28 abril 2019

     
P / INFO: Crónicas de Frei Bento Domingues, O.P., Pe. Anselmo Borges e Padre Tolentino Mendonça & Upcoming trip to Eastern Europe may see pope 'walking on eggs' with Orthodox

OS ESQUECIDOS DA PÁSCOA
Frei Bento Domingues, O.P.
As religiões, quando não enlouquecem — como aconteceu no massacre desta Páscoa —, são uma saudável reacção contra o fatalismo e o niilismo.

1. Os profetas bíblicos foram severos com o culto e os seus rituais por causa da injustiça e da hipocrisia que eles encobriam. Jesus de Nazaré nasceu dentro da mesma tradição religiosa e foi o seu crítico mais radical. No célebre diálogo que abriu com uma mulher samaritana, junto ao poço de Jacob – judeus e samaritanos odiavam-se – atreveu-se a dispensar os respectivos lugares sagrados para a relação com Deus: Mulher, chegou o tempo em que os verdadeiros adoradores não vão procurar nem Jerusalém nem Garizim. O que o meu Pai deseja são adoradores em espírito e verdade[1].
Estaria Jesus a negar valor a todos os rituais do culto? Não é Deus que precisa do culto e dos seus rituais, mas os seres humanos. Ele não precisa que o informemos do que se passa connosco e na sociedade. A oração não modifica a sua santa vontade, modifica-nos a nós. Acorda-nos da indiferença perante o sentido mais profundo da vida. Podemos tentar comover a Deus com os nossos pedidos, mas é o próprio Deus que se comove pelo eterno amor que nos tem. Nós é que não podemos deixar de ser quem somos: seres que, para viver na verdade, reconhecem o seu limite e pedem socorro.
As celebrações litúrgicas católicas estão distribuídas em dois ciclos fundamentais: o do Natal e o da Páscoa. Ao resto chamam-lhe Tempo Comum. Estes arranjos dos liturgistas têm bases bíblicas e uma longa história. São uma forma de organizar a oração oficial da Igreja. Seria ridículo pensar que foi Deus que compôs e impôs esta organização ritual. A verdadeira Igreja, a não confundir com a hierarquia eclesiástica, é o voluntariado do Evangelho. Precisa de rezar para não se descuidar de Deus e do mundo. Uma liturgia sem o imperativo do serviço aos mais necessitados, sem a negação do autoritarismo eclesiástico, isto é, sem a simbólica do lava-pés[2], está condenada a ser nada.
Estamos na oitava da Páscoa, mas as celebrações pascais vão até ao Pentecostes.
Somos irremediavelmente fruto de um tempo, de um lugar, de uma memória e de circunstâncias muito furtuitas. Não estamos, porém, condenados a viver apenas dentro dessas coordenadas. O ser humano é, por essência, possibilidade de entrar em contacto com outras geografias humanas e culturais. Os animais aparecem feitos. O ser humano tem a vida inteira para se fazer, nunca está acabado. Não é, vai sendo. Por outro lado, é capaz de autoconsciência, de linguagem e de sentido. Mas a sua linguagem não é só a do quotidiano ou das ciências. É também a voz de uma interioridade que se exprime através da literatura, da música e de todas as artes. A linguagem simbólica, metafórica, mítica, parabólica não explica. É a forma de exprimir o que não cabe em nenhuma explicação. Sugere o indizível e o infigurável.  
Como ser de relação, os delírios nacionalistas não têm em conta o sentido relativo da história e da cultura. Não podemos viver como um povo eleito ou como um povo condenado. Perder o sentido do relativo da nossa história e da nossa cultura – que não se confunde com o relativismo em que tudo se equivale – é cair na tentação de, falsamente, as absolutizar.
2. I. Kant viu muito bem que a pergunta das perguntas, a que é preciso responder, está condensada numa só: o que é o homem, isto é, o que é o ser humano?
Não é possível responder a essa pergunta sem ter em conta a sua dimensão religiosa. Como diria Fernando Pessoa, o grande mistério é o próprio mistério de existir, que não é algo de provisório que se possa vencer pela ciência ou pela técnica.
Recorrer à palavra mistério por tudo e por nada, é uma forma de preguiçosa ignorância. Existem, de facto, muitas realidades que pareciam um mistério e que, hoje, estão ao alcance de explicações científicas e de realizações tecnológicas. As ciências humanas têm de trabalhar – e cada vez mais – pelo que nos é possível conhecer. Outra coisa é a experiência do inabarcável por qualquer conceito. A experiência do insondável da inteligência e do afecto não é a de uma zona ainda por explorar, mas a da consciência de que não há explicação para as coisas mais simples, para as realidades que não têm porquê. Não há explicação para um poema. Todas as explicações ficam aquém desse milagre de juntar palavras que produzem uma sensação do inefável. A vida simbólica não explica, sugere o que não estava previsto nas estrelas.
3. A morte é o que há de mais fácil de explicar para as ciências da saúde. A palavra defunto é de um miserável latim: “deixou de funcionar”! É uma concepção absolutamente mecanicista do ser humano. As pessoas que fizeram a experiência da morte daqueles que amam não se consolam com uma ausência indesejada. Querer abolir a megalomania do desejo matando o desejo de viver é uma desistência muito pouco humana.
As religiões, quando não enlouquecem – como        aconteceu no massacre desta Páscoa – são uma saudável reacção contra o fatalismo e o niilismo, mas a cedência ao ritualismo deixa a alma inconsolável.
S. Paulo não argumenta a Ressurreição de Cristo como privilégio de Jesus de Nazaré[3]. Pelo contrário, argumentou a partir da ressurreição geral. Para Paulo, não pode haver os esquecidos da ressurreição.
A questão da vida depois da morte é comum a muitas religiões. A expressão “ressurreição” não é a descrição de um fenómeno. É a verificação de um facto. Jesus foi morto e umas mulheres testemunham que ele está vivo e que ele continua connosco.
O iaveísmo sapiencial, ao contrário do nacionalista, é universal: Deus é criador de tudo e de todos, não é apenas o Deus de um povo. Para os que acreditam que a vida humana não acaba com a morte, não pode ser o privilégio de um grupo, de alguns santos, de algumas pessoas excepcionais. Deus não pode abandonar na morte aqueles que ama.
É esta a originalidade da revelação de Jesus de Nazaré, personalidade situada nos limites de um tempo e de um lugar. Não está centrada em si mesma, está polarizada por um Deus que não é propriedade de nenhum povo nem de nenhuma religião. É o Deus que tem, no seu coração, todos os seres humanos e para sempre. Foi esta revelação que comoveu o próprio Jesus e que ele classificou como fonte da nossa verdadeira alegria[4].
Quando fazemos da ressurreição de Cristo um privilégio, esquecemos que ele é o irmão universal. Onde estão os que morreram, aqueles de quem ninguém se lembra? Não estão esquecidos. Confessamos, contra toda a evidência empírica, mas com a mais pura fé e confiança, com a maior fidelidade à vida, que vivem no coração de Deus. Um Deus que se esquecesse das suas criaturas não merecia um minuto de atenção[5].
in Público 28.04.2019
https://www.publico.pt/2019/04/28/sociedade/opiniao/esquecidos-pascoa-1870180


[1] Cf Jo 4, 21-24
[2] Jo 13, 2-20
[3] I Cor 15,13
[4] Lc 10, 17-22
[5] Sobre a questão da morte e da ressurreição ver o magnífico texto de Anselmo Borges, no DN de 20.04.2019.

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A Igreja é uma canoa, não é um museu
Anselmo Borges
Padre e Professor de Filosofia
No Sínodo de Outubro passado, em Roma, um jovem proveniente das ilhas Samoa, disse que a Igreja é "uma canoa, na qual os velhos ajudam a manter a direcção, interpretando a posição das estrelas, e os jovens remam com força, imaginando aquilo que os espera mais além."

Na recente "Exortação Apostólica Pós-Sinodal Cristo Vive aos Jovens e a todo o Povo de Deus", inspirada nas reflexões e diálogos do Sínodo, incluindo opiniões de jovens de todo o mundo, crentes e não crentes, o Papa Francisco retoma a imagem da canoa, para acrescentar: "Não nos deixemos levar nem pelos jovens que pensam que os adultos são um passado que já não conta, que já caducou, nem pelos adultos que julgam saber sempre como é que os jovens se devem comportar. É preferível que todos subamos para a mesma canoa e que entre todos procuremos um mundo melhor, sob o impulso sempre novo do Espírito Santo."

A pastoral só pode ser sinodal, isto é, caminhando juntos, dado que a Igreja somos todos e cada um deve contribuir com os seus carismas e a sua situação. "Ao mundo nunca aproveitou nem aproveitará a ruptura entre gerações." Só com os contributos intergeracionais se poderá construir um mundo novo e uma Igreja aberta. Lá diz o ditado: "Se o jovem soubesse e o velho pudesse, não haveria coisa que não se fizesse."

O Papa apela aos jovens para que não esqueçam as raízes: "É fácil 'sumir-se no ar' quando não há onde agarrar-se, onde apoiar-se." Não devem seguir quem lhes peça que desprezem ou ignorem a história. Quem faz isso "precisa que estejais vazios, desenraizados, desconfiados de tudo, para que só confieis nas suas promessas e vos submetais aos seus planos. Assim funcionam as ideologias de diversas cores". E previne-os contra outro perigo: a adoração da juventude e do corpo. "Os manipuladores utilizam outro recurso: uma adoração da juventude, como se tudo o que não seja jovem se convertesse numa coisa detestável e caduca. O corpo jovem torna-se o símbolo deste novo culto, e, então, tudo o que tiver que ver com esse corpo é idolatrado e desejado sem limites, e o que não for jovem é olhado com desprezo. Queridos jovens, não aceiteis que usem a vossa juventude para fomentar uma vida superficial, que confunde a beleza com a aparência. Há formosura para lá da aparência ou da estética da moda, em cada homem e em cada mulher que vivem com amor a sua vocação pessoal."

Por outro lado, Francisco desafia a hierarquia, bispos e padres, para que dêem protagonismo às novas gerações. "A pastoral juvenil precisa de adquirir outra flexibilidade e de convocar os jovens para eventos, para acontecimentos que de vez em quando lhes ofereçam um lugar onde não só recebam formação, mas que também lhes permitam partilhar a vida, celebrar, cantar, escutar testemunhos e experimentar o encontro comunitário com Deus." Para se renovar, a Igreja precisa de estar atenta aos jovens, aos seus anseios, aos seus traumas, aos seus problemas, às suas dúvidas, aos seus erros, à sua história, à sua busca de identidade, às suas experiências de pecado e todas as suas dificuldades.

Não se pode esquecer que, "para muitos jovens, Deus, a religião e a Igreja são palavras vazias, no entanto, eles são sensíveis à figura de Jesus, quando esta é apresentada de modo atraente e eficaz". O Sínodo reconheceu que "um número consistente de jovens não pede nada à Igreja porque não a consideram significativa para a sua existência. Alguns, inclusive, pedem expressamente que os deixem em paz, visto que sentem a presença da Igreja incómoda e até irritante". Isto implica que a Igreja tem de reconhecer humildemente que muitas coisas têm de mudar e, para isso, "também precisa de ter em conta a visão e também as críticas dos jovens". Eles "reclamam uma Igreja que escute mais, que não passe a vida a condenar o mundo. Não querem ver uma Igreja calada e tímida nem tão-pouco que esteja sempre em guerra por dois ou três temas que são para ela uma obsessão".

A Igreja não pode pôr-se na defensiva, porque "uma Igreja na defensiva, que perde a humildade, que deixa de escutar, que não permite que a ponham em questão, perde a juventude e converte-se num museu". E Francisco dá o exemplo da relação da Igreja com as mulheres: ela precisa de prestar atenção às "legítimas reivindicações das mulheres que pedem mais justiça e igualdade. Pode recordar a história e reconhecer uma longa trama de autoritarismo por parte dos homens, de sujeição, de diversas formas de escravidão, de abuso e de violência machistas. Nesta linha, o Sínodo quis renovar o compromisso da Igreja contra todo o tipo de discriminação e violência sexual. É essa a reacção de uma Igreja que se mantém jovem e que se deixa colocar em questão e impulsionar pela sensibilidade dos jovens".

O Papa não se cansa de clamar: jovens, "vós sois o agora de Deus. Não podemos dizer apenas que os jovens são o futuro do mundo. São o presente, estão a enriquecê-lo com o seu contributo". Deus é "o autor da juventude e actua em cada jovem. A juventude é um tempo abençoado para o jovem e uma bênção para a Igreja e para o mundo. E uma alegria, um cântico de esperança e uma bem-aventurança". Apreciar a juventude implica vê-la como um tempo valioso em si mesmo e não como mera etapa de passagem para a idade adulta. De qualquer modo, "neste período da vida, os jovens são chamados a projectar-se para a frente sem cortarem as suas raízes, a construir autonomia, mas não na solidão". Neste sentido, o Papa adverte-os contra as ofertas desumanizantes: "São muitos os jovens ideologizados, utilizados e aproveitados como carne para canhão ou como força de choque para destruir, amedrontar ou ridicularizar outros. E o pior é que muitos se convertem em seres individualistas, inimigos e desconfiados de todos, que assim se tornam presa fácil de ofertas desumanas e planos destrutivos elaborados por grupos políticos e por poderes económicos." Daí o apelo: "Não deixes que te roubem a esperança e a alegria, que te narcotizem para utilizar-te como escravo dos seus interesses. Atreve-te a ser mais, porque o teu ser é mais importante do que qualquer outra coisa. Não te serve ter ou aparecer. Podes chegar a ser aquilo que Deus, teu Criador, sabe que tu és. Assim não serás fotocópia. Serás plenamente tu próprio."

Francisco reconhece as dificuldades dos jovens no mundo actual: "Ainda mais numerosos são os jovens que padecem formas de marginalização e exclusão social por razões religiosas, étnicas ou económicas. Recordamos a difícil situação de adolescentes e jovens que engravidam e a praga do aborto, bem como a difusão do VIH, as várias formas de dependência (drogas, jogos de azar, pornografia, etc.) e a situação das crianças e jovens da rua, que não têm casa, nem família, nem recursos económicos." Perante estas situações, convida cada um a interrogar-se: "Eu tenho aprendido a chorar?" Porque não podemos ser "uma Igreja que não chora frente a estes dramas dos seus filhos".

Consciente de que "a moral sexual costuma ser, muitas vezes, causa de incompreensão e afastamento da Igreja, visto que é percebida como um espaço de julgamento e de condenação", o Papa não podia deixar de reflectir sobre a problemática do corpo e da sexualidade, que têm "uma importância fundamental para a vida dos jovens e no caminho de crescimento da sua identidade". Chama a atenção para que, "num mundo que enfatiza em excesso a sexualidade, é difícil manter uma boa relação com o próprio corpo e viver serenamente as relações afectivas". "Ao mesmo tempo, os jovens exprimem um desejo explícito de se confrontarem sobre as questões relativas à diferença entre identidade masculina e feminina, à reciprocidade entre homens e mulheres e à homossexualidade." O Papa convida a superar "tabus" sobre o sexo e a sexualidade, que apresenta como "um dom de Deus", com o propósito de "amar-se e gerar vida". E, neste contexto, reflectindo sobre os avanços das ciências e das NBIC (nanotecnologias, biotecnologias, inteligência artificial, ciências cognitivas), lembra as novas interrogações antropológicas e éticas que se levantam e como facilmente se pode ser instrumentalizado por quem detém o poder tecnológico.

Outro desafio é o da digitalização. "A web e as redes sociais criaram um modo novo de comunicação e de vinculação, e são uma praça na qual os jovens passam muito tempo e facilmente se encontram, embora o acesso não seja igual para todos, de modo particular em certas regiões do mundo." O Papa não pode deixar de reconhecer as vantagens da digitalização, mas não deixa de advertir que se trata de uma realidade atravessada por ingentes interesses económicos e por limitações e carências, como, por exemplo, o perigo da perda de sentido crítico. "Não é saudável confundir a comunicação com o mero contacto virtual. Com efeito, o ambiente digital também é um território de solidão, manipulação, exploração e violência, até ao extremo da Dark Web." A imersão no mundo virtual pode tornar-se "uma espécie de migração digital, isto é, um afastamento da família, dos valores culturais e religiosos, que leva muita gente a um mundo de solidão e de autoinvenção, até ao ponto de experimentarem uma falta de raízes, mesmo permanecendo fisicamente no mesmo lugar". Trata-se de um novo desafio: "Interagir com um mundo real e virtual, em que os jovens penetram sozinhos, como num continente global desconhecido. Os jovens de hoje são os primeiros a fazer esta síntese entre a pessoa, o próprio de cada cultura e o global. Isso requer que consigam passar do contacto virtual a uma boa e sã comunicação."

No capítulo quarto, o Papa expõe "três grandes verdades", que todos permanentemente precisamos de escutar. A primeira: "Deus ama-te. Independentemente do que te aconteça na vida, não duvides disso, és sempre infinitamente amado." A segunda: "Cristo entregou-se, por amor, até ao fim para salvar-te." A terceira: "Mataram-no, mas Ele venceu. Ele está vivo. O mal não tem a última palavra." "Cristo vive" é o título da exortação.

Os dois últimos capítulos, oitavo e nono, são dedicados à vocação e ao discernimento. "Somos chamados pelo Senhor a participar na sua obra criadora, prestando o nosso contributo para o bem comum a partir das capacidades que recebemos." Na procura da sua vocação, os jovens não deverão pensar apenas no dinheiro. E lembra o livro bíblico de Ben Sira: "Não há pior do que aquele que é avaro para si mesmo."

Conclui, com um desejo: "Queridos jovens, ficarei feliz vendo-vos correr mais rápido do que os lentos e temerosos. A Igreja precisa do vosso entusiasmo, das vossas intuições, da vossa fé. Fazeis-nos falta. E, quando chegardes aonde nós ainda não chegámos, tende paciência para esperar por nós."
in DN 28.04.2019
https://www.dn.pt/edicao-do-dia/28-abr-2019/interior/a-igreja-e-uma-canoa-nao-e-um-museu-10837615.html?target=conteudo_fechado

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QUE COISA SÃO AS NUVENS
JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA
AJUDA-ME A VER
AJUDA-ME A VER! PENSO QUE É ISSO QUE PEDIMOS AOS LIVROS, À CULTURA, ÀS HISTÓRIAS QUE OUVIMOS, AOS AMIGOS... E A DEUS

Lembro-me de que, há uns anos, num encontro de narratologia, ouvi um conferencista explicar que a forma simples de sensibilizar o leitor, para o complexo jogo de referentes que uma narrativa põe em ato, era pedir-lhe que contasse, por palavras dele, um relato. Aí, o que parecia uma teoria intrincada (com o seu debate sobre pontos de vista, estatuto do narrador, trama, personagens...), tornava-se acessível de um modo muito direto. Este professor ensinava Novo Testamento numa grande universidade norte-americana, mas mantinha uma presença frequente em faculdades de países africanos. E citava o que acontecia, por exemplo, quando estudantes das duas geografias recontavam um episódio clássico do evangelho de Lucas: a parábola do filho pródigo. Na identificação do motivo pelo qual o filho pródigo se vê precipitado da confortável situação de herdeiro à aspereza de um sem-teto, os norte-americanos apontavam o facto de haver dissipado o seu capital de maneira descontrolada, enquanto que os africanos colocavam em primeiro lugar a devastadora fome que se abateu sobre a região. Tinham ambos sustentação textual, pois o evangelho cita os dois motivos. O que é curioso, porém, é compreender o significado daquilo que nos faz nem nos apercebermos de umas coisas e ver imediatamente outras.

O que é curioso é compreender o significado daquilo que nos faz nem nos apercebermos de umas coisas e ver imediatamente outras

Tenho uma história engraçada com o poeta brasileiro Eucanaã Ferraz. Encontrámo-nos durante uns instantes em Lisboa, não foi mais do que isso. Eucanaã é um dos grandes criadores a escrever na nossa língua. Nesse encontro, breve, denso e comovido, a conversa levou-nos não sei como a Clarice Lispector. E ele contou-me esta história, que teria lido num dos seus livros. A escritora lamentava-se de que nunca lhe aconteciam milagres. Quando ouvia, a outras pessoas, a narração de milagres na primeira pessoa, ficava cheia de esperança, mas também de revolta, pois se perguntava: “E porque não a mim?”. Milagres nunca lhe aconteceram, a dizer a verdade, exceto um. Certo dia, caminhava pela rua, e sentiu-se escolhida por uma folha. Isso apenas: uma folha que, entre os milhões de possibilidades, veio lentamente rodopiando e bateu, ao de leve, nas suas pestanas. Naquele momento, Clarice achou que Deus possuía uma infinita e consoladora delicadeza. Semanas depois, dei por mim a procurar o volume de crónicas de Clarice em busca desse relato. Não foi difícil chegar a ele. Chama-se “O milagre das folhas”. Nesse texto, a autora conta, de facto, que nunca lhe aconteceu nenhum outro milagre, mas o das folhas se repete tanto que ela passou a considerar-se, “a escolhida das folhas”. E que, quando anda pela cidade, sabe que novas folhas virão sempre coincidir com ela. A folha que se embateu contra os seus cílios foi simplesmente mais uma. Contudo, o relato de Eucanaã não deixava de ser agudo e completamente verdadeiro em relação ao original de Clarice. E a isso, acrescentava ainda um prazer que os amigos sabem partilhar: o do reencontro. Talvez ele, de antemão, soubesse que eu iria no encalço daquele texto e que, o confronto com o que me contara, nos permitiria prosseguir, mesmo à distância, um diálogo que não podia ter lugar ali.
Um dos textos de que mais gosto do escritor Eduardo Galeano está em “O Livro dos Abraços”. É a história de um miúdo, Diego, que viaja para o sul com o pai para olhar o mar pela primeira vez. Quando chegam à praia, depois de muito caminhar, o mar está diante dos seus olhos. Era uma azul e contínua imensidão sem palavras. E o filho, colado ao pai, pediu-lhe baixinho: “— Ajuda-me a ver!” Penso que é isso que pedimos aos livros, à cultura, às histórias que ouvimos, aos amigos... e a Deus.
in Semanário Expresso, 27.07.2019 p151
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Upcoming trip to Eastern Europe may see pope 'walking on eggs' with Orthodox
Joshua J. McElwee
Pope Francis' most recent foreign trips have had a decidedly interreligious focus.

In February, he became the first pontiff to travel to the United Arab Emirates, where he made a joint declaration against religious violence with one of Sunni Islam's highest authorities. In March, he went to Morocco, where he met with King Mohammed VI, whose family claim authority and descent from the Muslim prophet himself.

Now, the pope is preparing to embark on a trip to southeastern Europe that will shift attention dramatically — from interreligious matters to the Catholic Church's ecumenical relationships with Eastern Orthodox churches.

Experts who have taken part in the church's official dialogues with the Orthodox say the May 5-7 visit to Bulgaria and North Macedonia could be particularly sensitive, as Francis will be facing individual, historic difficulties with the countries' separate Orthodox communities.

"There's plenty of minefields," said Paulist Fr. Ronald Roberson, an associate director of the U.S. bishops' ecumenical and interreligious secretariat. "In some ways the pope is going to be walking on eggs."

In Bulgaria, Francis will be meeting with the only Orthodox community that has decided not to participate in the most recent meetings of the official Catholic-Orthodox dialogue. In North Macedonia, he will encounter a community that the other Orthodox churches consider to be in a state of schism.

Given the individual sensitives, Roberson suggested the pope might be looking during the trip to focus more on encouraging a kind of personal ecumenical diplomacy than to raise any particular issues.

"I would imagine he would lean towards playing it safe," said the priest.

Msgr. Paul McPartlan, a member of the International Commission for Theological Dialogue between Catholics and Orthodox since 2005, expressed similar sentiments.

"These personal contacts are extremely important just for establishing connections, establishing bonds of respect and healthy interaction," said McPartlan, an ecumenist and theologian at The Catholic University of America. "It is a good thing simply that this visit is taking place."

Francis will be visiting Bulgaria May 5-6 before heading on to western neighbor North Macedonia for a day visit on his way back to Rome May 7. It is the second papal trip to Bulgaria, following John Paul II's visit in 2002, and the first to North Macedonia.

The Bulgarian Orthodox, who count some six million members and are led by Patriarch Neophyte, make up one of 15 Orthodox communities that are considered by the Patriarchate of Constantinople as autocephalous, or not dependent on any other Orthodox community for leadership.

Besides not participating in the most recent Orthodox-Catholic dialogue, held in September 2016, the Bulgarian Orthodox also did not take part in that year's Pan-Orthodox Council, the first such event in 12 centuries.

The Macedonian Orthodox, who count some two million members and are led by Primate Stephen, have been formally separated from other Orthodox communities since they unilaterally declared themselves autocephalous in 1967. No other Orthodox church has recognized the declaration.

In a scheduling choice likely settled upon so as not to upset other Orthodox leaders, Francis will not be greeting Primate Stephen privately while he is in North Macedonia.

The pope is expected to see the Orthodox leader instead twice in group settings: at an ecumenical and interreligious meeting with young people and during a visit to a memorial house to Mother Teresa, who was born in what was then a part of the Ottoman Empire.

In Bulgaria, Francis will visit Patriarch Neophyte on the first day of the trip, and the two are scheduled to pray in silence together at the Patriarchal Cathedral of St. Alexander Nevsky.

Although the joint prayer may seem like a given for a meeting of two Christian leaders, it appears to represent a development on the part of the Bulgarian Orthodox, who have sometimes expressed skepticism about praying with non-Orthodox.

When John Paul II visited then-Patriarch Maxim in 2002, the Vatican described Maxim praying "in the presence" of the pope.

McPartlan said the Bulgarians are "very cautious" on the question of joint prayer with Catholics. Roberson said the moment of prayer will be "something to watch."

Given the Bulgarians' non-participation in Catholic-Orthodox dialogue, McPartlan said their choice to welcome Francis for the visit was notable.

"Obviously, they have various misgivings and reservations," said the monsignor. "In that light, I do think it's significant that nevertheless … they are welcoming Pope Francis to this visit [and] he is going, and I'm sure will be wanting to establish good relations, and to try and lay the groundwork for a fuller dialogue."

'Not on people's radar'
The pope's schedule in Bulgaria and North Macedonia follows a usual format: he will meet with their respective prime ministers and presidents, give speeches to the political authorities, and host meetings with priests and religious.

The pontiff will also visit a refugee camp in Bulgaria, which has hosted tens of thousands of mainly Middle Eastern refugees fleeing violence who have come into the country through neighboring Turkey.

Francis is coming to North Macedonia at a delicate time. The first round of its quinquennial presidential election was held April 21. A run-off is being held May 5, two days before the pope's arrival.

The nation also formally changed its name in February, following a decadeslong dispute with Greece, which protested the previous name of Macedonia, citing the Greek region also referred to by that identifier.

While a September 2018 referendum in what is now North Macedonia approved the change, it has been contentious, with many in the country expressing anger at what they call bullying by Greece in pursuing the matter.

Greece had blocked Macedonia's efforts to join both the European Union and NATO over the naming issue.

Rozita Dimova, a North Macedonian anthropologist who teaches at Belgium's University of Ghent, said people in the country have been focused on their own political issues and are not paying much attention to the pope's coming visit.

"Really, there is nothing about it," said Dimova, whose research has focused on life on the border between North Macedonia and Greece.

The anthropologist said that North Macedonians have seen a large number of visits of Western leaders in recent months because of the process ending the name dispute, and have become indifferent to such trips.

"I think it's not on people's radar," she said. "There is a sense of enough, enough of 'you guys' coming over here to fix us and to tell us how we need to behave."

"I think it will be just a matter of curiosity," Dimova said of the pope's visit.

Victor Friedman, an expert in Slavic languages and a pioneer in the field of Macedonian studies who has spent extensive time in the country, said Francis' visit may at least raise appreciation for the role North Macedonia plays in the international system.

"The pope's coming to visit is a recognition that Macedonia is a country on the map," said Friedman, a professor at the University of Chicago.

[Joshua J. McElwee is NCR Vatican correspondent. His email address is jmcelwee@ncronline.org. Follow him on Twitter: @joshjmac.]
https://www.ncronline.org/news/vatican/upcoming-trip-eastern-europe-may-see-pope-walking-eggs-orthodox


21 abril 2019


O NSI-Pt deseja a tod@s uma
Santa e Feliz Páscoa

Entre a Sexta-Feira Santa e a Páscoa: Sábado
Pe. Anselmo Borges
Crentes ou não crentes - quem o disse foi George Steiner - é em Sábado que vivemos. Que é que isto quer dizer? Todos, de um modo ou outro, em nós mesmos e no mundo, constatamos e vivemos a Sexta-Feira Santa do sofrimento, do horror, da violência, do silêncio e da noite, e todos, de um modo ou outro, de forma mais explícita ou menos explícita, mais consciente ou menos, é pelo Domingo, o Domingo da Páscoa, que suspiramos e esperamos, a Páscoa da salvação.

O que nestes dias os cristãos celebram é este Sábado, que pertence ao núcleo da existência cristã, como disse São Paulo, na Primeira Carta aos Coríntios: "Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação e vã também a vossa fé. Se nós temos esperança em Cristo apenas para esta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens. Se os mortos não ressuscitam, comamos e bebamos, porque amanhã morreremos". Evidentemente, a ressurreição implica por si mesma uma meditação sobre a morte e o sentido último da existência. Uma meditação sobre o Sábado, no qual vivemos.

1. Na história gigantesca do universo, com 13.700 milhões de anos, o sinal distintivo de que há Homem, não já simplesmente algo, mas alguém, são os rituais funerários. A partir daí, já não estamos em presença de um animal qualquer, mas do ser humano, que sabe que sabe, que tem consciência de si, consciência de que é mortal, e que, nem que seja de modo confuso, espera para lá da morte. A consciência da morte e a esperança constituem, portanto, na História do mundo, uma novidade essencial e radical.

Perante a morte e a mortalidade, surge a interrogação fundamental, que está na base das artes, das filosofias, das religiões: o que é o Homem? Sabemos que somos mortais, mas ninguém sabe o que é morrer, ninguém sabe o que é estar morto, nem sequer para o próprio morto. Face à morte, a linguagem falha. Assim, dizemos, perante o cadáver do pai ou da mãe, de um amigo: ele/ela está aqui morto/morta. Ora, o que falta é precisamente o pai, a mãe, o amigo, pois o que ali está não passa de restos mortais e lixo biológico. Ou dizemos que os levamos à sua última morada. Ora, quem se atreveria a enterrar ou a cremar o pai, a mãe, um amigo? Também dizemos que os vamos visitar ao cemitério. Ora, nos cemitérios, com exceção dos vivos que lá vão, não há ninguém. O Evangelho é cru: nos cemitérios, só há ossos e podridão. Então, o que há realmente nos cemitérios, para serem considerados lugares sagrados, de tal modo que a violação de uma sepultura constitui, em todas as culturas, uma profanação e um crime nefando? O que há nos cemitérios não é senão essa pergunta radical: O que e o Homem?, o que é ser Homem?

Mas hoje a morte é tabu. Disso pura e simplesmente não se fala. É de mau tom chamar o tema à conversa. Se, tradicionalmente, tabu era o sexo, atualmente, a morte é que é o tabu. Mente-se às crianças, evita-se o luto, pois a grande mentira-ignorância das sociedades contemporâneas, desenvolvidas, técnicas, é a morte. Pela primeira vez na história da Humanidade, temos uma sociedade que se funda no tabu da morte, com todas as consequências. De facto, não se pense que a morte já não é problema. Pelo contrário, numa sociedade que se julga omnipotente e é poderosíssima nos meios, mas sem finalidades humanas, de tal modo a morte é problema, o único problema para o qual não tem solução que a solução é precisamente ignorá-lo, viver como se ele não existisse.

As razões do tabu são múltiplas. Fundamentalmente, o que se passou é que a razão esqueceu as suas múltiplas dimensões, ficando reduzida à razão instrumental, à eficiência, ao cálculo, à técnica, e o que importa é o sucesso imediato, o êxito, a juventude, o prazer, a eficácia, o consumismo sem fim. Por outro lado, vai-se impondo a desafeição face à religião, a fé vai rareando. Ora, perante a morte, o Homem faz a experiência de que não é omnipotente, de que não pertence a si mesmo, mas ao Mistério. Assim, perante a erosão da fé, cada vez se acredita menos na vida eterna. Vivemos, pois, numa sociedade sem Eternidade. Ora, sem eternidade, desfaz-se o tecido do tempo, que já não faz texto, pois só ficam instantes que se devoram, na imediatidade do gozo do momento, que se segue a outro momento, na voragem da repetição, do tédio e do sem sentido.

A crise do nosso tempo é uma crise global: financeira, económica, social, política, moral, religiosa. Mas é fundamentalmente uma crise da morte. Esta sociedade, para ser o que é, teve de fazer da morte tabu, esquecê-la.

Para reencontrar a sabedoria, impõe-se voltar ao pensamento sadio da morte. Não para envenenar a vida, mas, pelo contrário, para viver humanamente e em autenticidade. O pensamento sadio da morte dá-nos a consciência do limite, obrigando, portanto, a viver intensamente cada momento como único. A existência e as suas decisões não admitem adiamentos. Por outro lado, perante a morte, somos remetidos para a liberdade e a ética e a urgência da existência autêntica, pois o confronto com a morte leva à distinção entre o bem e o mal, o justo e o injusto, o que verdadeiramente vale e o que não vale. A consciência da mortalidade desperta para a compaixão e a consciência da fraternidade humana: somos mortais; logo, somos irmãos. Quem quiser saber o que vale um homem e o que orienta verdadeiramente a sua vida pergunte-lhe o que faria, se soubesse que ia morrer no dia seguinte.

2. Como disse Ernst Bloch, filósofo marxista, ao mesmo tempo ateu e religioso - ele que esperava que a última música que ouvisse não fosse a das pazadas de terra na sepultura -, "o cristianismo, na concorrência com outros profetas da imortalidade e da sobrevivência, venceu em grande parte graças à proclamação de Cristo: "Eu sou a Ressurreição e a Vida". Não propriamente graças ao Sermão da Montanha. No século I depois do acontecimento do Gólgota, a ressurreição foi referida ao Gólgota de uma forma inteiramente pessoal, de tal modo que pelo baptismo na morte de Cristo se experiencia a ressurreição com Ele. Imperava então um desespero apaixonado, que hoje nos parece incompreensível e representa um acentuado contraste com a nossa indiferença. Mas nada impede que dentro de cinquenta anos (porque não dentro de cinco?) volte essa neurose ou psicose de angústia da morte, de tipo metafísico, com a pergunta radical: para quê o esforço da nossa existência, se morremos completamente, vamos para a cova e, em última instância, não nos resta nada?"

Outro grande filósofo alemão, J. G. Fichte, escreveu que o ser humano não deixará facilmente de resistir a uma vida que consistisse em "eu comer e beber para apenas logo a seguir voltar a ter fome e sede e poder de novo comer e beber até que se abra debaixo dos meus pés o sepulcro que me devore e seja eu próprio alimento que brota do solo"; como poderei aceitar a ideia de que tudo gira à volta de "gerar seres semelhantes a mim, para que também eles comam e bebam e morram e deixem atrás de si outros seres que façam o mesmo que eu fiz? Para quê este círculo que gira sem cessar à volta de si?... Para quê este horror, que incessantemente se devora a si mesmo, para de novo poder gerar-se, gerando-se, para poder de novo devorar-se?"

Assim, para o ser humano é tão próprio saber que é mortal como esperar para lá da morte. Há aquelas perguntas infinitas: Porque há algo e não nada? Quem sou? Para onde vou? Onde estarei, quando cá já não estiver, como inquiria Tolstoi? É insuportável andar, na vida, de sentido em sentido e, no fim, afundar-se no nada. Se tudo desembocasse no nada, que valor teria a distinção entre bem e mal, honestidade e desonestidade, honradez e mentira, verdade e falsidade, justiça e injustiça, já que, no fim, tudo se afundaria no nada e tudo seria o mesmo: precisamente nada?

Há aquela pergunta infinita, que atravessa a História: quem fará justiça às vítimas inocentes? Há um clamor na História por causa da dívida para com as vítimas da injustiça e do horror. Quem pagará essa dívida? Quem pode fazer a reconciliação com tanta injustiça e sofrimento dos inocentes? Em diálogo com a Escola Crítica de Frankfurt, tão sensível às vítimas da História e à exigência de uma justiça universal cumprida, Bento XVI reconheceu que a necessidade individual da realização plena e da imortalidade do amor já é "um motivo importante para crer que o Homem está feito para a eternidade", "mas só o reconhecimento de que a injustiça da História não pode de modo nenhum ter a última palavra" convence da necessidade da ressurreição dos mortos e da vida eterna. Perante a alternativa do absurdo ou do mistério, é sensato optar, com razões, pelo Mistério que salva, entregando-se-lhe confiadamente na fé, na esperança e no amor.

A curto, a médio, a longo prazo, todos foram estando mortos. A curto, a médio, a longo prazo, todos iremos, todos irão estando mortos, e, lá no final, só há uma alternativa, porque todos caminhamos para a eternidade: a eternidade do nada ou a eternidade da vida plena em Deus.

O cristianismo mantém-se ou afunda-se pela verdade e a fé ou não no Jesus que foi crucificado e que é agora, para sempre, o Vivente em Deus. Os discípulos que, como Jesus, confessavam cada dia, na Shemoné Eshré, a fé no "Deus que ressuscita os mortos" e que tinham acreditado em Jesus como o Messias continuaram a crer nele, após a sua morte, uma morte que testemunhava o que foi o centro da sua vida e mensagem por palavras e obras até à morte: que Deus é Amor. Depois da crucifixão, reflectindo, aprofundaram a convicção avassaladora de fé de que Jesus não morreu para o nada, mas para o interior da vida de Deus, como promessa e esperança de vida plena e eterna para todos. O Deus que tudo criou por amor a partir do nada, a quem Jesus se dirigia como Abbá (Pai/Mãe), não é um Deus de mortos, mas de vivos. E disso deram testemunho até à morte, testemunho que chegou até nós.
*Padre e professor de Filosofia
in DN 21.04.2019
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20 abril 2019


P / INFO: ESVAZIAMENTO E GLÓRIA

QUE COISA SÃO AS NUVENS
JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

ESVAZIAMENTO E GLÓRIA
JESUS VIVEU ENTRE NÓS NUMA PRÁTICA CONTÍNUA DE ABAIXAMENTO, EXPRESSO NA RADICAL OBLAÇÃO DE SI
Há uma primeira palavra-chave para entender a Páscoa do ponto de vista de Cristo. Trata-se do termo grego kenosis, que conheceu uma relevante maturação na história da teologia e da espiritualidade cristãs, e que remonta diretamente a uma invulgar fórmula bíblica, reproduzida na Carta de São Paulo aos Filipenses. Ali se diz que Cristo “se esvaziou a si mesmo” (heauton ekenosenm). É verdade que Paulo utiliza o verbo em outras quatro passagens das suas cartas (1 Cor 1,17; 9,15; 2 Cor 9,3 e Rm 4,14) com matizes diversos de significação que convergem na ideia de “despojar”, “esvaziar”, “privar de força”, “reduzir a nada”, “anular”. Em todas essas passagens o verbo aparece, porém, no interior de uma cláusula de negação: o objetivo é aí o de evitar o “esvaziamento”. Mas em Filipenses 2,7 assistimos a uma clamorosa inversão: é a única vez, em toda a Sagrada Escritura, que o verbo conhece um uso reflexivo. Conta-se então que o próprio Jesus tomou a iniciativa de se esvaziar a si mesmo: “[Cristo Jesus, sendo de condição divina, não se valeu da sua igualdade com Deus], mas esvaziou-se a si mesmo assumindo uma condição de servo...”

No Evangelho de João, numa passagem que a liturgia voltará a apresentar nestes dias, encontramos uma imagem que talvez nos entreabra o sentido profundo do texto paulino. Trata-se do capítulo 13 de João, quando Jesus, no contexto da última ceia com os seus discípulos, se despoja a si mesmo, despe as suas vestes e se põe a lavar-lhes os pés. Aquele que é Mestre e Senhor torna-se servo para deixar um exemplo: “se eu, Senhor e Mestre, vos lavei os pés, vós deveis também lavar os pés uns aos outros... Como eu vos fiz, fazei vós também” (Jo 13, 14-15). De facto, a kenosis foi uma característica permanente do caminho de Jesus, a ponto de podermos dizer que ele viveu entre nós numa prática contínua de abaixamento, expresso na radical oblação de si. O modo como Jesus assumiu a condição terrena foi, até ao fim, um amoroso serviço à nossa humanidade, relegando-se a si mesmo para o último lugar, dispondo-se a uma progressiva humilhação, sendo fiel até à morte e uma morte de cruz. Esta é uma parte do seu legado.

O modo como Jesus assumiu a condição terrena foi, até ao fim, um amoroso serviço à nossa humanidade, relegando-se a si mesmo para o último lugar

Mas só compreenderemos o sentido global dessa morte se formos além da mera crónica da crucifixão, e reconhecermos que a consequência do autoesvaziamento de Cristo é a anulação do pecado. Utilizando uma linguagem que depois se tornará corrente, o apóstolo Paulo fala de uma redenção, termo do vocabulário comercial que significa uma deslocação da pertença. O homem é “recomprado”. É devolvido a uma pertença plena a Deus e a si mesmo através da destruição do mal operada pela morte de Cristo. E como é que isso é selado? Isso torna-se patente na verdade que somos chamados a acolher, a tatear e a reconhecer: que aquele Cristo crucificado é também o Cristo ressuscitado; que ele é agora o Senhor da Glória, e nos transmite o seu Espírito para tornar-nos participantes da sua vida divina. A Páscoa é, assim, na sua amplitude, mistério de esvaziamento e glória.

Quando aprofundar a sua exposição sobre a ressurreição de Cristo, São Paulo chegará na Primeira Carta aos Coríntios a uma afirmação perentória: em última análise, diz ele, acontece uma só ressurreição, a de Cristo, que se ramifica no tempo e no espaço até chegar a todos. A ressurreição de Cristo estará completa também num sentido distributivo quando, superada toda a forma de mal, e vencido o derradeiro inimigo que é a morte (15,26), toda a criação realizar plenamente o projeto de Deus e for como que impregnada da vitalidade de Cristo. Deus será então tudo em todos (15,28).
in Semanário Expresso 19.04.2019 p150


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14 abril 2019

Notícias de Domingo 14.04.2019


P / Info: Crónicas de Frei Bento Domingues, Pe. Anselmo Borges, Pe. Tolentino Mendonça e Pe. Vitor Gonçalves, Mulheres “não teriam consentido esta loucura” dos abusos sexuais na Igreja, entrevista de Natália Faria a Phyllis Zagano & Theologians concerned about newly engaged role of Benedict, pope emeritus, artigo de Joshua J. McElwee

SEMANA SANTA? QUE TENHO EU A VER COM ISSO?
Frei Bento Domingues, O.P.

O ser humano não pode ser um escravo do trabalho. Há muitas outras dimensões da vida que é preciso atender.

1. Creio que toda a gente tem muito a ver com a Semana Santa. Explico: os católicos fervorosos podem lamentar que, num país onde a maioria da população se exprime como católica (cerca de 80%), aproveite o Natal, a Páscoa, os Domingos e festas de santos para descanso, desporto, viagens, segundo as possibilidades económicas de cada um, e muito pouco para celebrar e aprofundar o conhecimento da sua própria fé.
Esses católicos só têm razão até certo ponto. Não esqueçamos que o Novo Testamento estabeleceu uma grande polémica em torno da prática judaica sacralizada do sábado. Uma das narrativas míticas da criação está organizada para que, no sétimo dia, até Deus descanse

[1]. Não podia haver táctica melhor do que esta: colocar o seu Deus como exemplo do que todos os crentes deviam cumprir. Se os textos do Novo Testamento são tão duros com essa sacralização, não era por causa de serem dias de descanso e oração. O que levou o judeu, Jesus de Nazaré, a provocar os seus concidadãos, fazendo o que estava proibido ao sábado, não era por desprezo do dia consagrado ao descanso, mas por terem transformado, numa prisão, um marco civilizacional da liberdade.
O ser humano não pode ser um escravo do trabalho. Há muitas outras dimensões da vida que é preciso atender e às quais é preciso dar oportunidades. Não esqueçamos que o projecto de Jesus surge como projecto de libertação, sobretudo dos doentes, dos pobres e das mulheres que não contavam para nada na sociedade do seu tempo.
Essa actividade de Jesus tinha, também, uma motivação teológica: o sábado não podia ser o dia de tolher a vida humana e as expressões da sua liberdade. Se era o dia de Deus, tinha de ser o melhor dia do ser humano, a festa da humanidade. Deus não podia tolerar que, em seu nome, se impedisse a alegria.
Se Jesus escolhia, sobretudo, esse dia e a Sinagoga para as curas, não era para aborrecer os judeus mais ortodoxos e ritualistas. Era para que esse dia, ao fazer bem aos seres humanos, revelasse o que era a verdadeira glória de Deus, o seu autêntico louvor.
Os fariseus insistiam em dizer que Jesus não podia ser um homem de Deus, pois não observava o sábado. O Quarto Evangelho, dito de S. João, vai ao ponto de colocar na boca do Nazareno algo de terrível, de blasfemo: o meu Pai trabalha sempre e eu também[2]. O texto acrescenta: por isto os judeus ainda mais o procuravam matar porque não só anulava o sábado, mas até se atrevia a chamar a Deus seu próprio pai, fazendo-se, assim, igual a Deus. Em S. Marcos, declara o sentido antropológico desta instituição religiosa: o sábado foi feito para o ser humano e não o ser humano para o sábado[3]. Deus é glorificado na alegria das suas criaturas.
A chamada Semana Santa é a transformação de uma semana criminosa, assassina, no testemunho maior da existência humana: Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem. Jesus, ao pedir vida para os que lhe davam a morte, ressuscitou-os na sua própria alma.
2. António Marujo[4] fez uma magnífica reportagem sobre alguns assuntos debatidos no Terra Justa – Encontro Internacional de Causas e Valores da Humanidade –, em Fafe (3-6 de Abril.2019), destacando a campanha pelo domingo livre de trabalho e pela saúde como direito humano.
A presidente do Movimento Mundial de Trabalhadores Cristãos (MMTC), Fátima Almeida, defendeu que é preciso voltar a fazer campanha pelo domingo livre, para trabalhos e serviços que não são necessários nesse dia. Não se trata de fazer isso por causa da missa, mas “pelo encontro, pela família e os amigos, para dedicar tempo à cultura, à vida para além do trabalho, como diz o Papa”.
Ao dizer isto, não é contra a missa, mas para destacar o valor humano de uma festa religiosa para religiosos e não religiosos. A verdadeira religião não abafa, pelo contrário, expande a vida e os verdadeiros valores de todos. Na interpretação cristã, é desta forma que se dá glória a Deus.
Como já dissemos, o projecto de Jesus implicava a libertação da doença, o dom da saúde para todos. Ora, neste encontro, o dia 5, tinha sido dedicado à homenagem ao Serviço Nacional de Saúde (SNS), através de dois dos seus rostos mais importantes: António Arnaut, que o criou há 40 anos e morreu em 2018, e Francisco George que, enquanto director-geral de Saúde, foi um dos seus principais responsáveis nestes 40 anos. Hoje, tudo mudou e as estatísticas colocaram Portugal entre os 12 melhores do mundo nos cuidados de saúde, mas o sistema sofre as dores do crescimento. Numa das Conversas, Francisco George destacou: “É preciso reduzir desigualdades, mas a principal desigualdade e o risco mais importante no acesso à saúde é a pobreza. Estamos muito melhor do que em 1974, mas é preciso distribuir melhor”.
3. Com a exaltação do valor humano da religião autêntica e do alcance divino dos valores verdadeiramente humanos não se está a desvalorizar as expressões simbólicas e rituais das religiões. O que se pretende é que estas não estraguem o que pretendem e devem defender. As instituições religiosas não são por causa da religião, mas por causa de certas dimensões da vida humana que o quotidiano tende a esquecer. Voltamos à sentença de Cristo: o sábado foi feito para o ser humano e não o ser humano para o sábado.
Uma das grandes tarefas das lideranças da Igreja – bispos, párocos e congregações religiosas – consiste em ajudar as pessoas a perceber o que perdem se não aprofundarem o sentido das celebrações da fé e o que ganham quando são fiéis ao seu espírito e finalidade.
Não adianta muito insistir no que está mandado ou proibido, quanto a práticas religiosas. Importa que se tornem apetecíveis pela sua beleza e sobriedade. Que falem à sensibilidade, ao coração e à inteligência. Que nos comovam.
Quanto à Semana Santa, existem vários tipos de recuperação das tradições e da qualidade das celebrações marcadas pelas exigências do Vaticano II. O turismo religioso explora tradições. A liturgia viva procura uma linguagem de beleza que mostre a urgência de nascer de novo[5]. Só podemos saber se celebramos a Páscoa, se crescer em nós a vontade de servir aqueles que precisam da nossa dedicação: sabemos que passamos da morte para a vida porque amamos os irmãos[6].

in Público 14.04.2019
https://www.publico.pt/2019/04/14/sociedade/opiniao/semana-santa-1868822


[1] Gn 2, 1-3
[2] Jo 5, 1-17
[3] Mc 2, 27-28
[4] 7Margens (jornal online), 07.Abril.2019
[5] Jo 3
[6] 1Jo 3, 14

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A Paixão do mundo

Anselmo Borges

Pascal, o matemático, um dos maiores de sempre e também um dos mais profundos cristãos de sempre, observou, nos Pensamentos: "Jesus estará em agonia até ao fim do mundo; é preciso não dormir durante esse tempo."

Sim, a Paixão de Cristo continua e é preciso estar acordado e atento. Na Paixão de Cristo estamos todos.

1. Com uma vida a anunciar, por palavras e obras, o Deus que é Amor incondicional, Pai e Mãe, cujo único interesse é a realização plena de todos os seus filhos, a alegria e a felicidade de todos, a começar pelos mais pobres, humildes, abandonados, oprimidos, o que o colocava em confronto com os poderes opressores, religiosos, económicos, políticos..., Jesus, sabendo o que o esperava, ofereceu uma ceia, a Última Ceia, dizendo: "Isto é o meu Corpo, isto é o meu Sangue, a minha vida entregue por vós." Aquele pão e aquele vinho são a sua pessoa entregue para dar testemunho da Verdade e do Amor. Quando se reunissem, deveriam fazer isso em sua memória, lembrando o que ele fez e é.

2. A religião sacrificial e ritual do Templo teve papel decisivo neste enfrentamento. Quem primeiro o condenou foi a religião oficial, cujos sacerdotes não toleravam ver os seus privilégios postos em causa: "Ide aprender o que isto quer dizer: eu não quero sacrifícios, mas justiça e misericórdia", diz Deus. Do mais indigno que há: viver de e para uma religião que humilha e oprime em nome de Deus.

3. No Getsémani, Jesus entrou em pavor e angústia, "pôs-se a rezar mais instantemente, e o suor tornou-se-lhe como grossas gotas de sangue, que caíam na terra". Deus não atendeu a sua súplica e até os discípulos mais íntimos adormeceram. "Porque dormis? Levantai-vos e orai, para que não entreis na tentação." Todos passámos ou passaremos, de um modo ou outro, por horas de dúvidas, de horror e de solidão atroz.

4. Judas era discípulo de Jesus, mas incorreu num equívoco: esperava um Messias político, que Jesus não era. Assim, não o entregou com a intenção de traí-lo e obter dinheiro. Estava era convicto de que Jesus, no confronto directo com os poderes vigentes, iria ele próprio tomar o poder, para libertar o povo. Por isso, quando viu o sucedido, foi, desesperado, entregar as moedas de prata. No meio do seu desespero, ninguém o compreendeu nem ajudou: "Isso é lá contigo", disseram os sacerdotes. E ele enforcou-se. Ninguém lhe deu a mão.
5. Com medo de que a relação com os romanos se agravasse por causa da actuação de Jesus, o sumo sacerdote Caifás dera este conselho: "Interessa que morra um só homem pelo povo." Aí está a presença de tantos inocentes que ao longo dos séculos foram vítimas da razão de Estado.

6. Pedro era um homem bom, amigo e generoso. Tinha prometido ir com Jesus fosse para onde fosse e nunca o abandonar. Mas bastou uma criada dar a entender, por causa da fala de galileu, que ele também devia ser um discípulo, para logo negar. Acobardou-se e negou o Mestre três vezes. Depois, o galo cantou e ele lembrou-se das palavras de Jesus: "Antes de o galo cantar, negar-me-ás três vezes." "E, vindo para fora, chorou amargamente." Até onde chega a nossa amizade e a nossa cobardia? São Pedro foi o primeiro Papa, mas ainda hoje a torre das igrejas católicas é encimada por um galo, a lembrar como a Igreja, assente na fé de Pedro, está sempre ameaçada por perigos sem conta e traições.

7. O conselho dos anciãos do povo, sumos sacerdotes e escribas julgaram e condenaram Jesus, mas não tinham poder para executá-lo. Entregaram-no, portanto, a Pilatos, representante do Império. Ele ter-se-á apercebido da inocência de Jesus, mas também teve medo de perder o poder, pois o povo clamava e podiam acusá-lo ao imperador. Então, lavou as mãos e mandou que Jesus fosse crucificado. Pilatos: outra vítima da cobardia. E sempre por causa do poder. O seu nome é dos nomes mais pronunciados ao longo da história, por causa do Credo: "Crucificado sob Pôncio Pilatos." Mas ainda hoje, para referir alguém que está num lugar que não é o seu, se diz: "Está ali como Pilatos no Credo."

8. Ao tomar conhecimento de que Jesus era galileu, Pilatos remeteu-o para Herodes, que naqueles dias também se encontrava em Jerusalém. Jesus, tratado com desprezo, não respondeu a nenhuma das suas perguntas. Nesse dia, "Herodes e Pilatos ficaram amigos, pois eram inimigos um do outro." Em política, ou sempre que se trata de poder, seja ele qual for, é o que mais se tem visto: interesses comuns, políticos, económicos, de geoestratégia, tanto podem levar ao corte de relações como à amizade. Evidentemente, amizade hipócrita, interesseira.

9. As multidões não são fiáveis, são volúveis, com facilidade se submetem à manipulação. No julgamento de Jesus, a multidão gritava: "Crucifica-o, crucifica-o." Os mesmos que no Domingo de Ramos o tinham aclamado triunfalmente: "Hossana, hossana ao filho de David!"

10. Um tal Simão de Cirene foi obrigado a carregar com a cruz de Jesus. O seu nome está associado a tantos cireneus que vamos encontrando na vida. No meio da dor, da incompreensão, da cruz, pode haver um cireneu que chega e apoia. Talvez forçado, mas apoia.

11. Os soldados riam-se, troçavam, fizeram chacota. Afinal, eles próprios não tinham uma vida feliz. Já alguém se lembrou de perguntar a um terrorista se alguma vez se sentiu amado?

12. Só as mulheres não fugiram, mantendo-se sem medo junto à cruz. Talvez percebam mais da vida e das suas dores e também amem mais.

13. Mesmo no final da existência e no supremo sofrimento, os comportamentos das pessoas não são necessariamente iguais. Com Jesus, foram crucificados dois malfeitores, talvez dois terroristas. Um continuou a blasfemar enquanto o outro reflectiu e pediu a Jesus que se lembrasse dele no seu Reino. O centurião deu glória a Deus: "Verdadeiramente este Jesus era um justo."

14. Quem preside no Calvário, no meio do abandono total, é Jesus, que perdoou a quem o matava e que gritou, do alto da cruz, perguntando, aquela oração que atravessa os séculos: "Meu Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste?" Deus não respondeu, mas Jesus continuou a confiar: "Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito."

15. Jesus morreu crucificado, a morte que os romanos davam aos rebeldes e aos escravos. Aparentemente, foi o fim. O enigma histórico do cristianismo é que, pouco tempo depois, os discípulos voltaram a reunir-se e foram anunciar ao mundo que aquele Jesus crucificado é realmente o Messias, o Salvador. Fizeram a experiência avassaladora de fé, a começar por Maria Madalena, de que esse Jesus crucificado está vivo em Deus para sempre, como desafio e esperança para todos, e acreditaram porque Deus é Amor, e deram a vida por essa fé, que chegou até nós. Mas, na expressão de George Steiner, é em Sábado que vivemos: entre o horror da Sexta-Feira Santa e a esperança do Domingo da Páscoa da ressurreição.

A fé é um combate, como dá testemunho também o teólogo rebelde Hans Küng, a aproximar-se do seu próprio fim. Confessou recentemente que uma das suas irmãs lhe perguntou com toda a seriedade: "Acreditas realmente na vida depois da morte?" E ele: "Sim, respondi com convicção. Não porque tenha demonstrado racionalmente essa vida depois da morte, mas porque mantive a confiança racional em Deus e porque na confiança no Deus eterno também posso confiar na minha própria vida eterna. Devo ou não ter esperança em algo que seja a ultimidade de tudo? Uma vida eterna, um descanso eterno, uma felicidade eterna? Isso é problema da confiança, mas de modo nenhum de uma maneira irracional, mas de uma confiança responsável. É irracional a confiança em Deus? Não. A mim parece-me a coisa mais racional de tudo quanto o ser humano pode ser capaz. O que me parece absurdo é pensar que o ser humano morre para o nada. A passagem à morte e a própria morte são apenas estações a que se segue um novo futuro. A vida é mais forte do que a morte e o ser humano morre entrando na Realidade primeira e última, inconcebível e inabarcável, que não é o nada, mas sim a Realidade mais real. Vita mutatur non tollitur: a vida transforma-se, não acaba. Eu defendo uma fé cristã em Deus e na vida eterna. Sem Deus, a fé na vida eterna não teria razões, careceria de fundamento. E vice-versa: a fé em Deus sem fé na vida eterna careceria de consequências, não teria um objectivo."
in DN 14.04.2019
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QUE COISA SÃO AS NUVENS
JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA
SALVOS PELA FRAQUEZA
OS CRISTÃOS ACREDITAM NUM MESSIAS CRUCIFICADO, NUM SALVADOR QUE SALVA NÃO ATRAVÉS DA FORÇA, MAS DA IMPOTÊNCIA
Entrar numa igreja em dia de sexta-feira santa é uma experiência que só nos pode deixar atónitos. Olhamos para o tabernáculo e está aberto e vazio, como se tivesse sido espoliado. O altar não tem toalha nem adornos: apenas a pedra nua. Se procurarmos uma cruz, não a encontramos: foi retirada ou oculta ao olhar com um véu. Estamos ali como se estivéssemos num qualquer lugar perdido, rebuscando entre silêncio e escombros. Encontramo-nos numa situação paralela àquela descrita no Evangelho de João, quando os mensageiros vestidos de branco perguntam a Madalena: “Mulher, porque choras?” E ela responde: “Levaram o meu Senhor e não sei onde o puseram” (Jo 20:13). É verdade que demasiadas vezes o cristianismo (pelo menos, o nosso) corre o risco do excesso: demasiadas palavras, amontoação de símbolos e de ritualismos... Em dia de sexta-feira santa é o contrário: ocorre uma dramática redução. O espaço religioso esvazia-se até ao osso; torna-se simplesmente anónimo; nada o distingue de qualquer outro lugar desolado da terra. A liturgia, que nessa ocasião se celebra, principia em estrito silêncio e quando os presbíteros chegarem à zona do altar vão atirar-se por terra, longamente jazentes, como que inanimados, mimetizando com o próprio corpo o abandono que toda a comunidade é chamada a experimentar. Que espesso enigma é este? Onde nos conduz este tatear cambaleante, esta celebração assim desprovida, esta radical privação? A única resposta é esta: conduz-nos ao âmago ardente dos mistérios cristãos que, na verdade, são puro escândalo, aturdimento e loucura, pois os cristãos acreditam num Messias crucificado, num Salvador que salva não através da força, mas da impotência. Isso que São Paulo explicitou na Primeira Carta aos Coríntios: “Nós pregamos a Cristo crucificado, que é escândalo... e loucura” (1 Cor 1:22).

Em dia de Sexta-feira santa (...) o espaço religioso esvazia-se até ao osso; nada o distingue de qualquer outro lugar desolado da terra

Um dos mais importantes teólogos do século XX, o pastor-mártir Dietrich Bonhoeffer, rebelava-se contra o recurso que, na prática, os crentes fazem a um deus ex machina, a um Deus “tapa-buracos”, que se assemelha a uma solução mágica para todos os dilemas humanos. De facto, o cristianismo opera uma corajosa inversão de paradigma: enquanto que a religiosidade natural leva a que o homem procure o Deus poderoso como auxílio para a sua vulnerabilidade, o cristianismo reenvia continuamente o homem à impotência e ao sofrimento de Deus. Segundo Bonhoeffer, “é absolutamente evidente que Cristo não nos socorre em razão da sua omnipotência, mas em razão da sua fraqueza”, pois “Deus se deixa expulsar do mundo no alto da cruz; Deus revela-se aí impotente e frágil, e só dessa maneira está a nosso lado e nos ajuda”. Neste caso, o que é a fé? Para Dietrich Bonhoeffer, a fé é tomar parte no sofrimento de Deus no mundo, abraçando e cuidando de cada pessoa que sofre, responsabilizando-se solidariamente com esta história, fincando nela os dois pés. Se vivermos agora a difícil história humana, com as suas emergências e apelos, apenas com um pé colocado no chão, teremos depois também apenas um pé colocado no paraíso.
Outra mártir do século XX, a escritora Etty Hillesum, abre-nos para um intenso desafio existencial quando diz: “Eu compreendi que tenho de ajudar Deus.” No diário que redigiu no campo de concentração, deixou escritas estas palavras: “São tempos temerosos, meu Deus. Esta noite, pela primeira vez, passei-a deitada no escuro de olhos abertos e a arder, e muitas imagens do sofrimento humano desfilavam perante mim. Mas torna-se-me cada vez mais claro o seguinte: que tu não nos podes ajudar, mas nós é que temos de ajudar-te, e, ajudando-te, ajudamo-nos a nós mesmos.”
in Semanário Expresso 13.04.2019 p150

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À PROCURA DA PALAVRA
P. Vítor Gonçalves
Domingo de Ramos Ano C
«Bendito o Rei que vem em nome do Senhor.
Paz no Céu e glória nas alturas!»
Lc 19, 38

O Rei diferente
Falar de “rei” e de “reino” provoca um incómodo “monárquico” ao recordar lutas de poder e guerras, domínio e exploração, “famílias” e descendências, classes privilegiadas e desfavorecidas, esplendor de uns e miséria de muitos. São certamente redutoras estas ideias e o mundo desenvolvido e democrático em que vivemos já as ultrapassou! É também desse imaginário que vive a série “A Guerra dos Tronos” que entra na sua última série por estes dias, aguardando-se a revelação de quem se irá sentar no “trono de ferro”!
O Reino de Deus que Jesus anunciou e mostrou estar já presente no mundo com a sua vinda, é essencialmente outro. Correndo o risco de utilizar categorias já gastas pelas “realezas” humanas, Jesus desmontou as ideias habituais de “realeza”. Ele é o “rei diferente”, que o profeta Zacarias (9, 9-10) anunciou: o rei pobre, pacífico e universal. É o rei que vem até nós, em vez de esperar que todos venham até ele.
Ele é o pobre, rei dos pobres, que entra em Jerusalém sentado num jumento que não lhe pertence. Não vem tomar o poder, nem encabeçar uma revolução. Aceita as aclamações da multidão, das crianças e dos discípulos pois conhece o seu desejo de esperança, a sua fome e sede de justiça. Não traz riquezas para distribuir nem promessas ilusórias de paraísos na terra. Ele é o rei dos crentes e humildes das bem-aventuranças, que não vai fazer “em vez de” mas convoca todos à conversão, à mudança de vida, à aceitação das suas palavras e dos seus gestos de amor, a deixarmo-nos orientar por Deus. É com a pobreza da sua vida dada por amor que Ele vai enriquecer a humanidade.
É também o rei da paz. Proclama o escândalo e a desumanidade da guerra, da destruição dos outros e do mundo, da escalada de conflitos e da invenção de armamentos mais sofisticados. A batalha contra o egoísmo e a soberba implica reconciliação e perdão. Desafia a não amar só os que nos amam e fazer o bem aos nossos: é preciso amar os inimigos e fazer bem a quem nos odeia. Revela como a vida se perde quando se tenta ganhar mais bens, mais riqueza, quando cresce a indiferença ao sofrimento e à injustiça, mesmo às portas de casa, tão perto do coração. Dá-nos uma única arma: a cruz, sinal perdão e de amor, da vida que se ganha quando é dada por amor, da paz que é a felicidade partilhada.
Ele é o rei universal, sem família nem dinastia privilegiada a quem oferecer lugares de honra, mas fazendo de toda a humanidade a família única. Todos filhos do mesmo Pai que ama incondicionalmente, e irmãos de todas as raças, línguas e feitios. O seu reino não tem fronteiras, nem muros, nem ricos nem pobres, nem privilegiados nem excluídos. Na maravilhosa diversidade de dons e culturas, revela a grandeza do coração humano que pode alargar-se ao infinito. E o seu poder é dar vida, fazer Páscoa, tornar-se nosso alimento. Pão que comemos para construir o seu Reino, para vivermos com Ele e como Ele.
É este o Rei que aclamamos e amamos? É o seu Reino que vamos edificando?
in Voz da Verdade 14.04.2019
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Mulheres “não teriam consentido esta loucura” dos abusos sexuais na Igreja
Entrevista de Natália Faria
Phyllis Zagano, membro da comissão formada pelo Papa para estudar o diaconado das mulheres e uma das autoridades mundiais nesta matéria, alerta que a Igreja corre o risco de não ser levada a sério na denúncia das desigualdades e da violência exercida contra as mulheres ao não lhes conferir estatuto clerical.
Os abusos sexuais de menores dentro da Igreja não teriam avançado tanto, se houvesse mulheres com estatuto clerical e funções governativas na Igreja Católica, defende Phyllis Zagano. Professora e investigadora na Universidade de Hofstra, em Nova Iorque, foi convidada, em 2016, a integrar a Pontifícia Comissão para o Estudo do Diaconado das Mulheres. Esta semana, passou por Lisboa, a convite do Centro de Investigação em Teologia e Estudos da Religião, da Faculdade de Teologia da Universidade Católica, para apresentar o livro Mulheres diáconos – passado, presente e futuro [2019, Paulinas Editora], de que é co-autora. Nesta entrevista, recua séculos para lembrar que eram as diáconos que baptizavam as mulheres, ungiam as doentes e reportavam aos bispos casos de violência doméstica. E avisa que a Igreja tem de avançar para a ordenação de mulheres diáconos, sob pena de não ser levada a sério na denúncia das desigualdades e da violência exercida contra as mulheres.
A sua investigação comprova que já houve mulheres diáconos na Igreja. Quando e como?
O que se sabe é que houve mulheres que serviram como diáconos na igreja Católica em diferentes lugares e em diferentes alturas. No Ocidente, as mulheres diácono existiram até ao século XII. E no Oriente ainda durante mais tempo. Sabemos que há à volta de 60 lápides no Ocidente de mulheres diáconos. E havia muitas liturgias para ordenar as mulheres como diáconos. E, até ao século XVI, as liturgias destinadas a ordenar as mulheres como diáconos, estavam nos livros usados na Igreja. Basicamente, isso permite-nos dizer que as mulheres diáconos eram ordenadas. Isso é muito importante. Na missa, a mulher que iria ser diácono era chamada ao altar, o bispo punha as mãos sobre ela e invocava o Espírito Santo. Isso constituía um sacramento. Mas o bispo fazia outras coisas: ele autorizava-a a pegar no cálice e também colocava uma estola [veste litúrgica, em forma de faixa larga de tecido] sobre os ombros. A estola significava que ela podia proclamar o Evangelho. Mas o mais importante era que o bispo a tratava como diácono. Era um título profissional.
Quais eram as suas funções?
Algumas ajudavam no baptismo por imersão das mulheres, porque, no baptismo, as pessoas estavam despidas e eram esfregadas com óleo, ou seja, precisavam de ajuda para entrar e sair da “piscina” baptismal e um homem não o podia fazer. Nalgumas partes da Síria, toda a cerimónia do baptismo desenrolava-se detrás de uma cortina e era uma mulher diácono que a conduzia. Na altura certa, o bispo enfiava a sua mão pela cortina e abençoava a pessoa, sem a ver. Outra coisa que faziam era ungir as doentes, porque nenhum homem entrava no quarto de uma mulher doente e muito menos para lhe tocar. Por outro lado, se um marido batia na mulher, era a diácono que, depois de observar a mulher, reportava o caso ao bispo. Portanto, tínhamos o testemunho de uma mulher a ser aceite por um bispo.
Abusos sexuais: "Nenhuma mulher teria permitido que o problema assumisse as proporções que assumiu. Você permitiria? Não. Punha-os todos a correr."
As pessoas podem alegar que as mulheres diácono não eram realmente ordenadas, mas as suas funções e tarefas mostram que elas tinham esta relação credível com o bispo que as autorizava a administrar sacramentos – ungir e baptizar – e também a falar em nome deles, porque, se elas tinham a estola, podiam proclamar o Evangelho. No século VI, a diácono Ana era tesoureira de Roma. Ela tomava conta do dinheiro.
Porque desapareceram?
Os diáconos eram muito poderosos. Principalmente os homens diáconos, que cuidavam do ouro e do dinheiro. Os padres não gostavam disto. Então, não havendo seminários nem universidades, instituiu-se que, para alguém se tornar padre, tinha de percorrer as diferentes etapas do chamado cursus honorum, o que levou a que ninguém pudesse ser ordenado diácono, a não ser que se preparasse para ser padre, o que excluiu, à partida, todas as mulheres. Continuaram a existir mulheres diáconos até ao século XII, mas relegadas para os mosteiros. E acabaram-se os homens diáconos porque estes tornavam-se todos padres.
No Concílio Vaticano II, Paulo VI restaurou o diaconado permanente dos homens. E porque não o das mulheres?
Nesse concílio houve 101 sugestões acerca do diaconado, duas das quais sobre o diaconado feminino. Mas quando dois bispos levantaram a questão, o padre conciliar que estava a dirigir os trabalhos decidiu “Está na hora do café”. Eles não queriam falar sobre isso. Mas, em 1972, Paulo VI pediu a um liturgista famoso, Cipriano Vagaggini, que estudasse a questão das mulheres diácono. E ele escreveu um documento que confirmava que já tinham existido mulheres diáconos, que eram ordenadas, concluindo que não havia grande problema, que se podia avançar.
E depois?
Nada. Porque a luta estava acesa. Nessa altura, nos Estados Unidos, tínhamos as mulheres da Igreja Episcopal, em Filadélfia, a serem ordenadas padres e também havia por todo o lado mulheres católicas a reclamarem o direito de ser padres. Então, a palavra que se ouvia era “padre, padre, padre”, e isso abafou a discussão sobre o diaconado feminino. Apesar disso, a discussão prolongou-se. Roger Gryson [investigador belga, autor do livro The Ministry of Women in the Early Church] defendia que sim e entrou numa discussão com Aimé-Georges Martimort que defendia que não. Mas a discussão que estava subjacente era a questão do sacerdócio. O bispo alemão perguntava “E então o diaconado feminino?” e o Vaticano respondia que as mulheres não podiam ser padres.
Que argumentos pesam hoje a favor da restauração do diaconado feminino?
Não é uma questão de argumentos. Se a Igreja tem essa necessidade do ministério feminino, esse é o chamamento do povo de Deus. E penso que a Igreja sente essa necessidade de vozes femininas, de olhares femininos, de ter mulheres sentadas à mesa. Na comissão que integro, há seis homens e seis mulheres. Mas é a primeira vez, na história da Igreja, que se criou um grupo em que as mulheres estão igualmente representadas a olhar para uma questão em nome do Papa.
"A Igreja diz que as mulheres são iguais e que são maravilhosas. Mas numa missa em S. Pedro, o que se vê é um mar de homens; não há mulheres, talvez uma rapariga de sete anos com um ramo de flores, mas mulheres, não."
O estudo que o Papa vos encomendou já foi entregue. E agora?
A missão deste grupo não era apresentar uma opinião ao Papa, mas relatar-lhe a situação em termos históricos. Mas em Maio, entre os dias 6 e 10, a União Internacional das Superioras Gerais vai reunir-se e o Papa vai falar com elas. E eu, se fosse o Papa, não entraria numa sala com mil freiras sem uma resposta.
Muitos esperam ouvir o Papa anunciar que o diaconado feminino vai ser recuperado, em Outubro, no sínodo dedicado à Amazónia. Fará sentido?
documento preparatório para o sínodo refere a necessidade de identificar o tipo de ministério oficial que pode ser conferido à mulher. Quando, estando em Indianápolis, Indiana, recebi um telefonema de uma jornalista da Associated Press, em Roma, a perguntar o que quer isto dizer, respondi-lhe que estas palavras significam que a mulher poderá ser ordenada. Têm de significar. Além disso, no documento final do sínodo dedicado aos jovens, há dois parágrafos dedicados às mulheres, apoiando a necessidade de liderança e participação feminina na Igreja.
Que resistências poderá Francisco enfrentar nesta matéria?
Depende. Não penso que os bispos de África estejam particularmente interessados em ter mulheres diáconos, embora as africanas o estejam. Nalgumas das nações mais pobres da Ásia, como o Camboja, dizem que não têm problemas, mas a questão é que não têm mulheres – nem sequer homens – suficientemente preparados para serem diáconos. Mas os bispos e os cardeais com quem venho falando (da Europa, da Austrália, do Reino Unido, da Irlanda…) estão muito confiantes. E, na América do Sul, a reacção é: “Venham, mandem-nas para cá.”
Há então razão para acreditar?
Eu fui a única não-europeia a ser chamada a integrar esta comissão. E o presidente da minha universidade, que é judeu, disse: “Se o Papa não quisesse as mulheres como diáconos, não te teria feito viajar de Nova Iorque para Roma”.
"Em Maio, entre os dias 6 e 10, a União Internacional das Superioras Gerais vai reunir-se e o Papa vai falar com elas. E eu, se fosse o Papa, não entraria numa sala com mil freiras sem uma resposta"
Quanto tempo até vermos as mulheres reconhecidas como iguais na Igreja?
Dependerá de onde estiver. Algumas culturas estão mais receptivas do que outras. Alguns clérigos estão mais receptivos do que outros. O cardeal brasileiro Odilo Scherer, com quem jantei há uns tempos, às tantas pegou no telefone e começou a mostrar-me fotografias. Eram quilómetros de favelas. Perguntei-lhe quantos padres tinha e ele disse: “Quatrocentos.” E quantos católicos? “Cinco milhões.” Perguntei-lhe se ele gostaria de ter mulheres diáconos, e ele respondeu “Claro!” Caso não, quem faz os baptismos, os casamentos, quem dá a catequese? Na América do Sul, os evangélicos estão muito presentes e têm mulheres. E os católicos têm de esperar um ano por um padre. É de loucos.
Se as mulheres tivessem estatuto clerical e funções governativas, a Igreja teria sabido refrear a confusão dos abusos sexuais cometidos pelos padres?
Antes de mais, elas não teriam consentido esta loucura. E teriam visto o perigo. Penso que muitos homens não foram capazes de compreender quão sério era o problema. Acho que o consideraram um pecado, sem cuidarem de atender aos danos provocados nas crianças. Penso que uma mulher, uma mãe, tê-lo-ia percebido muito mais cedo. Não acha? As mulheres seriam as primeiras a dizer em relação ao abusador: “Não, não o vão mudar de paróquia, vão despedi-lo.”
Eu trabalhei para o cardeal [John] O’Connor em Nova Iorque e, perante um caso que lhe chegou de um único abuso cometido por um clérigo, disse apenas: “Está despedido. Processe-me se tiver problemas com isso.” Penso que foi uma atitude típica de uma mulher. Nenhuma mulher teria permitido que o problema assumisse as proporções que assumiu. Você permitiria? Não. Punha-os todos a correr.
Mas em relação ao estatuto clerical…
A questão do estatuto clerical é que só um clérigo está autorizado a proferir a homilia. Se tivessem esse estatuto, as mulheres seriam autorizadas a pregar. Agora, pense: o que é que isto diria ao resto do mundo? A Igreja diz que as mulheres são iguais e que são maravilhosas. Mas numa missa em S. Pedro, o que se vê é um mar de homens; não há mulheres, talvez uma rapariga de sete anos com um ramo de flores, mas mulheres, não. Se a Igreja tivesse uma mulher, investida, em S. Pedro, a pregar o Evangelho, não seriam apenas os 2,2 mil milhões de católicos espalhados pelo mundo a ver que as mulheres são iguais, mas o resto do mundo. Temos mulheres no Nepal a morrer nas “cabanas menstruais” por inalação de fumo; temos mulheres na Índia a morrer queimadas; mulheres em África a morrer de mutilação genital feminina; mulheres que morrem porque os maridos lhes batem, um pouco por todo o mundo. A Igreja tem que pregar que as mulheres são iguais aos olhos do Senhor, mas tem, sobretudo, de fazer aquilo que prega. Só então a Igreja terá o direito de dizer alguma coisa contra estas realidades.
in Público,13 de Abril de 2019

“Se um homem casado quer ser padre, tudo bem, mas tem de arranjar emprego”
O primeiro passo em direcção à ordenação dos homens casados poderá ser dado em Outubro, no sínodo dos bispos dedicado à Amazónia, acredita Phyllis Zagano, para quem o que está em jogo é a sobrevivência da Igreja em várias regiões do globo.
Entrevista de Natália Faria

Membro da comissão formada pelo Papa para estudar o diaconado das mulheres, e uma das autoridades mundiais nesta matéria, Phyllis Zagano acredita que a ordenação de homens de fé comprovada, mesmo casados, “é uma boa sugestão e que Francisco tenderá para isso”.

Quando dará a Igreja os primeiros passos em relação à ordenação de homens casados?
Já acontece, não vejo grande problema.
Mas não aqui [na Igreja Católica de rito Latino].
Não aqui, à excepção dos anglicanos. Nos Estados Unidos, a primeira ordenação de um homem casado foi em 1923, um metodista. Portanto, não é novo. E, das 22 ou 23 igrejas católicas de rito Oriental, 20 ordenam homens casados. E estão em comunhão total com Roma.
Por que não na Igreja Católica de rito Latino?
Por algumas razões. Por mim, não tenho problema em ordenar homens casados mas não tenho de o suportar financeiramente a ele e aos seus cinco filhos. Portanto, se um homem casado quer ser um padre católico, tudo bem, mas tem de arranjar emprego: pode ser professor universitário ou condutor de autocarro, não importa. Penso que a questão financeira é uma das razões. Na Igreja primitiva, se o padre fosse casado, não podia dormir com a sua mulher e celebrar a eucaristia porque se ele lhe tocasse ficaria impuro. Isso não correu bem com as mulheres que os puseram a correr. Mas havia também o problema do nepotismo, isto é, o risco de o bispo conceder as melhores paróquias aos seus filhos, fazendo-os herdar os seus bens e o seu dinheiro. Isso tornou-se difícil de gerir.
Como funciona nas outras igrejas?
Entre grandes problemas financeiros e com dificuldades em suportar as famílias. Muitos padres protestantes tentam tornar-se capelães militares ou hospitalares, querem trabalhar a tempo inteiro, porque é-lhes muito difícil dependerem financeiramente das dioceses. E isto mistura-se com a questão dos evangélicos que fazem imenso dinheiro, sendo que, para mim, o Evangelho não é de ninguém, logo não o podem vender. E há também a questão da dedicação e da oração.
Mas penso que a ordenação de viri probati [ordenação de homens de fé comprovada, mesmo casados] é uma boa sugestão e que Francisco tenderá para isso. Mas note que na República Checa vários homens casados que trabalhavam na Igreja foram ordenados padres. A maioria aceitou tornar-se padre com a condição de tornar-se membro da Igreja Católica Grega [de rito oriental, nascida de uma cisão ocorrida na Igreja Ortodoxa Grega e que, sem abandonar os ritos litúrgicos orientais, se uniu à Santa Sé e obedece à autoridade do Papa]. Mas houve um que disse que não e foi ordenado padre católico. É, aliás, o vigário-geral da sua diocese.
Logo, é possível?
Sim, tecnicamente é uma derrogação da lei. Portanto, se um bispo quiser ordenar discretamente um homem casado escreve para Roma e pede uma derrogação da lei. Toda esta questão levará algum tempo a ser decidida, mas penso que, no sínodo da Amazónia, vão discutir esta questão e penso que acabarão por avançar com os viri probati. Homens casados de vida e fé comprovada
Sim?
Terão de o fazer. O que pode um bispo fazer quando tem 400 padres, metade dos quais com mais 60 anos, para uma população de cinco milhões de católicos? Sem padres, perderemos a eucaristia e sem a eucaristia, o que somos? Não se esqueça que a Igreja está em muitos maus lençóis actualmente.
in Público 13.04.2019
www.publico.pt/2019/04/13/sociedade/entrevista/mulheres-governassem-igreja-nao-consentido-loucura-abusos-sexuais-1869060
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Theologians concerned about newly engaged role of Benedict, pope emeritus
Apr 12, 2019
by Joshua J. McElwee Vatican

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Retired Pope Benedict XVI greets cardinals before a consistory for the creation of new cardinals in St. Peter's Basilica at the Vatican in this Feb. 22, 2014, file photo. (CNS/Paul Haring)

VATICAN CITY — When Pope Benedict XVI shocked a meeting of cardinals Feb. 10, 2013, with news he would be renouncing the papacy at the end of that month, he promised that as the ex-pontiff he would retreat from the public eye and serve the Catholic Church "through a life dedicated to prayer."

But by the third anniversary of his resignation, Benedict was taking on a more active role.

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First came a March 2016 interview with a Belgian theologian that focused on the question of God's mercy, just as Pope Francis was in the midst of celebrating an Extraordinary Jubilee Year, also focused on mercy.

In November 2016 came a book-length interview with German journalist Peter Seewald, where Benedict defended his 2005-13 papacy against criticism. "I do not see myself as a failure," he said in the book, titled Last Testament: In His Own Words. "For eight years I carried out my work."

Now comes a letter blaming the continuing clergy abuse crisis on the sexual revolution and theological developments after the Second Vatican Council, weeks after Francis hosted a first-of-its-kind bishops' summit on abuse that focused instead on the endemic structural issues that have abetted cover-up in the church for decades.

What to make of this development of a pope emeritus who emerges from the shadows unannounced from time to time to offer his comments on current affairs, or even on issues being handled by his reigning successor?

A number of noted theologians and church historians are expressing serious concern that Benedict's choice to engage in such public action undermines Francis and plays into narratives splitting Catholics between two popes, one officially in power, and the other wielding influence as he writes from a small monastery in the Vatican Gardens.

"Benedict told us he was going to live a life of quiet contemplation," said Christopher Bellitto, a historian who has written extensively on centuries of popes. "He has not. A former pope should not be publishing or giving interviews."

Richard Gaillardetz, a theologian who focuses on the church's structures of authority, called the precedent being set by Benedict's latest letter "troubling."

The former pontiff, said the theologian, is offering "a controversial analysis of a pressing pastoral and theological crisis, and a set of concrete pastoral remedies."

"These are actions only appropriate for one who actually holds a pastoral office," said Gaillardetz, a professor at Boston College.

"So now we have a situation in which a former pope is offering a parallel pastoral and theological assessment and a parallel pastoral and theological agenda that cannot help but be viewed as an alternative to the exercise pastoral leadership of the current and only bishop of Rome," he said.


Even the Vatican appears to be struggling to understand what to do with a former pope who wants to engage in public debate. As Benedict's latest letter appeared on several right-wing Catholic websites overnight April 10, the Holy See Press Office seemed unprepared, unable even to respond to questions about whether the text was authentic.

In fact it was Archbishop Georg Ganswein, Benedict's personal secretary, that confirmed for many journalists that the text was indeed from the former pontiff.

"The institution of the pope emeritus in the age of mass media and of social media must be regulated carefully," said Massimo Faggioli, an Italian church historian and theologian who teaches at Villanova University.

"This is something that must be done especially about the papal entourage," he said. "The Vatican is a Renaissance court and it is difficult enough to govern one court without having to deal with a 'shadow papal court' — which is what we have today."

Gaillardetz and Bellitto, a professor of history at Kean University in New Jersey, both said Benedict's decision to continue wearing white after his resignation and to call himself the "pope emeritus," instead of some other title such as the "emeritus bishop of Rome," have not helped make clear that there is only one pope at a time.

"These decisions have rather predictably fed deeply troubling 'two pope' theories," said Gaillardetz.

"The Vatican is a Renaissance court and it is difficult enough to govern one court without having to deal with a 'shadow papal court' — which is what we have today."

— Massimo Faggioli


Shortly after the release of Benedict's letter, one Italian journalist pointed to the official advice the Vatican gives to retired bishops about how to manage their relationships with their reigning diocesan prelates.

"The Bishop Emeritus will be careful not to interfere in any way, directly or indirectly, in the governance of the diocese," states Apostolorum Successores, the Congregation for Bishops latest directory for bishops, released in 2004.

"He will want to avoid every attitude and relationship that could even hint at some kind of parallel authority to that of the diocesan Bishop, with damaging consequences for the pastoral life and unity of the diocesan community," it continues.

"The Bishop Emeritus always carries out his activity in full agreement with the diocesan Bishop and in deference to his authority," it states. "In this way all will understand clearly that the diocesan Bishop alone is the head of the diocese, responsible for its governance."

Or, as theologian Natalia Imperatori-Lee put it about Benedict: "It is crucial that he (and, perhaps more importantly those around him) practice a ministry of silence lest it appear that he wants to undermine the current, only, Bishop of Rome, who is Francis."

"To continue to speak on matters the pope is working vigorously to correct in the global, complex reality … that is the church is to encourage dissent [and] to flirt with schism," said Imperatori-Lee, a professor at Manhattan College.

"Let the pope be the pope," she advised. "And let the pope emeritus pray for him."

[Joshua J. McElwee is NCR Vatican correspondent. His email address is jmcelwee@ncronline.org. Follow him on Twitter: @joshjmac.]
in NCR 12.04.2019