1. Estaremos no bom caminho? Parece-me
que sim. Digo isto com toda a convicção, mas nada está garantido, à partida. A
história da Igreja não é, nunca foi, nem pode ser, desenhada como uma
auto-estrada de santidade. Quando certa apologética infantil, ignorante ou
perversa falava da história admirável da Igreja, como uma procissão de heróis,
santos, mártires, doutores e místicos, ilustrada nas pinturas e esculturas das
igrejas e capelas, faltava lá o reverso da medalha: a lista das vítimas dos
inquisidores, dos criminosos e perversos em nome da santa vontade de Deus. Em
defesa da revelação divina e da sua verdade contida nas escrituras, nos
concílios ecuménicos, no magistério ordinário e extraordinário dos Papas,
decretaram-se condenações e excomunhões odiosas.
Na
preparação da entrada no Terceiro Milénio[i]
manifestou-se, em alguns sectores da Igreja, a vontade de confessar,
publicamente, os crimes e os pecados do passado, fazendo propósitos de emenda
em relação a determinados processos e instituições que se tinham tornado
prática odiosa e corrente. Basta lembrar o texto de João Paulo II: “Muitos
motivos convergem, com frequência, na criação de premissas de intolerância,
alimentando uma atmosfera passional, à qual só os grandes espíritos,
verdadeiramente livres e cheios de Deus, conseguiram, de algum modo,
subtrair-se. No entanto, a consideração das circunstâncias atenuantes não
dispensa a Igreja do dever de lamentar, profundamente, as debilidades de tantos
dos seus filhos que desfiguraram o seu rosto, impedindo-o de reflectir,
plenamente, a imagem do seu Senhor crucificado, testemunha insuperável do amor
paciente e manso. Destes traços dolorosos do passado, emerge uma lição para o
futuro, que deve levar todo o cristão a ter em conta, o princípio de ouro proclamado
pelo Concílio Vaticano II: A verdade só se impõe pela força dessa mesma
verdade, que penetra nas almas, com suavidade e firmeza.”
De facto, o
que estava a ser esquecido, e cada vez mais, era, precisamente, o espírito do
Vaticano II.
Desde o
Syllabus (1866), da encíclica Pascendi (1907) e, por fim, da Humani
Generis (1953), as lideranças da Igreja desprezaram a liberdade de
investigação e expressão com repetidas e requintadas condenações. Acabo de ler,
a história do historiador e exegeta Alfred-Fermin Loisy[ii]. Este
católico, que tanto queria que a fé cristã fosse uma luz no mundo contemporâneo
– que não pode fazer jejum da razão - foi excomungado. Nunca se resignou a essa
situação e pediu que, na sua campa, fosse escrito: Alfred Loisy. Padre.
Retirado do ministério e do ensino. Professor no Collège de France
(1857-1940). Tuam in votis tenuit volontatem. Correspondia ao que
estava num dos missais usado na liturgia nos anos 30: de coração ele (Loisy)
ficou sempre ligado à Vossa Vontade.
Quando fui
acolhido nos Dominicanos em 1952, vivia-se na Ordem, sobretudo em França, uma
situação atormentada que Yves Congar descreveu com toda a crueza e que, há
poucos anos, François Leprieur analisou[iii], sem dó nem
piedade.
2. Evoco esse passado por uma simples razão:
os tormentos chegaram ao fim com a eleição do Papa João XXIII, o milagre maior
que eu já vivi. Por dificuldades em Portugal, tive a graça de, antes e durante
o Concílio, poder frequentar, devotamente, as suas audiências públicas. Vi,
pela primeira vez, um papa que parecia o avô de toda a gente. Podíamos
verificar que ele gostava de nós todos, os que estavam lá e os que não estavam,
crentes e não crentes, porque todos acreditávamos que ele era a voz da
humanidade à procura de paz e de esperança. Este João era a alegria
bem-humorada. Chegou a dizer que se lembrou de convocar o Concílio quando
estava a fazer a barba. Veio o Concílio. Abriu portas e janelas, acreditando
que as correntes de liberdade mais contrastadas ajudavam a encontrar novos
caminhos.
Morreu antes
de poder levar ao fim a sua santa loucura. Foi triste. Muito triste.
As tormentas
do pós-Vaticano II continuam. As manobras sobre a pílula, o impedimento de
padres casados, a situação dos divorciados recasados, o impedimento do acesso
das mulheres aos ministérios ordenados, o cerceamento da liberdade de
investigação e expressão teológicas, a impossível reforma da cúria e dos
escândalos financeiros do Banco do Vaticano, o êxito ambíguo das viagens
papais, etc. encobriram e fizeram esquecer, em muitas situações, o principal: a
vida real das comunidades cristãs e a forma como estavam a ser servidas ou
atraiçoadas. Quando deram por ela, começaram as queixas sobre abusos sexuais de
padres, bispos e cardeais sobre os menores que lhes tinham sido confiados.
Seria
injusto reduzir o que a Igreja realizou em todos os continentes, no
pós-Vaticano II, a esses milhares de vítimas de crimes horrorosos. Sinto o
sofrimento de muitos cristãos de terem de lidar com o espelho dos meios de
comunicação que lhe falam do que nunca se tinham dado conta. É preciso
compreender que é uma fonte de vergonha. Quando lhes dizem que há poucas
vocações para padres, observam: se querem manter o mesmo modelo que tornou a
vida impossível a tantas crianças e adolescentes, é melhor que não haja. Mas o
zero não é produtivo.
3. O que me tem irritado são as manobras
para fazer do Papa Francisco o bode expiatório de décadas de encobrimentos,
distracções e resistências a reformas inadiáveis. Fazem o mal e a caramunha.
Quando, porém, julgavam que tinham isolado e encurralado o Papa Francisco,
pediam a sua demissão. Tiveram de verificar, uns com gosto e outros com
desgosto, um coro imenso de apoio ao seu programa de reformas, com que começou
o seu pontificado: a Alegria do Evangelho, a acolher e a semear por todo
o mundo.
Bergoglio
não tem jeito para a auto contemplação. Aproveitou para uma nova convocatória
das conferências episcopais e da renovação e intensificação da prática dos
sínodos dos bispos, abertos aos não bispos. Estes e as suas conferências são
intimados a serem a voz das comunidades. Antes de falar têm de escutar, viver
no seu meio para ajudar a renovar e a serem renovados por elas. Realizar aquilo
que Sto Agostinho lembrava: Convosco sou cristão, para vós sou bispo.
Não sei porque
esquecemos o espantoso ritual do Baptismo, Effathá: abre os olhos, abre
os ouvidos para poderes falar. Os cristãos não recebem um báculo de pastores,
mas recebem uma vela. Os pastores não deviam esquecer a luz de Cristo que vem
através de todos os cristãos, de dentro e de fora da Igreja.
O Papa
Francisco varreu a casa ao Espírito Santo!
in Público,
30.09.2018
[i] João Paulo II, Tertio
Millenio Adveniente, 1994
[ii] Cf. DHGE, pp 1085-1100
[iii] Quand Rome condamne, Paris, Cerf, 1989
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À PROCURA DA PALAVRA
P. Vítor Gonçalves
DOMINGO XXVI COMUM Ano B
“Quem não é contra nós é por
nós.”
Mc 9, 40
Por nós e para nós?
Ainda bem que Deus não cobra à humanidade os “direitos de
autor” de tudo o que é bom, belo e verdadeiro. Pelo contrário, fez-nos
co-criadores de todos os milagres da vida, cuidadores daqueles que não dependem
de nós e responsáveis por aqueles que só nós podemos fazer. Por isso, ninguém
tem a exclusividade do bem, e em todos a sua graça pode actuar. Porquê então a
tendência gananciosa e invejosa quando nos julgamos “donos dos milagres”,
“proprietários da verdade”, “únicos criadores de bem e de beleza”?
É maravilhoso descobrirmos a beleza e a bondade onde e em
quem menos se espera. Creio que Deus nos pede um coração de criança por isso
mesmo. É preciso libertarmo-nos dos preconceitos que distorcem a realidade, da
privatização do bem e do belo “só para nós e para os nossos”, do exclusivo da
salvação. As fronteiras e as exclusões são obra dos homens e não de Deus. Com
Jesus, o estrangeiro e o estranho, não é um perigo ou uma ameaça: é uma
oportunidade. A derrubar muros, a partilhar dons, a abrir a mesa fraterna da
comunhão. Seremos nós a colocar limites ao abraço de Deus? Conhecemos a medida
dos seus braços e a surpresa da sua generosidade?
Imagino o sorriso de Jesus diante da queixa do discípulo
João. Sem o repreender, alarga-lhe o coração e o pensamento. Não há limites
para o amor de Deus se manifestar. E até o céu envolve o mundo num simples copo
de água dado por amor. Se as mãos, os pés, e os olhos, que simbolizam o agir
humano, podem fazer o bem, grave é não fazê-lo, e pior ainda, é usá-los para o
mal. Jesus não quer que os cortemos ou arranquemos, pois bem falta nos fazem,
mas os libertemos para a sua vocação essencial: fazer, caminhar e ver, ao modo
de Jesus. Que eles criem, desenvolvam, reconheçam, partilhem os milagres que
são de todos e para todos. Os ricos, denunciados pelo apóstolo Tiago, ao
quererem o bem só para si, excluem-se da comunhão e da festa, e o resultado é a
traça e a podridão. Esse é o maior escândalo: podiam fazer tanto bem, mas o
egoísmo e a ganância torna-os artífices do mal. E não corremos o risco de ser
um pouco “ricos” assim?
O que faltou a João e aos discípulos foi a alegria de ver o
bem realizado por outros. Reclamaram uma posse, uma exclusividade, um direito
que Deus não dá a ninguém, porque é de todos. E a alegria torna-se um critério
da vida renovada de Jesus. A alegria dos milagres alheios, do crescimento de
quem quer que seja, da saúde e da paz que outros alcançam, dos dons que se
partilham generosamente, das obras boas e belas que são feitas. E para que a
alegria seja plena são precisas as mãos, os pés e os olhos de todos!
in Voz da Verdade, 30.09.2018
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Laicos de
Iquique: “Queremos creer que comienza a desmoronarse proteccionismo feroz que
reinaba entre nuestros pastores”
Luego que
el Papa Francisco, anunciara que disminuirá el estado clerical a Fernando
Karadima, la Cunidad de Laicos y Laicas Diócesis de Iquique, valoró la decisión
del Pontífice, lo que viene a abrir una luz de esperanza. “Queremos creer que
comienza a desmoronarse el proteccionismo feroz que reinaba entre nuestros
pastores y a la vez, esperan que “la limpieza alcance todos los rincones de
Chile” y que “ninguna víctima quede sin justicia y reparación”.
DECLARACIÓN
PÚBLICA
Con fecha
28 de Septiembre de 2018, el Papa Francisco ha disminuido del estado clerical a
Fernando Karadima Fariña. De lo anterior exponemos:
Valoramos
la desición excepcional del obispo de Roma, no sin antes reconocer el largo via
crusis que han recorrido las víctimas de Karadima, siendo un ejemplo de
valentía y perseverancia. Han mostrado la íncómoda verdad que otros intentan
ocultar, enfrentando todo un aparato encubridor en la jerarquía de la Iglesia
Católica Chilena.
Nos
enorgullecen los hermanos de la Organización de laicos y laicas de Osorno,
quienes generaron un clima de apoyo, confianza y dignidad con las víctimas,
para que supieran que esta iglesia del pueblo no les abandona. A pesar de los
constantes ataques que vinieron en todos los frentes. #niunpasoatrás.
Con esta
tardía pero definitiva resolución del Papa, queremos creer que comienza a
desmoronarse el proteccionismo feroz que reinaba entre nuestros pastores. Que
la limpieza alcance todos los rincones de Chile. Que ninguna víctima quede sin
justicia y reparación.
#otraiglesiaesposible…pero
sin cómplices ni encubridores.
in Edición
Cero, 29.09.2018