1.
Em conversa com um
amigo, a propósito da recente avalanche de escritos sobre Fátima, ele defendia que
o mais sólido e resistente capital simbólico português do século XX-XXI nasceu
de dois fenómenos quase simultâneos e completamente diferentes: o dos heterónimos
de Fernando Pessoa e o dos pastorinhos da Cova da Iria. Um é poético e o outro é
religioso. A figura mais emblemática e enigmática da Poesia, que goza de um
crescente reconhecimento internacional, é Fernando Pessoa. A Religião que atrai
milhões, com pretensões a “altar do mundo”, é Fátima.
Essa observação talvez não seja apenas megalomania e nostalgia
de um império perdido, mas é uma abordagem que excede os propósitos desta
crónica. É verdade que tanto o referido fenómeno poético como o religioso
surgiram na mesma época, mas o Desassossego
de Fernando Pessoa - reconhecendo que “a vida é uma metafísica às escuras
com um rumor de deuses e o desconhecimento da rota como a única via” - nunca
tomou o caminho de Fátima e a religião de Fátima nunca se encontrou com a grande
Poesia nem com o questionamento metafísico[i].
Seria, no entanto, muito precipitado concluir que o fundo da
experiência religiosa seja incompatível com a ciência, a filosofia e a arte. Sobre
essa problemática, Einstein pronunciou-se de um modo que merece atenção:
“A mais bela e
profunda experiência que o ser humano pode ter é o sentido do misterioso. É o
princípio básico da religião, como de todo o empreendimento sério em arte e
ciência. Quem nunca teve esta experiência parece-me, senão morto, pelo menos
cego. Sentir que por trás do que pode ser experienciado há algo que a nossa
mente não pode atingir e cuja beleza e carácter sublime só indirectamente nos
chega como um fraco reflexo, isso é religiosidade. Neste sentido, sou
religioso. Para mim, basta pensar nestes segredos e humildemente tentar captar
com a minha mente uma mera imagem da estrutura soberba de tudo o que existe[ii].” Algo semelhante foi
destacado por L. Wittgenstein: “O inexprimível - o que eu considero misterioso
e não sou capaz de exprimir - talvez seja o pano de fundo a partir do qual
recebe sentido seja o que for que eu possa exprimir[iii]”.
Com O Livro do Desassossego,
Fernando Pessoa desassossega as crenças, a teologia, o ateísmo, o cepticismo e
o niilismo. Abala todas as aparentes certezas. Só quando percebermos que não
nos entendemos a nós próprios, não entendemos os outros, não entendemos o
universo, não entendemos Deus, poderemos começar a ser religiosos, isto é, pessoas
atentas ao mistério de tudo. O ser humano é precisamente aquele que sabe que
não sabe. Vive na finitude do mundo e na nossa imperfeição.
2. Não é credível que as primeiras
“aparições” de Fátima tenham sido encomendadas aos pastorinhos nem que o seu
desenrolar, durante um século, estivesse predeterminado no céu e na terra. É
normal que as exigências do método histórico vão detectando o carácter
construído daquilo que foi apresentado como ditado de Nª Senhora.
A própria Lúcia confessa que foi o Padre Faustino “quem nos
ensinou a guardar o nosso segredo”, assim “como o modo de dar gosto a Nosso
Senhor em tudo e, a maneira de lhe oferecer um sem-número de pequenos
sacrifícios: se vos apetecer comer uma coisa, meus filhinhos, deixai-a e, em
seu lugar, comei outra e oferecei a Deus esse sacrifício, se vos apetecer
brincar, não brincai e oferecei a Deus esse sacrifício[iv].” O cónego Formigão e
outros não conseguiram esconder a sua mão na configuração das metamorfoses das
narrativas ao longo do tempo, servidas por uma grande capacidade adaptativa da
Irmã Lúcia, testemunhada nas suas Memórias
e nas suas Cartas[v].
A preocupação pela historicidade das chamadas Aparições de Fátima é legítima para distinguir
a eclosão do próprio fenómeno religioso dos posteriores desenvolvimentos
controlados por eclesiásticos, desde Aljustrel
até Tuy[vi].
O que os pastorinhos disseram e as circunstâncias das suas narrativas podem ser
estudadas. A credibilidade humana de todas essas declarações é assunto de
investigação. É normal que surjam interpretações diferentes. O que nenhum
católico está obrigado a acreditar é no carácter sobrenatural dessas
manifestações marianas, as chamadas mariofanias.
As declarações eclesiásticas de que o fenómeno de Fátima é digno de crédito,
não podem ser acrescentadas ao Credo. São de outra ordem.
Poderá então perguntar-se: tantos milhões que vão a Fátima andaram
enganados?
3. A sedução de um fenómeno religioso não se mede pela sua historicidade. Não é a
impossível verificação empírica do sobrenatural que está na origem dos grandes
centros de peregrinação. O que atrai os peregrinos é o testemunho de algo fantástico
reconhecido como sagrado. Santiago de Compostela foi e continua, desde a Idade
Média até aos nossos dias, uma das maiores peregrinações do Ocidente. Os restos mortais de Santiago viajaram da
Terra Santa até Compostela, num barco de pedra guiado por anjos!
António Marujo e Rui Paulo da Cruz publicaram uma obra, A Senhora de Maio. Todas as perguntas sobre Fátima[vii].
Pode ser que ainda falte alguma, mas a sua música dissonante,
a várias vozes, dá muito que pensar, como
veremos.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 26.02.2017
[i] Já abordei as relações de
Fernando Pessoa com Fátima em Bento Domingues, A Religião dos Portugueses, Figueirinhas| Porto| Lisboa, 1988
[ii] Cit. por Len Port, Fátima – milagre, ilusão ou fraude?
Guerra e Paz, Lisboa, 1917
[iii] Cultura
e Valor, Ed.70, Lisboa 1976
[iv] Cf. Aurélio Lopes, Videntes e Confidentes, Cosmos, 2009,
pp.231-232
[v] P. António Maria Martins, S.J., Novos documentos de Fátima, Livraria AI, Porto, 1984
[vi] O próprio Santuário se
encarregou de publicar a DOCUMENTAÇÃO
crítica de Fátima, em vários volumes. Existe uma Enciclopédia de Fátima, Coord. Carlos Azevedo/Luciano Cristino,
Principia, 2007 e vai crescendo sempre o número das obras sobre Fátima.
[vii] Temas e Debates –
Círculo de Leitores, Fev. 2017