26 maio 2019

CARTA DO PAPA FRANCISCO
PARA O EVENTO "ECONOMY OF FRANCESCO"
 
[ASSIS, 26-28 DE MARÇO DE 2020]  

Aos jovens economistas empresários e empresárias do mundo inteiro
Estimados amigos!

Escrevo-vos a fim de vos convidar para uma iniciativa que desejei muito: um evento que me permita encontrar-me com quantos estão a formar-se e começam a estudar e a pôr em prática uma economia diferente, que faz viver e não mata, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza, cuida da criação e não a devasta. Um acontecimento que nos ajude a estar unidos, a conhecer-nos uns aos outros, e que nos leve a estabelecer um “pacto” para mudar a economia atual e atribuir uma alma à economia de amanhã.
Sim, é necessário “re-animar” a economia! E qual cidade é mais idónea para isto do que Assis, que desde há séculos é símbolo e mensagem de um humanismo da fraternidade? Se São João Paulo II a escolheu como ícone de uma cultura de paz, para mim parece ser também um lugar inspirador de uma nova economia. Com efeito, ali Francisco despojou-se de toda a mundanidade para escolher Deus como Estrela polar da sua vida, fazendo-se pobre com os pobres, irmão universal. Da sua escolha de pobreza brotou também uma visão da economia que permanece extremamente atual. Ela pode dar esperança ao nosso amanhã, não apenas em benefício dos mais pobres, mas da humanidade inteira. Aliás, ela é necessária para o destino de todo o planeta, a nossa casa comum, «a nossa irmã Terra Mãe», como Francisco a chama no seu Cântico do Irmão Sol.
Na Carta Encíclica Laudato si’ ressaltei que hoje, mais do que nunca, tudo está intimamente ligado e a salvaguarda do meio ambiente não pode ser separada da justiça em relação aos pobres, nem da solução dos problemas estruturais da economia mundial. Por conseguinte, é preciso corrigir os modelos de crescimento incapazes de garantir o respeito pelo meio ambiente, o acolhimento da vida, o cuidado da família, e equidade social, a dignidade dos trabalhadores e os direitos das gerações vindouras. Infelizmente, ainda não foi ouvido o apelo a tomar consciência acerca da gravidade dos problemas e sobretudo a pôr em prática um modelo económico novo, fruto de uma cultura da comunhão, baseado na fraternidade e na equidade.
Francisco de Assis é o exemplo por excelência da atenção aos frágeis e a uma ecologia integral. Vêm-me à mente as palavras que lhe foram dirigidas pelo Crucificado, na igrejinha de São Damião: «Francisco, vai e repara a minha casa que, como vês, está em ruínas». Aquela casa a reparar diz respeito a todos nós. Refere-se à Igreja, à sociedade, ao coração de cada um de nós. Diz respeito cada vez mais também ao meio ambiente, que tem urgente necessidade de uma economia saudável e de um desenvolvimento sustentável que cure as suas feridas e lhe garanta um futuro digno.
Perante esta urgência, todos, absolutamente todos nós somos chamados a rever os nossos esquemas mentais e morais, para que estejam mais em conformidade com os mandamentos de Deus e com as exigências do bem comum. Mas pensei em convidar de modo especial a vós jovens porque, com o vosso desejo de um porvir bom e jubiloso, já sois a profecia de uma economia atenta à pessoa e ao meio ambiente.
Caríssimos jovens, bem sei que sois capazes de ouvir com o coração os brados cada vez mais angustiantes da terra e dos seus pobres em busca de ajuda e de responsabilidade, ou seja, de alguém que “responda” e não olhe para o outro lado. Se ouvirdes o vosso coração, sentir-vos-eis portadores de uma cultura corajosa e não tereis medo de arriscar, nem de vos comprometer na construção de uma sociedade renovada. Jesus Ressuscitado é a nossa força! Como eu vos disse no Panamá e escrevi na Exortação Apostólica pós-sinodal Christus vivit: «Por favor, não deixeis para outros o ser protagonista da mudança! Vós sois aqueles que detêm o futuro! Através de vós, entra o futuro no mundo. Também a vós, eu peço para serdes protagonistas desta mudança. [...]Peço-vos para serdes construtores do futuro, trabalhai por um mundo melhor» (n. 174).
As vossas universidades, as vossas empresas, as vossas organizações são canteiros de esperança para construir outras modalidades de entender a economia e o progresso, para combater a cultura do descarte, para dar voz a quantos não a têm, para propor novos estilos de vida. Enquanto o nosso sistema económico-social ainda produzir uma só vítima, e enquanto houver uma só pessoa descartada, não poderá haver a festa da fraternidade universal.
É por isso que desejo encontrar-me convosco em Assis: para promover juntos, através de um “pacto” comum, um processo de mudança global que veja em comunhão de intenções não apenas quantos têm o dom da fé, mas todos os homens de boa vontade, para além das diferenças de credo e de nacionalidade, unidos por um ideal de fraternidade atento acima de tudo aos pobres e aos excluídos. Convido cada um de vós a ser protagonista deste pacto, assumindo um compromisso individual e coletivo para cultivarmos juntos o sinal de um novo humanismo que corresponda às expetativas do homem e ao desígnio de Deus.
O título deste evento — “Economy of Francesco” — refere-se claramente ao Santo de Assis e ao Evangelho que ele viveu em total coerência, inclusive nos planos económico e social. Ele oferece-nos um ideal e, de certa maneira, um programa. Para mim, que escolhi o seu nome, é contínua fonte de inspiração.
Juntamente convosco, e através de vós, apelarei a alguns dos melhores estudiosos e estudiosas da ciência da economia, assim como a empresários e empresárias que hoje já se encontram engajados a nível mundial, em prol de uma economia coerente com este cenário ideal. Estou confiante de que eles hão de responder. E confio sobretudo em vós, jovens, que sois capazes de sonhar e estais prontos para construir, com a ajuda de Deus, um mundo mais justo e melhor.
O encontro está marcado para os dias 26-28 de março de 2020. Juntamente com o Bispo de Assis, cujo predecessor Guido, há oito séculos, recebeu na sua casa o jovem Francisco no gesto profético do seu despojamento, também eu espero receber-vos. Espero por vós e desde já saúdo-vos e abençoo-vos. E, por favor, não vos esqueçais de rezar por mim!
Vaticano, 1 de maio de 2019
Memória de São José Operário.
     P / INFO: Haverá alternativas à economia que mata?, Greve das mulheres e o feminiclericalismo, Tesouros Portugueses, Ensinar e recordar, Foi há quatro anos & Photo exhibition celebrates 25 years of female priests

Haverá alternativas à economia que mata?
Frei Bento Domingues, O.P.

É muita ousadia da parte do Papa tentar destruir o dogma de que não há alternativas viáveis à economia dominante.

1. Os anos não perdoam. Os adversários das posições e das práticas do Papa Francisco confiaram, durante bastante tempo, nessa lei da natureza. Quando se deram conta de que este argentino resiste e não desiste das reformas que propôs, entraram em pânico: dada a sua popularidade, é possível que da eleição de um novo Papa surja alguém da mesma linha. Isso não pode acontecer! Daí, a reunião de pessoas e recursos da finança internacional para denegrirem a imagem de Bergoglio.
Para esses grupos – pouco numerosos, mas com muita visibilidade e acesso a inúmeros recursos –, é insuportável ter à frente da Igreja Católica alguém que denuncia a economia dominante como “economia que mata”. Supor que existem e podem crescer alternativas a esta economia é uma blasfémia, uma heresia económica sem perdão.


Até agora, o Papa Francisco agia de forma exemplar em relação aos que são deixados à margem e abandonados. Fazia incessantes apelos em socorro das vítimas da guerra que procuram, em condições miseráveis, acolhimento noutros países. Em todo esse esforço, é sempre o Papa a agir e a falar ou a nomear comissões de estudo para resolver problemas. Mesmo os três notáveis discursos sobre a injustiça social e económica, dirigidos aos movimentos populares [1], não fogem a esse estilo. Agora, porém, com a Carta convocatória para o Encontro “Economy of Francesco”, em Assis, de 26 a 28 de Março de 2020, parece ter começado uma era nova. É dirigida a jovens economistas, empreendedores e empreendedoras de todo o mundo, não como mestre em Doutrina Social da Igreja, mas como alguém que deseja participar no conhecimento das alternativas que existem à “economia que mata” e ampliar as suas potencialidades.

Antes de realçar a significação desta mudança, devo dar a palavra à própria Carta. No primeiro parágrafo resume o seu desejo: “Esta Carta é para vos convidar para uma iniciativa que muito desejei: um evento que me permita encontrar quem, hoje, está a formar-se, a começar a estudar e a praticar uma economia diferente que faz viver e não mata, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza, que cuida da criação e não a degrada. Um evento que nos ajude a estar juntos e a conhecermo-nos, que nos leve a fazer um ‘pacto’ para mudar a economia actual e dar uma alma à economia de amanhã.”



Recorre à sua Encíclica Laudato si’: “sublinhei como hoje, mais do que nunca, tudo está intimamente ligado, e a salvaguarda do ambiente não pode ser separada da justiça para com os pobres e das soluções dos problemas estruturais da economia mundial. É preciso, portanto, corrigir os modelos de crescimento incapazes de garantir o respeito pelo ambiente, o acolhimento da vida, o cuidado pela família, a equidade social, a dignidade dos trabalhadores, os direitos das futuras gerações. Infelizmente, continua ainda por escutar o apelo a tomar consciência da gravidade dos problemas e, sobretudo, a concretizar um modelo económico novo, fruto de uma cultura da comunhão, baseado na fraternidade e na equidade.”

Voltando à Carta do Papa: “desejo encontrar-vos, em Assis, para juntos promovermos, através de um ‘pacto’ comum, um processo de mudança global que veja, em comunhão de propósitos, não só quantos têm o dom da fé, mas todos, mulheres e homens de boa vontade, para além das diferenças de credo e de nacionalidade, unidos por um ideal de fraternidade atento sobretudo aos pobres e aos excluídos. Convido cada um de vós a ser protagonista deste pacto, assumindo a tarefa de um compromisso individual e colectivo para cultivarmos juntos o sonho de um novo humanismo que responda às expectativas do ser humano e do desígnio de Deus.” [2]

2. É evidente que as grandes escolas de economia e gestão também gostam de jovens. Sem eles, não poderiam existir. A questão de fundo é a sua orientação. Estão ao serviço de que interesses? Não falta quem afirme que, muitas vezes, se destinam a uma lavagem ao cérebro, para que aprendam a engenharia de manter e aprofundar as desigualdades sociais. Não desejam um mundo de cidadãos, mas de consumidores que, de tão obcecados com os níveis do seu próprio consumo, acabem por fazer o jogo dos que ganham com esta economia “que mata”. Essa economia foi concebida, não para fortalecer a democracia, mas para a enfraquecer subordinando o poder político ao poder económico. A publicidade revela e esconde. Revela o que tu deves desejar e esconde o que te arruína. A máquina desta engenharia tem ao seu serviço uma grande rede de ilusionistas para mostrar que não há alternativa, ignorando aquelas que, já no terreno, estão a abrir novos caminhos de participação. Quem domina a economia também domina os grandes meios de comunicação. Não lhes interessa divulgar as iniciativas que coloquem em cheque a mentalidade e as práticas dominantes, criando um futuro diferente para as pessoas e as comunidades [3].


3. É muita ousadia da parte do Papa tentar destruir o dogma de que não há alternativas viáveis à economia dominante. Existem, são pouco conhecidas e muito pouco divulgadas. O encontro de Assis tem como primeiro objectivo partilhar o que já está a acontecer nas diferentes partes do mundo. Maior ousadia ainda é convocar, crentes e não crentes, para que as “vossas universidades, as vossas empresas, as vossas organizações se tornem estaleiros de esperança para construir outros modos de entender a economia e o progresso, para combater a cultura do descartável, para dar voz a quem não a tem, para propor novos estilos de vida”. É ousadia porque não faz uma encíclica ou cria uma comissão, mas convoca para um movimento que fermente a massa, quando normalmente à Santa Sé se pede que tenha a primeira e a última palavra. Este Papa quer entrar na escola dos jovens que investigam, quer conhecer as experiências em curso e, sobretudo, os novos projectos de economias alternativas. Não os trata como objectos do seu magistério, mas como sujeitos do percurso da Igreja.

O que diz respeito a todos deve ser tratado por todos. O próprio Jesus estremeceu de alegria ao ver chegar uma nova Era: o que durante séculos e séculos tinha sido ocultado ao povo simples, aos pequeninos, pelas interpretações rebuscadas e abusivas dos falsos sábios das Escrituras, estava, finalmente, ao alcance de todos [4].

A Igreja do Pentecostes é um processo nunca acabado de novas experiências, novas práticas e o grito dos sem vez e sem voz. O contrário do condomínio fechado de privilegiados do saber, do dinheiro, isto é, do poder de dominar.

[1] Cf. Papa Francisco, Terra, Casa, Trabalho, Temas e Debates – Círculo de Leitores, 2018
[2] Quem desejar conhecer esta Carta, na íntegra, pode recorrer ao site do Vaticano
[3] Veja-se, por exemplo, o filme Amanhã, de Cyril Dion e Mélanie Laurent
[4] Cf. Lc. 10, 17-24
in Público 26 de Maio de 2019
www.publico.pt/2019/05/26/sociedade/opiniao/havera-alternativas-economia-mata-1873586
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Greve das mulheres e o feminiclericalismo
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

1. Escrevi aqui recentemente sobre as mulheres na Igreja, perguntando: “E se as mulheres fizessem greve na Igreja?” Uma mulher de alta estatura intelectual, espiritual e social comentou: “As igrejas ficavam vazias.”
Nem de propósito, mulheres católicas alemãs de várias dioceses acabam de boicotar durante uma semana o seu trabalho voluntário nas igrejas e fazer greve às Missas, para protestar contra o machismo e os abusos do clero. “Deploramos os casos conhecidos e desconhecidos de abuso e o seu encobrimento e ocultação por parte dos líderes da Igreja.” E exigem “o acesso das mulheres a todos os ministérios.” Facto é que, como disse Thomas Steinberg, presidente do Conselho Central de Católicos Alemães, “sem as mulheres nada acontece” e, portanto, é necessário seguir um “caminho sinodal” por parte da Igreja, operando as mudanças que se impõem. Aliás, já antes, católicas francesas tinham denunciado o machismo na Igreja, causa dos abusos contra mulheres e crianças: “na Igreja, todo o poder está nas mãos de homens solteiros, os únicos com capacidade para decidir, governar, ensinar, e que dizem ser mediadores da relação com Deus e com o sagrado.” E insistem: “Isto não pode continuar por mais tempo. Tem que mudar.”
2. As mulheres não podem ser discriminadas na Igreja. Jesus não as discriminou. A prova está em que  teve discípulos e discípulas, como testemunham muitos passos dos Evangelhos, e Maria Madalena foi determinante no cristianismo. De facto, foi ela que, depois da crucifixão, quando tudo parecia ter sido o fim, reuniu outra vez os discípulos à volta da experiência avassaladora de fé de que o Jesus crucificado está vivo em Deus, que é Amor. Voltaram a reunir-se na fé em Jesus, o Vivente, e foram anunciar que Ele é o Messias, o enviado de Deus como “o Caminho, a Verdade e a Vida.” E testemunharam-no, dando a vida por isso. De tal modo Maria Madalena foi determinante que Santo Agostinho lhe chamou “a Apóstola dos Apóstolos”.
Também São Paulo fala com imenso respeito das suas colaboradoras. Por exemplo, na Carta aos Romanos, escreve: “Recomendo-vos a nossa irmã Febe, que também é diaconisa na igreja de Cêncreas, recebei-a no Senhor, de um modo digno dos santos. Saudai Trifena e Trifosa, que se afadigam pelo Senhor. Saudai Andrónico e Júnia, meus concidadãos e meus companheiros de prisão, que tão notáveis são entre os apóstolos e que, inclusivamente, se tornaram cristãos antes de mim”. Na Carta aos Gálatas, 3, 26-29, escreve: “É que todos vós sois filhos de Deus em Cristo Jesus, mediante a fé, pois todos os que fostes baptizados em Cristo revestistes-vos de Cristo mediante a fé. Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus.” Portanto, na Igreja, e não só, há uma igualdade originária.
Jesus Cristo é, sem dúvida, quando se pensa a sério no que Ele fez, disse, foi e é, a figura mais determinante da História da Humanidade. São Paulo explicitou essa influência, a partir da sua própria experiência pessoal, avassaladora, que se traduz naquela conclusão: “Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher.” Que experiência foi essa, que o levou de perseguidor a Apóstolo, fazendo milhares e milhares de quilómetros, com os meios precários da altura, para anunciar o Evangelho? Há uma pergunta fundamental que Paulo faz: o que vale um morto?, o que vale um morto, concretamente um crucificado morto? Mas, ao fazer a experiência de fé de que esse Jesus crucificado está vivo em Deus, conclui que Deus o ressuscitou e, portanto, Ele vale para Deus, tem valor para Deus. E, se Jesus crucificado, morto, vale para Deus, como mostra a ressurreição, então todos valem, todos os homens e mulheres, independentemente do sexo, da etnia, da religião, da idade, da cor, valem para Deus, têm valor. Todos têm dignidade diante de Deus. Já não há escravo nem livre, nem judeu nem grego, nem homem nem mulher.
Alguém conhece revolução maior na História do mundo, de que lentamente se foi e vai tomando consciência, a ponto de se proclamar a dignidade inviolável de todas as pessoas, nomeadamente na Declaração Universal dos Direitos Humanos? As comunidades cristãs celebravam a Eucaristia, lembrando Jesus, a sua memória e reconheciam-no na partilha do pão, em refeições festivas, e, pela primeira vez, senhores e escravos, homens e mulheres, judeus e gregos se sentaram todos à mesma mesa. E quem presidia era o dono ou a dona da casa, que recebiam a comunidade. Com o tempo, a Igreja tornou-se uma estrutura de poder e aí tudo se transformou, chegando-se ao cúmulo daquelas celebrações da Ceia de Jesus que já nada têm de fraterno, pois mais parecem cerimónias das cortes imperiais. Naqueles longos pontificais com pompa imperial, adornos de ouro e pedras preciosas, vestimentas luxuosas que por vezes até rondam o ridículo, em que participam inclusivamente patifes e ladrões sem o mínimo propósito de emenda nem conversão, alguém se lembra da Última Ceia de Jesus? Quem preside? Os “senhores”, donos de Deus e do sagrado. Evidentemente, as mulheres foram ficando excluídas da presidência. E, lentamente, a revolução evangélica de Jesus, da radical igualdade de todos, teve de ser proclamada fora da Igreja oficial e ser-lhe imposta de fora, como aconteceu com as proclamações dos direitos humanos.
3. E Francisco? Ele está convencido de que “é necessário ampliar os espaços para uma presença feminina mais incisiva na Igreja. As mulheres formulam questões profundas que devemos enfrentar.” Disse às religiosas: “Não às criadas. Nenhuma de vós se faz freira para ser uma servente dos padres.” Em Julho de 2016, nomeou uma comissão igualitária de homens e mulheres para estudar o papel das mulheres na Igreja primitiva. A comissão terminou o seu trabalho sem acordo e ele acaba de comunicar no Encontro internacional das religiosas que, sobre o caso do diaconado, “temos de ver o que havia no início da Revelação. Se o Senhor não nos deu o ministério sacramental para as mulheres, a coisa não dá. Por isso, estamos a investigar a história”. Francisco não fechou a porta, mas ficou atado com a questão do diaconado como sacramento ou não para as mulheres.
Aqui precisamente, chegámos ao nervo do problema, problema nuclear da Igreja, porque está na base do clericalismo e do carreirismo, “a peste da Igreja”, na expressão de Francisco. Foi o maior exegeta católico do século XX, professor da Universidade de Tubinga, Herbert Haag, que me ensinou que Jesus não ordenou ninguém “in sacris”,  nem homens nem mulheres. Na Igreja, há ministérios (Autrag), mas não há ordenação sacra (Weihe). Todo o povo de Deus pelo baptismo é Povo sacerdotal, mas  não há sacerdotes. Toda a Igreja é ministerial, mas o Novo Testamento evitou a palavra hiereus (sacerdote) e, entre os carismas (dons do Espírito Santo), não se refere o sacerdócio.
Neste enquadramento, Pepe Mallo foi ao essencial, quando escreveu: “Porque é que se há-de sacramentalizar os ministérios? É evangélico sacralizar (ordenar ‘in sacris’) as pessoas? Não se deverá dissociar ‘ordenação’ e ministério’? É certo que Jesus não ordenou mulheres, mas também não ordenou homens, e, menos ainda, no sentido, aspecto e categorias de que desfrutam hoje os clérigos. Jesus não instituiu nenhum sacramento da ‘Ordem Sagrada’, nem para mulheres nem para homens. As funções de diáconos e diaconisas, bem como de presbíteros e bispos  de que falam as Cartas no Novo Testamento eram pura e simplesmente ministérios da comunidade e para a comunidade. Não eram dignidades e privilégios de supremacia e domínio.” Na Igreja, tem de ser respeitada a dignidade de todos, mas não há dignidades nem dignitários.
Jesus dizia no Evangelho: “Tomai cuidado com os fariseus e os doutores da Lei, que gostam de exibir longas vestes, de ser cumprimentados nas praças, de ocupar os primeiros lugares nas sinagogas e nos banquetes. Vós sois todos irmãos.” Voltando às primeiras comunidades, é preciso reconhecer o sacerdócio de todos os baptizados, homens e mulheres, e, assim, proclamar e exigir a igual dignidade de todos. Mas, se as mulheres apenas reclamarem o poder dos homens na Igreja, então teremos o mal acrescentado:  ao mal do clericalismo machista acrescentar-se-á o do feminiclericalismo. Julgo que é este o receio do Papa Francisco, quando critica algum feminismo como “machismo de saias”.
in DN 26.05.2019
www.dn.pt/edicao-do-dia/26-mai-2019/interior/greve-das-mulheres-e-o-feminiclericalismo--10940249.html
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QUE COISA SÃO AS NUVENS
JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA
TESOUROS PORTUGUESES
A BIBLIOTECA APOSTÓLICA VATICANA É UM ATIVO DE CIVILIZAÇÃO, CONHECIMENTO E CIÊNCIA AO SERVIÇODA HUMANIDADE

Deve-se ao Papa humanista Nicolau V (1447-1455) a decisão de inaugurar uma biblioteca pública no Vaticano que pudesse ter como finalidade “a utilidade comum dos homens de ciência”, tornando acessível a leitores externos o que, até então, era uma biblioteca para uso exclusivo da cúria papal. O Papa teve ainda o cuidado de enriquecê-la, doando não só a sua biblioteca particular, mas implementando uma política maciça de compras nos mercados livreiros do Oriente e Ocidente. O vasto plano que então germinava propunha-se construir uma verdadeira biblioteca universal, segundo critérios humanísticos. Não era, portanto, uma biblioteca especializada, por exemplo, em teologia ou ciências eclesiásticas, mas deveria cobrir todas as áreas do conhecimento humano, incluindo tanto o campo literário (com os clássicos não-cristãos latinos e gregos) como o científico (com a medicina, a astronomia, a matemática, as ciências naturais, etc). Os esforços de Nicolau V foram bem-sucedidos: à data da sua morte (1455), a Biblioteca Apostólica Vaticana era já uma das bibliotecas mais ricas do mundo, em qualidade e quantidade de textos. Esta política cultural foi mantida por seus sucessores e, em breve, tornar-se-ia imperioso, por exemplo, ampliar os espaços da própria biblioteca. Isso aconteceria por intervenção direta do Papa Sisto V, que encomendou ao arquiteto Domenico Fontana, em 1587, uma sede com as características necessárias para acolher aquela que era uma determinante instituição cultural no coração da Igreja.

O “Regimento do astrolábio e do quadrante”, o mais antigo opúsculo conhecido e impresso com regras náuticas, teve uma edição portuguesa, na oficina de Herman de Campos, nos inícios de 1500

Sendo hoje prevalentemente uma biblioteca patrimonial, com um acervo de oitenta mil manuscritos, com um milhão e seiscentos mil livros impressos, mais de cem mil desenhos, gravuras e impressões depositadas no seu gabinete gráfico e um departamento numismático que reúne cerca de trezentas e cinquenta mil moedas e medalhas, é um ativo de civilização, conhecimento e ciência ao serviço da humanidade. É, por isso, fácil que qualquer cultura ou nação encontre na Biblioteca Apostólica um seu tesouro representado e que esse seja um primeiro motivo para cultivar curiosidade, afeto e colaboração científica com este organismo. Tal acontece também com Portugal e, podemo-lo testemunhar, de uma forma esplêndida, se bem que haja tanto por descobrir e realizar. Um dos documentos portugueses mais icónicos é, sem dúvida, o “Cancioneiro da Vaticana”, que reúne 1205 composições da lírica trovadoresca galaico-portuguesa, tornando-se assim uma das fontes essenciais que documentam a emergência da nossa língua e literatura. Mas há, só para dar outro exemplo entre mil, um requintadíssimo repositório de literatura científica ligada a Portugal que tem passado inobservado. Um dos casos clamorosos que podemos citar é o do “Regimento do astrolábio e do quadrante”, o mais antigo opúsculo conhecido e impresso com regras náuticas, por onde gerações de pilotos se iniciaram nas ciências da cosmografia e navegação, e que teve uma edição portuguesa, na oficina de Herman de Campos, nos inícios de 1500. Há cem anos que a historiografia portuguesa, partindo da descoberta que Joaquim Bensaúde fez na Biblioteca estatal de Munique, fala apenas desse exemplar e de uma outra versão depositada na Biblioteca Municipal de Évora, desconhecendo o exemplar, em excelente estado de conservação, que se encontra na Vaticana. Quem sabe se uma nova geração de historiadores portugueses se interessará, com o afinco e os meios necessários, em trabalhar os fundos da Biblioteca Apostólica e do Arquivo Secreto Vaticano, tão decisivos também para a explicação de Portugal.
in Semanário Expresso 24.05.2019
https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2430/html/revista-e/que-coisas-sao-as-nuvens/tesouros-portugueses

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À PROCURA DA PALAVRA
P. Vítor Gonçalves
DOMINGO VI DA PÁSCOA Ano C
“O Paráclito, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome
vos ensinará todas as coisas e vos recordará tudo o que Eu vos disse.”
Jo 14, 26
Ensinar e recordar
Partimos cedo para a Praça de S. Pedro. O céu chuvoso e nublado dos últimos dias deu lugar a um azul brilhante, com nuvens brancas de algodão que amenizam a força do sol. O anúncio dos diferentes grupos, que de tantas partes do mundo aqui confluíram, vai desencadeando aclamações. Tem um sabor único ouvir neste areópago do mundo, o nome da terra, da paróquia, do grupo que “veio a Roma para ver o Papa”. E quando “o homem vestido de branco”, que escolheu o nome de Francisco, começa a passar por entre a multidão, parando para beijar as crianças e abençoar os doentes, uma emoção percorre todos os desejam vê-lo e tocá-lo. Imagino como seriam, há dois mil anos, as multidões que desejavam ver e tocar Jesus.

Na humanidade de Jesus ressuscitado encontrarmo-nos com Deus e uns com os outros. Esse encontro manifesta-se na realidade de sermos “morada” de Deus: testemunhamos a sua misericórdia e a nossa fragilidade, o seu perdão que apaga o pecado, a sua ternura que cura as nossas feridas. Como não sentirmos esse encontro no Papa Francisco, na alegria com que tenta levar a todos o sorriso de Deus próximo, a mão afectuosa que abençoa e toca, a palavra que interpela e compromete? Como não saborear aqui a promessa do Espírito Santo que nos recorda e ensina?

Desde a Páscoa de Jesus, o Espírito nunca deixou de vir até nós. Não há lugar para o acomodamento ou a instalação na vida da Igreja. Ficar em “zonas de conforto”, em “condomínios” isolados da história e da realidade, em “seguranças” que só salvam alguns, é fechar as portas ao Espírito. A missão do Espírito de ensinar e recordar não é um trabalho arqueológico, um saudosismo de esplendores do passado, mas sim “beber da fonte”, que é Jesus Cristo, e reconhecer a sua presença no “hoje” da vida do mundo. O Espírito Santo convida-nos a viver em fidelidade e criatividade, com a memória que nos identifica, e com a ousadia que o anúncio evangélico suscita.

Por vezes acontece caminhar com que não conhecemos. Uma meta nos uniu, uma frequência nos desinstalou, e aceitámos o risco de cruzar as nossas vidas uma semana. Se “queremos ir mais longe é preciso ir com outros”, conta um dito africano. Na fonte da fé cristã está o Deus connosco que quis fazer caminho connosco, e o trajecto das nossas vidas alarga-se a todos que acolhemos. Os acasos tornam-se momentos favoráveis, “kairós” em grego, para a surpresa feliz de recebermos o Espírito Santo e nos deixarmos guiar por Ele.
in Voz da Verdade 26.05.2019
http://www.vozdaverdade.org/site/index.php?id=8198&cont_=ver2
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Foi há quatro anos

Na sexta-feira, 24 de Maio, completam-se quatro anos da Encíclica Laudato si’. Numa carta recente, a propósito do evento intitulado “Economia de Francisco”, que se vai realizar em Março de 2020, o Papa escreveu que é preciso «corrigir os modelos de crescimento» e concretizar «um modelo económico novo, fruto de uma cultura de comunhão, baseado na fraternidade e na equidade».

É também a 24 de Maio que, em mais de 100 países, os estudantes vão voltar às ruas numa nova greve pelo clima. O jornalista George Montbiot chamou-lhe, no The Guardian, “greve mundial pelo futuro”, afirmando que «a crise ambiental tem revelado é que o crescimento sem limites é a maior ameaça ao nosso bem-estar».

Nesta altura, destacamos especialmente duas das novidades que apresentamos abaixo.

Por ocasião da celebração do Pentecostes, no dia 6 de Junho, vamos realizar uma caminhada orante, para a qual deixamos aqui o convite a todos. Será no jardim do Seminário da Luz, em Lisboa, pelas 21h00. Passe palavra, venha participar, contamos consigo.

Ao longo deste ano, em colaboração com a rede Cuidar da Casa Comum, a revista Mensageiro de Santo António tem vindo a publicar uma série de artigos sobre a Laudato Si’ e a ecologia integral. Os artigos também podem ser lidos no nosso site.
in Cuidar da Casa Comum
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Photo exhibition celebrates 25 years of female priests
Images of 12 women from Southwark diocese capture variety of a priest’s work
by Harriet Sherwood Religion correspondent

Joyce Forbes looks after her grandson five days a week and campaigns for affordable housing. Susie Simpson absorbs the anger and pain of young men locked up in prison. Helen Harknett fights for social justice and LGBTI inclusion. At 92, Ann Gurney lives quietly these days.

The link between these four women is their membership of a growing band: female priests in the Church of England. Along with eight others, they feature in an exhibition of photographs, Here Am I, celebrating this year’s 25th anniversary of women’s ordination. It opens at London’s Oxo Gallery on Wednesday.
According to C of E statistics, there were 5,950 female priests in 2017 – a third of the total. Since 2015, 18 have been appointed bishops (out of a total of 114), including Sarah Mullally, who as bishop of London is the third most senior figure in the church. Last year more than half of those beginning training to become priests were women.

The exhibition, by the photographer Jim Grover, was commissioned by the bishop of Southwark, Christopher Chessun, to showcase the contribution female priests had made in the diocese, which stretches from the River Thames to Gatwick airport.

“I had no idea what I was signing up to,” said Grover, hanging the last photographs a few hours before the exhibition’s opening. “It’s been very challenging, getting to know 12 individuals, gaining their trust, following them across south London. They are truly inspiring, committed, kind, truthful, compassionate people. It’s been a pleasure and a privilege.”

Grover’s photographs capture the extraordinary variety of a priest’s work: praying, preaching, ministering to the sick and dying, weddings, funerals, baptisms – the activities most people think of – but also moments of contemplation, clearing plates, comforting others, even cutting hair.

 Joyce Forbes as a baby
Facebook Twitter Pinterest  Forbes as a baby. Photograph: Jim Grover
Forbes, 67, was ordained as an unpaid minister in 2004 when she was still working as a social worker. “By the time I was ordained, it felt very natural. I thought women priests were the norm, I didn’t realise then the struggle there had been. I wasn’t part of that journey,” she said. “Women bring something different to the priesthood. Women tend to listen more rather than jumping to conclusions. Sometimes you need to just wait before speaking or doing something.”

She came to the UK from Jamaica in 1965 at the age of 13, sent by her parents to live with an aunt in south London in order to get a better education, leaving behind six younger siblings. “I never really thought of myself as part of the Windrush generation then,” she said. Her biggest shock was not the cold, for which she was prepared, but blocks of flats, which she mistook for factories.

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She said the revelations over the past year about the treatment and denial of rights to members of the Windrush generation had been “absolutely shocking. I can’t express how painful it is to me – and it hasn’t even happened to me.”

Forbes takes services at her church in Croydon on two Sundays a month, and fills in at other times when the vicar is away. She’s an active member of a citizen’s group campaigning for affordable housing, and she and her husband look after their youngest grandchild when his mother is at work. Although officially retired, she is as busy as ever, her energy going into “church, family and building a community”.

Simpson was ordained in 2000, and after eight years in traditional ministry she decided to become a prison chaplain. Grover photographed her in Isis prison for young offenders, next to Belmarsh prison. “If they are having a really bad time, they want their mum. Female chaplains find that an open door,” she told Grover.

It took seven years between speaking to her vicar – in a diocese where the bishop was not sympathetic to the idea of female priests – about the possibility of ordination and it actually happening. “I sometimes thought the only women who got through were persistent rather than holy,” she said.

Twenty-five years after the bruising battle over women’s ordination, a small number of C of E parishes – 4% – still opt out of having a female vicar or allowing women to preside at communion.

“There are still pockets of resistance,” said Grover, who returned to his faith a few years ago after a long absence and is now an active member of his church. “Some people just can’t accept. I can’t understand it, but I respect different views.”
 Here Am I is at the Oxo Gallery on the South Bank in London until 2 June.
in The Guardian 22.05.2019

www.theguardian.com/world/2019/may/22/photo-exhibition-celebrates-25-years-of-female-priests?CMP=Share_iOSApp_Other


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19 maio 2019

Crónicas & Homenagem



P / INFO: P / INFO: Crónicas & Homenagem a Frei Francolino Gonçalves, O.P., inovador dos estudos bíblicos.
MULHERS CATÓLICAS EM GREVE
Frei Bento Domingues, O.P.

1. As mulheres sabem que são mais de metade da Igreja católica. Dir-se-á que apenas uma minoria feminista protesta contra o silenciamento que lhes é imposto. Na Igreja, as mulheres que se calem! Não foi nenhuma mulher que o disse e quem o afirmou ainda não tinha passado inteiramente para o Novo Testamento (NT).
Foi apresentado, na UCP, o livro Mulheres diáconos. Passado – Presente – Futuro[1]. Como refere a Introdução, o livro apresenta três tópicos interligados: as mulheres diáconos tal como elas são conhecidas através de documentos históricos; o diaconado, tal como se tornou uma vocação permanente na Igreja contemporânea e aquilo que o futuro das mulheres diáconos poderia vir a ser, se a Igreja restabelecesse a sua tradição de ordenar mulheres para o diaconado. Trata-se de um esforço conjunto que pretende ajudar a Igreja a recuperar a sua tradição passada como meio de construir o seu futuro.
É sabido que o Papa João Paulo II († 2005) nada fez para restaurar o diaconado ordenado das mulheres e o ex-Papa Bento XVI seguiu-lhe o exemplo.
Só em 2016 é que o Papa Francisco começou a agir, convocando uma Comissão de especialistas, seis homens e seis mulheres, para enfrentar esta questão. No final, entregaram um relatório ao Papa Francisco. O principal objectivo da Comissão era estudar as mulheres diáconos na Igreja primitiva. Não está em dúvida a existência de mulheres diáconos. A questão gira em torno das suas funções.
No voo de regresso da viagem apostólica à Bulgária e à Macedónia do Norte (07. 05. 2019), o Papa revelou, com algum humor, que a comissão trabalhou durante quase dois anos. Eram todos diferentes, todos «rãs de lagos diferentes», todos pensavam de forma diferente, mas trabalharam juntos e chegaram a acordo até um certo ponto. Mas, cada um deles tem a sua própria visão, que não concorda com a dos outros, e pararam aí como comissão. Cada um está a estudar como prosseguir. Isso é bom! Varietas delectat.
A variedade deleita, mas não deve servir para passatempo de diletantes. As mulheres católicas, na Alemanha, já não suportavam mais conversa vazia e resolveram entrar em greve. Foi convocada para esta semana, entre sábado passado, dia 11, e o próximo, dia 18 de Maio. Deixaram lenços brancos nos bancos das Igrejas e, no exterior, nas praças e nos adros, houve celebrações, partilha, canto, mulheres vestidas de branco.
Com todas as cautelas eclesiásticas, o porta-voz da Conferência Episcopal Alemã, Mathias Kopp, em declarações a uma cadeia de TV, em Roma, já acusou o toque. Veremos o que irão fazer…
Os bispos alemães anunciaram que vão abrir um sínodo de diálogo com alargada participação de todos e todas, sem temas-tabu. Veremos, como diz o cego[2].
2. Na história da Igreja, desde o NT, há sempre que investigar, mas não é preciso esperar o fim do mundo para decidir. S. Paulo esperava-o para muito breve. As comunidades cristãs, na sua variedade, sentiram que este mundo é o lugar de testemunhar e seguir o caminho aberto por Jesus de Nazaré. Daí surgiram as narrativas de S. Marcos, S. Mateus, S. Lucas e S. João. São razoavelmente diferentes, reflectindo situações diversas, mas todas com o mesmo objectivo: o seguimento criativo de Jesus em todas as situações da vida.
Quando, na Eucaristia, se diz Fazei isto em memória de Mim, não é porque Jesus tivesse receio de ser esquecido. Significa, pelo contrário, continuai o Evangelho. O Pentecostes indica, precisamente, não fiqueis a olhar para o ar, ide por todo o mundo e inventai o futuro na linha inaugurada pelo Nazareno, porque o espírito dele e o dos discípulos é o mesmo, igualmente criativo.
Quando, hoje, se discute o lugar das mulheres, na Igreja católica, o que é preciso ter em conta, em primeiro lugar, é a criatividade de Jesus. Para isso é necessário pensar na situação social e religiosa da mulher, quando Ele entra em acção. A expressão usada pelas narrativas evangélicas, nos momentos solenes, dizia tudo em poucas palavras: não contando mulheres e crianças. Estavam lá, mas não contavam. O facto de não falarem delas, na chamada Última Ceia, não significa, necessariamente, que não tivessem participado. Naquela cultura, elas não contavam. Diz-se, por outro lado, que nunca são chamadas discípulas, no entanto, o vocabulário da realidade do discipulado é-lhes aplicado, muito mais do que aos homens. No Evangelho de Marcos é dito que junto da cruz “também ali estavam algumas mulheres a contemplar de longe, entre elas, Maria de Magdala, Maria, mãe de Tiago Menor e de José, e Salomé, que o seguiam e serviam quando ele estava na Galileia; e muitas outras que tinha subido com Ele a Jerusalém”[3].
3. Seguir e servir é o vocabulário dos discípulos, dos Doze: “Nós seguimos-te”[4]. Implicava deslocar-se com o mestre nas tarefas da evangelização, algo impensável na sociedade em que Jesus cresceu. Quando Marcos diz que as mulheres, que estavam ao pé da cruz, seguiam Jesus, é porque faziam parte do grupo itinerante dos seus discípulos. Seguiram-no desde a Galileia até Jerusalém. Não para executar as tarefas tradicionalmente atribuídas às mulheres, mas para entrarem na sua escola, acolhendo os seus ensinamentos. Elas não podiam estudar a Palavra de Deus. Alguns rabinos diziam que era preferível queimar o livro da Lei a entregá-lo à guarda de uma mulher; quem ensina a Lei à sua filha, ensina-lhe obscenidades; todos os males que existem no mundo entram pelo tempo que os homens perdem a falar com as mulheres[5].
No Evangelho de Lucas, afirma-se que “Jesus ia de cidade em cidade, de aldeia em aldeia, proclamando e anunciando a Boa-Nova do reino de Deus, acompanhavam-no os Doze e algumas mulheres que tinham sido curadas de espíritos malignos e enfermidade: Maria, chamada Madalena, da qual tinham saído sete demónios; Joana, mulher de Cuza, administrador de Herodes; Susana, e muitas outras, que os serviam com os seus bens”[6]. Note-se como o evangelista coloca os Doze e as mulheres num mesmo nível, uma vez que une os dois grupos com a conjunção “e”, que serve para os igualar.
Isto sem falar que, quem evangelizou os Doze, depois da sua traição e da Ressurreição de Cristo, foram as mulheres, a começar por Maria Madalena, segundo os quatro evangelistas[7].
Quando, hoje, se estuda a história para saber o lugar das mulheres na Igreja, esquece-se o essencial: a revolução de Jesus, a memória da sua intervenção que, ainda hoje, entendemos mal.
in Público, 19.05.2019
https://www.publico.pt/2019/05/19/sociedade/opiniao/mulheres-catolicas-greve-1872792


[1] Gary Macy, William T. Ditewig, Phyllis Zagano, Mulheres diáconos. Passado – Presente – Futuro, Paulinas Editora, 2019.
[2] Cf. 7Margens, 14.05.2019
[3] Mc 15, 40-41
[4] Mc 10, 28
[5] Cf. Ariel Álvarez Valdés, Jesus teve discípulas mulheres, in Bíblica 382 (Maio-Junho 2019), 387-392.
[6] Lc 8, 1-3
[7] Cf. A. Cunha de Oliveira, Jesus de Nazaré e as mulheres, Instituto Açoriano de Cultura, Angra do Heroísmo, 2011; José António Pagola, Jesus. Uma abordagem histórica, Gráfica de Coimbra, 2008, cap. 8 Amigo da Mulher
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MOTU PROPRIO ANTI-ABUSOS   
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

1. Muitas vezes me tenho referido aqui, e não só aqui, à tragédia da pedofilia na Igreja. Foram milhares de menores e adultos vulneráveis que foram abusados. Mesmo sabendo que o número de pedófilos é muito superior na família e noutras instituições, a gravidade da situação na Igreja é mais dramática. Por várias razões: as pessoas confiavam na Igreja quase sem condições, o que significa que houve uma traição a essa confiança, e o clero e os religiosos têm responsabilidades especiais. O mais execrável: abusou-se e, a seguir, ameaçou-se as crianças para que mantivessem silêncio, pois, de outro modo, cometiam pecado e até poderiam ir para o inferno. Isto é monstruoso, o cume da perversão. E houve bispos, superiores maiores, cardeais, que encobriram, pois preferiram salvaguardar a instituição Igreja, quando a sua obrigação é proteger as pessoas, mais ainda quando as vítimas são crianças. O Papa Francisco chamou a esta situação “abusos sexuais, de poder e de consciência”. Também diz, com razão, que a base é o “clericalismo”, julgar-se numa situação de superioridade sagrada e, por isso, intocável. Neste abismo, onde é que está a superioridade do exemplo, a única que é legítimo reclamar?
 Felizmente, há hoje um alerta da opinião pública e, por isso, Francisco, em vez de condenar ou atribuir outras intenções aos meios de comunicação social, agradece, pois foi o meio para que também a Igreja acordasse do seu sono sacrílego.
E, aí, Francisco tomou uma iniciativa inédita e histórica, convocando uma Cimeira para o Vaticano, de 21 a 24 de Fevereiro passado. Foi uma Cimeira com 190 participantes, entre os quais 114 Presidentes das Conferências Episcopais de todo o mundo, bispos representando as Igrejas católicas orientais, alguns membros da Cúria, representantes dos superiores e das superioras gerais de ordens e congregações religiosas, alguns peritos e leigos.
O Papa queria, em primeiro lugar, que se tomasse consciência da situação e do sofrimento incomensurável causado, que fica para a vida. E que se tomasse medidas concretas, de tal modo que se pudesse constatar um antes e um depois desta Cimeira verdadeiramente global e representativa da Igreja universal e nos seus vários níveis. Os três dias estiveram sob o lema tríplice: “responsabilidade”, “prestação de contas”, “transparência”. O Papa quer — não se trata de mero desejo — implantar “tolerância zero”.
2. Para implantar essa “tolerância zero” e pôr fim a esta catástrofe na Igreja, foi publicado, no passado dia 9 de Maio, o Motu Proprio (Decreto de iniciativa papal), que entra em vigor no dia 1 de Junho. Nesta Carta Apostólica, com o título “Vos estis lux mundi” (Vós sois a luz do mundo), o Papa Francisco decreta medidas concretas contra a pedofilia na Igreja.
Estas normas contra os abusadores e os encobridores impõem-se, porque, escreve Francisco, “o delito de abuso sexual ofende Nosso Senhor, causa danos físicos, psicológicos e espirituais às vítimas e prejudica a comunidade dos fiéis.”
Os clérigos e religiosos ficam obrigados (não se trata de mera obrigação moral, mas legal) a denunciar os abusos aos superiores, bem como a informá-los sobre as omissões e encobrimentos na sua gestão. Todas as Dioceses do mundo têm a obrigação de criar no prazo de um ano um ou mais sistemas estáveis e de fácil acesso ao público, para que, com facilidade, todos possam apresentar informações sobre abusos sexuais cometidos por clérigos e religiosos e o seu encobrimento. O documento ratifica a obrigação de colaborar com a justiça civil dos países. Aliás, “estas normas aplicam-se sem prejuízo dos direitos e obrigações estabelecidos em cada lugar por leis do Estado, em particular as relativas a eventuais obrigações de informar as autoridades civis competentes”. Para lá do assédio e da violência contra menores (menos de 18 anos) e adultos vulneráveis, o texto inclui a violência sexual e o assédio que provêm do abuso de autoridade, bem como a posse de pornografia infantil e qualquer caso de violência contra as religiosas por parte de clérigos e ainda os casos de assédio a seminaristas ou noviços maiores de idade. Impõe a protecção dos denunciantes e das vítimas: quem denuncia abusos não pode ser objecto de represálias ou discriminação por ter informado; as vítimas e suas famílias serão tratadas com dignidade e respeito e devem receber a devida e adequada assistência espiritual, médica e psicológica; é preciso atender também ao problema das vítimas que no passado foram reduzidas ao silêncio. Estas normas aplicam-se à Igreja universal. Solicita-se vivamente a colaboração dos leigos, que podem ter capacidades e competências que os clérigos não dominam. Evidentemente, reafirma-se o princípio da presunção de inocência da pessoa acusada e o segredo da confissão deve manter-se como inviolável. Como escreve o Papa, “para que estes casos, em todas as suas formas, nunca mais aconteçam, é necessária uma conversão contínua e profunda dos corações, atestada por acções concretas que envolvam todos os membros da Igreja.”
3. Na apresentação do documento esteve também Charles Scicluna, Arcebispo de Malta e Secretário adjunto da Congregação para a Doutrina da Fé, considerado o homem forte do Papa na temática anti-abusos. São suas estas declarações na altura: “Ninguém com responsabilidade na Igreja está acima da lei. Agora temos uma lei universal que determina as etapas fundamentais para a investigação de um membro eclesiástico, Bispo ou Superior Maior, religioso ou religiosa. Acabou a imunidade.”
Já depois da publicação do Motu Proprio, rebentou na Polónia mais um escândalo: um documentário sobre abusos sexuais do clero polaco, com o título “Não digas a ninguém”, abalou a sociedade. A película sobre casos de menores abusados sexualmente por religiosos católicos provocou uma onda de reacções na Polónia, com mais de três milhões de visitas na internet nas primeiras horas que se seguiram à sua publicação. Entre as vítimas está também o testemunho de um homem que foi abusado aos 12 anos pelo sacerdote que foi confessor do ex-presidente polaco e líder histórico do Solidariedade, Lech Walesa.
Estou convicto de que agora se está no caminho certo para acabar com esta chaga terrível na Igreja. Espera-se que, limpa, a Igreja possa ficar mais livre para dar o seu contributo imprescindível no sentido de ajudar a limpar da mesma chaga tantas outras instituições, com a instituição familiar à cabeça, que no mundo infernalizam a vida de inocentes.
in DN, 19.05.2019
www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/anselmo-borges/interior/motu-proprio-anti-abusos--10916222.html?target=conteudo_fechado        
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QUE COISA SÃO AS NUVENS
JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA
O SENTIDO DO CORAÇÃO
A ESCUTA NÃO SE FAZ APENAS COM O OUVIDO EXTERIOR, MAS COM O SENTIDO DO CORAÇÃO
Falta-nos, talvez, descobrir ainda quanto a escuta é um sentido adequado para acolher a complexidade daquilo que a vida é. A verdade é que escutamos tão pouco e, dentre as competências que desenvolvemos vida fora, raramente está a arte de escutar. Na Regra monástica de São Bento há uma expressão essencial, se quisermos perceber como se ativa uma escuta autêntica: “Abre o ouvido do teu coração.” Quer dizer: a escuta não se faz apenas com o ouvido exterior, mas com o sentido do coração. A escuta não é apenas a recolha da malha sonora do discurso. Antes de tudo, é uma atitude que se pode descrever como um inclinar-se para o outro, uma disponibilidade para acolher o dito e o não dito, uma abertura tanto ao entusiasmo do visível como ao seu avesso, à sua dor. O conhecimento de que mais precisamos provém dessa forma de hospitalidade que a escuta representa.

Sabemos que uma árvore que tomba faz mais barulho que uma floresta a crescer. E se um camião se desloca vazio ou com meia carga faz mais rumor do que se for realmente cheio. O vazio pode ser muito ruidoso e a plenitude completamente silenciosa. Um Padre do Deserto contava que a capacidade de escuta de um discípulo era tão grande que conseguia distinguir, à distância de muitos metros, uma agulha a cair. Ora, muitas vezes, nós nem a poucos centímetros somos capazes de ouvir a vida a tombar. A escuta pede, por isso, exercitação e treino. Numa cultura de avalancha como a nossa, ela configura-se como um recuo crítico perante o frenesim das palavras e das mensagens que a todo o minuto nos submergem. Os modelos de vida hoje em vigor são atordoantes, e a única compensação para as nossas existências extenuadas parece ser o entretenimento. Porém, a própria palavra ‘entreter’ fala por si mesma: entreter significa ter ou manter entre, numa espécie de suspensão que nos captura. E a dada altura, nessa terra de ninguém, não vivemos já em lado algum, nem em nós próprios.

Muitas vezes, nós nem a poucos centímetros somos capazes de ouvir a vida a tombar. A escuta pede, por isso, exercitação e treino

Há uma outra história dos ditos e feitos dos Padres do Deserto (Edição Assírio & Alvim, 2004), que dá que pensar. Um mestre tinha doze discípulos e o seu preferido era o que se ocupava da caligrafia. Isso naturalmente gerava problemas aos restantes, que não percebiam aquela predileção. Então o mestre decidiu colocá-los à prova em conjunto. E, um dia, em que estavam todos ocupados a trabalhar, cada um em sua cela, o mestre clama: “Eia, meus discípulos, vinde a mim.” O primeiro que apareceu foi o discípulo calígrafo e só depois, pouco a pouco, chegaram os outros. O mestre levou-os então à cela do calígrafo e disse-lhes: “Vede, ele estava aqui a desenhar a letra ómega e interrompeu o desenho de uma pequena letra para acorrer ao mestre.” Então os discípulos responderam: “Percebemos agora. Amas aquele que verdadeiramente te escuta.”

Mas há, porém, um paradoxo com o qual temos de contar: é que a verdadeira escuta pede que nos tornemos surdos. Diz Evagro Pôntico, um antigo mestre espiritual: “Esforça-te por conservar o teu espírito surdo e só assim poderás rezar.” Que surdez é esta? É aquela que brota do abandono. A nossa escuta é permanentemente interrompida por urgências que se impõem, sobretudo falsas urgências, ficções que nos povoam e barram a experiência essencial. Sempre que a nossa escuta desiste de ir até ao fim, ela desiste de si. Por isso Evagro recomenda: “Torna-te surdo.” A verdade é que se não formos capazes disso, não mergulharemos no silencioso oceano da escuta. Convite paradoxal a se perder para encontrar-se. Teremos de aprender a trocar a potência do ruído pelo murmúrio do silêncio. E a ser como os rebanhos que nos campos seguem o sopro trémulo da flauta do pastor em vez do vento.
in Semanário Expresso, 19.05.2019
https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2429/html/revista-e/que-coisas-sao-as-nuvens/o-sentido-do-coracao
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À PROCURA DA PALAVRA
P. Vítor Gonçalves
DOMINGO V DA PÁSCOA Ano C
“Como Eu vos amei,
amai-vos também uns aos outros.”
Jo 13, 34

Como Ele…
As despedidas nunca são fáceis. Pensar que deixamos de ver pessoas, uma terra, realidades que amamos, abre uma fenda dentro de nós. É como se ficasse um pouco do que somos naquele lugar, naqueles corações. E assim me maravilho com os “discursos da despedida de Jesus” que S. João nos dá no seu Evangelho, ao longo de três capítulos. São palavras que têm um sabor de tesouro, do qual vamos retirando sempre coisas novas e antigas, como o presente de um pequeno “manual de instruções” do essencial para a vida e a missão dos seus discípulos. O mandamento novo do “amai-vos uns aos outros” passa a ter uma medida: “como Eu”! Isto é, sem medida, sem limite, tudo e todo!

 Confundimos facilmente “amar” com “gostar”. E, contudo, trata-se de algo diferente. Quantas vezes lembro Martin Luther King, o pastor protestante norte-americano, defensor dos direitos cívicos dos negros, que dizia: “Eu não consigo gostar de quem vem a minha casa e maltrata a minha família porque somos negros; não consigo gostar dele, mas, porque sou cristão, quero amá-lo.” A radicalidade que Jesus propõe de “amar os inimigos”, não é expressão dessa ultrapassagem do sentimento? Quando se ama, ultrapassamos o “condomínio afectivo” dos amigos, e arriscamos uma universalidade que parece impossível. Que bom, nesse esticar do coração, estarem os que chamamos amigos, mas que sintonia com o coração de Deus quando vamos mais além!

Como Jesus ama de modo universal, não podia propor-nos um viver “a meio-amor”. É o amor sem muros nem fronteiras de qualquer espécie, numa preferência pelos que são periferia de tantos centros (religiosos, e outros tão “bem colocados”), pelos que não contam e são descartáveis, os discriminados e excluídos, os que erraram ou persistem no mal. E é fácil constatar essa universalidade: como Ele, os que assim vivem, também receberão incompreensão e recusa.
  
Como Jesus ama de modo concreto, fazendo de cada um o centro da sua atenção, numa contínua saída de si, não podia oferecer-nos uma “auto-salvação” de consolos espirituais. Pensar primeiro no que pode acontecer ao outro, nas mil possibilidades de o ajudar, como fez o bom samaritano no caminho de Jericó, é o sinal dessa saída. “Se eu penso em mim, tu ficas só, / se eu penso em ti seremos nós”, diz um cântico conhecido. Como Jesus, haverá também vozes que nos chamarão: “amigo de publicanos e pecadores”!
  
Como Jesus ama sem contabilidade nem medida, e não espera retorno, não podia desejar discípulos calculistas e avarentos, de tantas graças que guardam em vez de dá-las gratuitamente. É o amor em abundância da herança desperdiçada, do denário dado a todos, da outra face apresentada, do perdão até “setenta vezes sete”, do céu oferecido ao bom ladrão, do bem que se faz ao que nos fez mal. E como Jesus, as vidas dos que amam assim, incomodando poderes e pondo em causa a ordem pública, encontrarão outras tantas crucifixões.
  
“Como Ele…” parece impossível, mas “com Ele” já descobrimos esse amor na vida de tantos!
in Voz da Verdade, 19.05.2019
http://www.vozdaverdade.org/site/index.php?id=8170&cont_=ver2
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Francolino Gonçalves, inovador dos estudos bíblicos, homenageado em simpósio
António Marujo | 19 Maio 19
Frei Francolino Gonçalves. Foto © Luís Filipe Santos/Agência Ecclesia

 Um simpósio internacional que pretende homenagear o trabalho de frei Francolino Gonçalves, frade dominicano, destacado estudioso do Antigo Testamento na Escola Bíblica e Arqueológica Francesa (EBAF) de Jerusalém, e “um dos maiores teólogos portugueses de sempre”, decorrerá em Lisboa nos próximos dias 20 a 22 (segunda a quarta-feira da próxima semana).

Este é um projecto nascido “da amizade” e da admiração científica de duas colegas e amigas de frei Francolino, explica ao 7MARGENS Ana Valdez, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL) e uma das responsáveis pela iniciativa.

Francolino Gonçalves inovou os estudos bíblicos, com o seu contributo acerca dos dois Yhaweh, as duas representações de Deus na Bíblia: o Deus vingativo e destruidor, de um lado, o Deus bondoso do outro. “Esta é uma caracterização simplista”, diz Ana Valdez, mas muitas vezes as diferentes visões de Deus encontram-se a par no mesmo texto.

A responsável pela organização do simpósio acrescenta que há em Portugal um problema: quem apenas ouve leituras de trechos bíblicos nas missas de domingo “não conhece a Bíblia, apesar de estarmos numa sociedade tradicionalmente católica”. Pelo contrário, no universo protestante conhecem-se os conceitos, a linguagem, a evolução dos mesmos e as diferentes mãos que construíram o texto. Por isso, acrescenta, é importante conhecer a forma como o texto bíblico é escrito quando passa da oralidade ou as influências externas que recebe.

Esse percurso cultural acaba por ter influência no desenvolvimento dos conceitos sobre Yhaweh, explica Ana Valdez. No início, a Bíblia (os textos do Antigo Testamento, grosso modo, da Bíblia judaica) era um texto falado. Com a passagem a escrito, a diversidade narrativa ganha forma. E foi esse processo que Francolino Gonçalves estudou, inovando de forma decisiva os estudos bíblicos contemporâneos.

Projecto nascido da amizade
“Desde a morte de frei Francolino que pensávamos organizar alguma iniciativa”, diz Ana Valdez, que também foi aluna do frade dominicano português. Em conjuntocom Claudine Dauphin, da Universidade de Gales, a investigadora portuguesa, investigadora principal do Centro de História da FLUL mobilizou outros colegas académicos, investigadores e amigos de Francolino Gonçalves para pôr de pé o simpósio que agora decorrerá em Lisboa, assinalando também uma os dois anos da morte de frei Francolino, a 15 de Junho de 2017.

Quando diz que o projecto nasce da amizade, Ana Valdez está a ser muito concreta: o simpósio realiza-se porque cada participante paga as duas despesas, ficando os alojamentos distribuídos por casas religiosas, já que foi impossível encontrar financiamento para a iniciativa.

O simpósio conta com intervenções de duas dezenas de destacados investigadores portugueses e estrangeiros, todos eles colegas nas áreas que o dominicano português investigou. Entre eles, Thomas Thompson, americano que vive em Copenhaga, que investigou a toponímia israelo-palestinense; Émile Puech, Julio Trebolle Barerra e Florentino García Martínez, especialistas na história bíblica e nos manuscritos do Mar Morto; vários dos investigadores da EBAF, entre os quais Paolo Garuti, que sucedeu a frei Francolino na direcção da revista e da colecção de monografias da EBAF; e ainda nomes outros como Frédéric Manns (autor de Maria, Uma Mulher Judia, por exemplo) ou Ingrid Hjelm.

De Trás-os-Montes a Jerusalém
Nascido em 28 de Março de 1943 em Corujas (Macedo de Cavaleiros), Francolino Gonçalves fez a sua primeira profissão religiosa como dominicano em 1960 e foi ordenado padre em 1968. Trabalhou durante quatro décadas na EBAF de Jerusalém, para onde foi como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, em 1969.Exerceu vários cargos naquele centro de investigação, um dos mais importantes do mundo na área dos estudos bíblicos, nomeadamente na vertente arqueológica.

Manteve sempre, no entanto, a ligação a Portugal, onde voltava por períodos largos, quase todos os anos, para orientar, coordenar ou participar em programas de pós-graduação portugueses, primeiro em História Antiga e depois em História e Cultura das Religiões, na Universidade de Lisboa, na Universidade Católica Portuguesa e na Universidade Nova de Lisboa.

No seu trabalho, procurava tornar acessível a mensagem bíblica  a todos os públicos, distinguindo as intervenções que fazia em função do público que o escutava ou lia. Também se distinguiu na forma como ajudou a formar gerações de estudantes na área da Bíblia e da teologia.

Tendo em conta precisamente as suas ligações a diferentes instituições universitárias, o simpósio decorre em diferentes locais: Faculdade de Letras da UL (dia 20 de Maio, anfiteatro III), Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova (dia 21, auditório I, torre B), e Convento Dominicano de São Domingos de Lisboa (dia 22).
in 7Margens,
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