompanhar até ao
fim.
Se Jesus passou a vida, a
sua vida de intervenção pública, a tentar fazer família com que não era da
família, a ponto de os familiares o julgarem doido[viii],
na cruz, Maria é apresentada como a Mãe da nova humanidade. Ela vai aparecer no
meio dos apóstolos na preparação do advento do Pentecostes: eram Pedro, João,
Tiago, André, Filipe e Tomé, Bartolomeu e Mateus, Tiago, filho de Alfeu, Simão
Zelote e Judas filho de Tiago. Todos,
unânimes, eram assíduos à oração com algumas mulheres, entre as quais Maria,
Mãe de Jesus e os seus irmãos[ix].
O doido da família
conseguiu enlouquecer a família.
Se a Igreja renunciasse a
trabalhar por um mundo, família de muitas famílias, de muitos povos, culturas e
religiões ou sem religião, significaria que tinha renunciado a acreditar na sua
missão: revelar que, na sua imensa diversidade, há uma só humanidade, feita de
filhos de Deus, de irmãs e irmãos. Talvez continuasse a falar na dignidade e no
primado da pessoa humana, mas estaria apenas a referir-se a uma abstracção.
Importa confessar que
isto está muito atrasado. Passaram dois mil anos e, quando dizemos que Jesus é
o Messias, ainda estamos longe dos poemas de Isaías e das promessas do
Apocalipse de um novo céu e uma nova terra[x].
Não é coisa que não se
soubesse há dois mil anos. As parábolas do grão de mostarda e do fermento não
nasceram por acaso.
No entanto, nem elas nos
podem valer. Não temos nenhuma fórmula que nos explique o mistério do tempo. A
Fé cristã está ligada a um crucificado. A Ressurreição diz-nos que a morte não
é a última palavra sobre a nossa vida. A sua garantia só é dada pelo que
fizermos para ressuscitar alguém esquecido na sua dor.
A igreja não tem nenhuma fórmula para
salvar o mundo. É uma convocatória para o trabalho. Não é pouco.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público
18.12.2016
[i] Lc 3, 38
[ii] Mt 1, 23
[iii] Jo 3, 1-21
[iv] Jo 2, 1-12
[v] Jo. 19, 25-27
[vi] Jo 6, 64-71
[vii] Jo 7, 1-16
[viii] Mc 3, 20-33
[ix] Act 1, 12-14
[x] Ap 21-22
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