1. Pesadelos do Inferno,
evidências do Purgatório e tristezas do Limbo faziam parte da paisagem
religiosa da minha infância. As Alminhas do purgatório habitavam em dois nichos
na minha aldeia. Suscitavam devoção e reciprocidade: «Vós, que ides passando,
lembrai-vos de nós que estamos penando». As pessoas lembravam-se e, para tudo o
que precisavam, a elas recorriam, sabendo que aliviavam as suas penas. Em favor
delas não podiam fazer nada, mas, quando invocadas com promessas cumpridas,
eram uma fonte de graças para todas as ocasiões. Não desempregavam Santo António
ou S. Bento da Porta Aberta, mas estavam mais à mão. As esmolas que recolhiam
serviam para mandar dizer missas pelas mais abandonadas.
Eram Alminhas pintadas. Um dos nichos ficou muito estragado
e foi pedido a um habilidoso de muitas artes, que periodicamente passava por
lá, para o repintar. Perguntou: querem ver as Alminhas a irem para o céu ou a
continuarem no Purgatório? É claro, a irem para o céu. Veio um inverno rigoroso
e a pintura desapareceu. O pintor não aceitou a queixa acerca da má qualidade
das tintas. Tinham ido todas para o céu.
O inferno era outra história. Por tudo e por nada, uma mãe
zangada com os filhos (ou até com o gado), juntamente com um palavrão,
exclamava: metes-me a alma no inferno! Não era grave. Grave, muito grave, eram
os sermões de preparação para o “confesso”: quem não confessasse, com todas as
circunstâncias, os pecados mortais e morresse nessa situação, ia direitinho para
o Inferno. A alma caía num lago de fogo, atiçado por uma multidão de diabos
feios e maus e nunca mais de lá saía. O relógio infernal repetia “sempre, nunca”:
aqui entraste, aqui ficas e daqui nunca sairás!
O inferno era eterno, mais eterno que o infinito amor de
Deus que nada podia fazer contra essa Instituição. O diabo tinha vencido o Anjo
da Guarda e o próprio Deus.
Para as pessoas de bom senso, não havia lenha para tanta
eternidade nem alma que aguentasse tanto fogo! Um bom caminho para a descrença:
um deus que fabrica tais enormidades é inacreditável.
O Limbo, nem triste nem alegre, para onde iam as crianças que
morriam sem baptismo, era o além mais povoado, não passava de um eterno aborrecimento.
Bento XVI encerrou-o sem protestos.
2. Voltei a ler as
Memórias da Lúcia de Jesus. O que diz
acerca do inferno não excede o que também eu ouvi em criança: «Nossa Senhora
mostrou-nos um grande mar de fogo que parecia estar debaixo da terra.
Mergulhados em esse fogo os demónios e as almas, como se fossem brasas
transparentes e negras, ou bronzeadas com forma humana, que flutuavam no
incêndio, levadas pelas chamas que delas mesmas saiam, juntamente com nuvens de
fumo, caindo para todos os lados, semelhante ao cair das faúlhas em os grandes
incêndios, sem peso nem equilíbrio, entre gritos e gemidos de dor e desespero
que horrorizava e fazia estremecer de pavor. Os demónios distinguiam-se por
formas horríveis e asquerosas de animais espantosos e desconhecidos, mas
transparentes e negros»[1]. Como sugestão para um filme
de terror, não está nada mal. Diz a Lúcia que a Jacinta perguntava: «porque é
que Nossa Senhora não mostra o inferno aos pecadores? (…) Às vezes perguntava
ainda. Que pecados são os que essa gente faz para ir para o inferno? Não sei,
talvez o pecado de não ir à Missa ao Domingo, de roubar, de dizer palavras
feias, rogar pragas, jurar. E só assim por uma palavra vão para o inferno?
Pois! É pecado. Que lhes custava estar calados e ir à Missa? Que pena que eu
tenho dos pecadores, se eu pudesse mostrar-lhes o inferno!»[2]
Passando da Terceira para a Quarta
memória, há revelações curiosas. “Então Nossa Senhora disse-nos: não
tenhais medo, eu não vos faço mal. De onde é vossemecê? Sou do Céu. E que é que
vossemecê me quer? lhe perguntei. Vim para vos pedir que venhais aqui seis
meses seguidos, no dia 13 a esta mesma hora, depois direi quem sou e o que
quero. Depois voltarei aqui uma sétima vez. E eu, também vou para o Céu? Sim,
vais. E a Jacinta? Também. E o Francisco? Também, mas tem que rezar muitos
terços.
«Lembrei-me então de perguntar
por duas raparigas que tinham morrido há pouco, eram minhas amigas e estavam em
minha casa a aprender a tecedeiras com minha Irmã mais velha.
« A Maria das Neves já está no
Céu? Sim, está. Parece-me que devia ter uns 16 anos. E a Amélia? Estará no
purgatório até ao fim do mundo. Parece-me que devia ter 18 a 20 anos. Quereis
oferecer-vos a Deus para suportar todos os sofrimentos que Ele quiser
enviar-vos, em acto de reparação pelos pecados com que Ele é ofendido, e de
súplica pela conversão dos pecadores? Sim, queremos. Ides, pois, ter muito que
sofrer, mas a graça de Deus será o vosso conforto»[3].
3. Nossa Senhora mostrou que era uma pessoa muito organizada e
pouco supersticiosa com o dia 13. Estou um bocado desapontado com a pouca
originalidade das suas revelações e pedidos. Por tudo o que li, parece-me que
os Pastorinhos levaram para os locais do seu pastoreio o que rezavam em
família, o que aprendiam no catecismo e nas pregações. Deviam ser crianças
bastante impressionáveis. A revelação mais extraordinária é, também, a mais
incrível: não bastando à Amélia ter sido violada, vir de Nossa Senhora a afirmação
de que ficaria no Purgatório “até ao fim do mundo”, é de mais. Isso não se faz!
A edição crítica das Memórias de Lúcia de Jesus, as
investigações históricas já realizadas e em curso, vão oferecer um panorama da
vida e religiosidade da freguesia de Fátima que irão atenuando os delírios
acerca destes fenómenos nomeados como aparições ou como visões.
O que mais falta não é só a revisão
crítica da pastoral católica da época. Muitas das suas concepções alojaram-se
na história de Fátima. Desamparada, em Portugal, de uma prática crítica de
reflexão teológica até ao Vaticano II, e até muito depois, Fátima dá uma imagem
do catolicismo português que não corresponde à reforma desencadeada pelo Papa
Francisco.
Falta-lhe ser o centro da nossa evangelização,
como veremos.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 30.04.2017