1. Dizem-me
que, hoje, no campo religioso, a espiritualidade
é a sua expressão mais chique e o esoterismo,
a mais democrática pela numerosa oferta de expedientes, sem os aborrecidos
mandamentos das religiões.
Há
espiritualidades para tudo e mais alguma coisa. Cada uma das ordens e
congregações religiosas reclamam-se de uma espiritualidade original, marca da
sua identidade. Os diferentes movimentos do laicado católico alargaram esse
pluralismo ao apresentar e justificar os seus caminhos e mediações
pretensamente inconfundíveis.
Redescobriu-se,
no diálogo inter-religioso, que o divino Espírito não é propriedade privada de
ninguém. Existem movimentos agnósticos e ateus que se reclamam de uma profunda
sabedoria espiritual. Mas ficava sempre alguma coisa de fora. A chamada espiritualidade
holística é tão abrangente que nela há lugar para tudo.
O
todo é inabarcável e, como diz o Novo Testamento, o Espírito sopra quando e onde
quer, sem pedir licença a ninguém, resistindo a ser domesticado. As
classificações humanas dos carismas não podem impedir, no seu catálogo, a
espiritualidade dos insatisfeitos.
2. Jesus
Cristo não pertencia à tribo sacerdotal. Era um leigo bastante sóbrio no
tocante a expressões cultuais. Detestava o exibicionismo da religião do seu
tempo e do seu meio. Os seus discípulos não percebiam as razões da sua discrição.
Segundo S. Lucas, até se queixavam de serem um grupo sem livro de orações: Senhor, ensina-nos a orar, como João ensinou
os seus discípulos[i].
O
anti exibicionismo do Nazareno era radical: «Quando orardes, não sejais como os
hipócritas. Eles gostam de fazer orações pondo-se em pé nas sinagogas e nas
esquinas, a fim de serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo: já receberam
a sua recompensa. Mas tu, quando
orares, entra no teu quarto e, fechando a porta, ora ao teu Pai ocultamente e o
teu Pai, que vê o que está oculto, te recompensará[ii]».
Na
mesma passagem, S. Mateus destaca que o Mestre não quer nada com os moinhos de
orações. São os gentios que insistem na vã repetição, porque entendem que é pelo palavreado excessivo que
serão ouvidos. O vosso Pai sabe do
que precisais antes de lho pedirdes.
A
verdade da religião perde-se no vício do ruído e ganha-se no silêncio da escuta
persistente.
Não
terá S. Lucas corrigido a extrema sobriedade de S. Mateus? Não me parece. Com
pequenas diferenças, o Pai Nosso – resumo
das grandes linhas e preocupações do Evangelho – é comum aos dois escritores.
S. Lucas elabora, de facto, uma pedagogia completamente diferente. Criou uma
parábola que parece dizer o contrário de Mateus. Serve-se da experiência do que
muitas vezes acontece: só com muita insistência e aborrecida repetição se obtém
resposta a um pedido incómodo.
A
narrativa pode dar a ideia de que Deus é surdo, que não está para se incomodar,
insensível à urgência de uma pessoa aflita. Mas a parábola é, simplesmente, astuciosa.
Dá um salto: a insistência na oração é fundamental, não para informar a Deus nem
para o convencer, mas para nos convencermos da dificuldade que temos em nos
abrirmos ao seu desígnio que é infinitamente melhor, para nós, do que os nossos
cálculos mesquinhos. Precisamos de muita insistência para converter o nosso
desejo ao desejo amante de Deus. Precisamos de entrar na sua onda, na onda do
seu espírito. Tudo o que se faz, em religião, é apenas para conseguir uma
abertura que nos torne disponíveis para as exigências do Evangelho, segundo o
Espírito de Deus.
Neste
sentido, podemos dizer que Jesus Cristo era um grande espiritual. O caminho e o
baptismo de João serviram, apenas, para lhe mostrar que aquele não podia ser o seu
caminho, nem aqueles banhos rituais e moralistas podiam trazer o Reino de Deus.
Contam os evangelhos que ele entrou em oração – abertura da terra ao céu – e
teve a experiência mística do dom do Espírito Santo. Foi uma divina declaração
de puro amor, mostrando que não é do céu que poderá vir a condenação da terra[iii].
3. As
Igrejas cristãs, ao longo dos séculos, encarregaram-se de contrariar a
sobriedade e o anti exibicionismo religioso de Jesus Cristo. Com ritos e ritmos
diferentes, com música ou sem música, encheram livros e livros com orações para
todas as horas, para todos os lugares e circunstâncias, a propósito e a despropósito.
Conheço
muitas colecções de livros com as melhores e piores orações do mundo, com
santos especializados, sempre de serviço, para todas as aflições e ocasiões,
para todos os objectos perdidos e acções de graças para os casos bem sucedidos.
Sempre
me pediram para não me rir, mesmo das expressões mais ridículas da
religiosidade e da superstição. Diziam: se isso ajudar as pessoas a viver, a
superar o desespero e a depressão, talvez não sejam mais prejudiciais do que o
recurso permanente às farmácias e pode ficar mais barato.
A
oração exprime a condição humana, na sua verdade mais pura: o nosso limite e o
desejo ilimitado de felicidade. Elevar a Deus o nosso pedido de socorro ou de
acção de graças revela, para o crente, uma atitude saudável. Significa que
acreditamos que não estamos sós, mas seria grossa asneira supor que Deus é o
substituto da investigação científica, da organização do Estado, do bom
funcionamento do ensino, do serviço nacional de saúde, de hospitais de
qualidade, do funcionamento da Justiça, da solidariedade, etc. Jesus Cristo fez
muitas curas e até andou sobre as águas do mar, mas não deixou a receita. Os
seus gestos dizem que o mundo não tem de ser uma desgraça, mas somos nós os
encarregados de cuidar da casa comum, habitável e bela.
Deus
não é tudo. A ideia de mundo criado supõe um mundo limitado e falível. Não vale
a pena discutir se Deus não podia criar um mundo perfeito. Seria uma absurda
réplica de Deus, Deus repetido.
A
oração ajuda a reconhecer a verdade da nossa condição humana limitada, aberta à
transcendência absoluta do Amor que nos pergunta: Que fizeste do teu irmão?
Frei
Bento Domingues, O.P.
19.
03. 2017
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