1. Fátima pode dar para tudo, mas não dá para todos! Mesmo a preços
loucos, já é impossível arranjar onde dormir de 12 para 13, do próximo mês de Maio.
Um antigo colega da Escola Apostólica telefonou-me indignado com esse tipo de
observações: um verdadeiro peregrino não vai a Fátima para dormir. Vai para se
sacrificar e rezar. Penitência e oração é o programa que os pastorinhos
transmitiram, como pedidos de Nossa Senhora. Lembrou-me ainda como também ele e
eu, pelos finais dos anos 40 do século passado, aguentamos várias vezes, ao
relento, com um cobertor, a noite fria de 12 para 13. Quem é capaz de fazer
centenas de quilómetros a pé também pode substituir alguns por uma noite ao
relento. Agora, comercializada e aburguesada, tem de seguir a prática da lei da
oferta e da procura. O turismo religioso é um negócio muito antigo no qual o
substantivo e o adjectivo se ajudam numa tensão fecunda. É sabido que Jesus
Cristo não gostava nada desse comércio. Os quatro evangelistas narram, por esse
motivo, a sua indignação no átrio do Templo de Jerusalém: “Estava próxima a
Páscoa dos judeus, e Jesus subiu a Jerusalém. Encontrou no templo os
vendedores de bois, ovelhas e pombas, e os cambistas nos seus
postos. Então, fazendo um chicote de cordas, expulsou-os a todos do templo
com as ovelhas e os bois; espalhou as moedas dos cambistas pelo chão e
derrubou-lhes as mesas; aos que vendiam pombas, disse-lhes: Tirai isso daqui. Não façais da Casa de meu
Pai uma feira[i].
O meu confrade, Frei Henrique Urbano,
professor de sociologia e antropologia numa universidade do Canadá e cofundador
do Centro Bartolomeu de Las Casas, de Cusco, e um dos maiores investigadores da
cultura Inca, morreu em Lima, em 2014. Fui seu colega no Studium Sedes Sapientiae, em Fátima, nos anos 50 do século passado.
Tudo o que acontecia nas visitas ao Santuário e arredores alimentava o seu
inesgotável humor, como vitória do riso sobre a estupidez. Numa das últimas
passagens por Fátima repetia-me: o fenómeno da Cova da Iria é radicalmente
antimarxista. Alí, a superestrutura criou todas as infraestruturas. Foi a
crença, a ideologia religiosa, que criou uma cidade próspera, não só pela
abundância de presenças religiosas permanentes, mas também com uma rede
hoteleira importante no centro do país. Acolhe o religioso e o profano para
congressos, reuniões, celebrações de todo o género. Para lá se dirigem, todos
os anos, milhões de crentes e curiosos, vindos de todo o mundo.
2. Dos
acontecimentos de 1917 sabemos o que é atribuído aos pastorinhos de Aljustrel.
Só a Lúcia escreveu as suas memórias, tardias, em relação aos acontecimentos.
Nada de especial. É sempre assim. O que espanta é a mediocridade das
hermenêuticas desse fenómeno. Cansam. Quando pretendem teologizar ainda
aumentam mais o aborrecimento. António Marujo e Rui Paulo da Cruz deram-se ao
trabalho de elaborar uma obra diferente. Poderia chamar-lhe os heterónimos de
Fátima[ii]. Porquê? Recolhem
testemunhos dos documentos das aparições, estudos sobre o contexto dos conflitos
entre a República e católicos, a pluralidade de leituras na Igreja Católica,
diversas leituras da antropologia e da sociologia religiosa, voltam ao fenómeno
das aparições e à beatificação dos pastorinhos, interrogam-se sobre a
actualidade de Fátima, 100 anos depois.
Tudo isto poderiam ser, apenas,
capítulos de um livro bem planeado.
Seria mais ou menos do mesmo. Mas
não. Todos os temas são a várias vozes, bem identificadas, sem contaminações,
mas também não são, apenas, vozes justapostas, de costas umas para as outras. A Senhora
de Maio espera cumprir o que a escritora Lídia Jorge nela descobriu: “Oxalá
este livro […] possa abrir o capítulo de uma discussão que convém ser serena na
forma, mas não poderá evitar a contradição, o debate e o confronto aberto das
ideias em face da crença. Debate que sempre ultrapassa os níveis da razão e da
ciência – mas não os ignora -, esse patamar de confronto delicado tão difícil
de alcançar em Portugal[iii]”.
Não posso saber como os entrevistados
e os leitores vão reagir à reunião de tantas vozes tão diferentes. Pelo meu
lado, só posso agradecer aos autores a fidelidade com que reproduziram o meu
longo depoimento, Fátima a várias
dimensões, de Janeiro de 2000. É, ainda hoje, o texto em que me reconheço
plenamente.
3. Como já
aqui escrevi, não pretendo saber o que o Papa Francisco virá dizer a Fátima.
Importa, porém, estar atento às últimas disposições deste peregrino. Referindo-se
às religiosas e religiosos – tão inflacionados em Fátima - pediu-lhes para não
cederem à tentação da sobrevivência da
vida consagrada e das suas instituições. A cedência a essa tentação torna-os estéreis,
reaccionários, fechados lenta e silenciosamente, nas suas casas e nos seus
esquemas. A tentação da sobrevivência faz-lhes esquecer a graça e transforma-os
em profissionais do sagrado, mas não em
pais, mães e irmãos da esperança a que fomos chamados, a profetizar[iv].
Bergoglio, por ocasião do número 4000
da revista Civiltà Cattolica, recebeu os padres jesuítas que nela trabalham e
fez-lhes recomendações bem estimulantes. Quis sublinhar três palavras para irem
em frente: desassossego, incompletude, imaginação. Não podendo explicitar a
mensagem de cada uma delas, destaco, como ele próprio diz: a primeira palavra é
Desassossego. Faço-vos uma pergunta: o vosso coração conservou o desassossego
da busca? Só o desassossego dá paz ao coração de um jesuíta. Sem desassossego
somos estéreis. Se quiserdes habitar pontes e fronteiras deveis ter uma mente e
um coração desassossegados. Por vezes confunde-se a segurança da doutrina com a
suspeita pela busca. Não seja assim para vós. Os valores e as tradições cristãs
não são peças raras para fechar nos cofres de um museu. A certeza da fé seja,
ao contrário, o motor da vossa busca[v].
Isto não é só para os jesuítas.
Frei Bento Domingues, O.P.
Público 05.03.2017
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