Como ainda era cedo para chegar aonde ia, subi a pé aquela parte da cidade onde sempre se passa depressa. No meio do bulício matinal e tendo o ar fresco da manhã como after shave, chamou-me a atenção um intenso brilho amarelo. Iluminada pelo sol nascente, a Maternidade Alfredo da Costa (MAC), em Lisboa, mostrava o seu discreto esplendor entre elevados edifícios sem pátria. Depois de reconfortado com o sabor e o aroma de um café, olhei durante alguns minutos para aquela fachada tentando imaginar a azáfama por dentro da visível serenidade exterior. Quantas histórias por detrás daquelas janelas onde o sol reflectia intensamente! Certamente muitas histórias clínicas e humanas, com a diversidade correspondente. Profundas, intensas, umas com humor, outras dramáticas, histórias de vidas vistas e ouvidas com a atenção possível dentro da concentração necessária. Provavelmente um dos lugares onde se revela de modo especial a singularidade e a diversidade do ser humano e da sociedade. Um espaço onde poderá acontecer o que é tido como normal (como o nascer do sol), ou o que é visto como raro, excepcional, diferente, o melhor e o pior de uma sociedade, as suas fragilidades e esperanças, as suas forças e fraquezas. Num espaço assim poderão conviver vários estratos sociais, desde “o muito bem” ao “zé-ninguém”, várias culturas, raças, etnias, faixas etárias, muitas e diferentes maneiras de viver e sentir aquilo que ali se trata e cuida. Pelo que fui lendo há uns tempos, num período de luta aberta em defesa da MAC, pude compreender que quem lá trabalha ou trabalhou não fica indiferente e fica diferente. Sente-se vir dali uma energia positiva que congrega e em momentos difíceis vem ao de cima. Parece haver naquela casa qualquer coisa de família, com pertenças e laços consolidados. Uma família que nos últimos tempos se sente ameaçada. Inicialmente, pensando que não eram mais do que boatos, não reagiu continuando com naturalidade as suas vivências e exigências. O tempo encarregou-se de mostrar a consistência do que se falava. Acordados, em Semana Santa, ficaram vigilantes e reagiram com a força e a consciência do valor do seu trabalho e a energia dos laços de uma verdadeira família. Trabalho que, à mercê de razões económicas e outras mais obscuras, iria ser apagado, desmembrado, fragmentado. E aquela família, plural e multidisciplinar, sabe que o que bem faz é o resultado de uma forma de estar e actuar apurada pelo tempo, pela formação e pelas múltiplas e muitas experiências que o terreno fértil proporciona. Nem a angústia e a tristeza do fim que se anunciava (de alguma forma paralelas às de Jesus no Jardim das Oliveiras, que nesses dias se liam) os impediu de reagir. E vigiaram porque sentiam que talvez nem tudo estivesse consumado. Entre uma opinião pública de alguns indiferentes, outros críticos, muitos se uniram à sua causa. Os argumentos dos afectos e os da razão. Alguns chamaram-lhe jóia da coroa, outros, útero urbano, destacando as qualidades técnicas e científicas reconhecidas além-fronteiras. Outros ainda, não sabendo dizer melhor, simplesmente evocavam que um lugar de bem nascer não deveria morrer. Aquela casa é para muitos a gruta do seu presépio. E, logo após o anúncio da Ressurreição, uniram as mãos e os laços, num abraço simbólico em redor do que queriam e deviam proteger. Um cordão humano onde emanava a energia da esperança e a voz do que não podiam calar. Depois vieram as flores, e com elas se construiu o logotipo da instituição. Muitas vidas quereriam ainda florescer neste jardim da diversidade. Algum tempo depois, no dia 1 de Junho, dia da Criança, mais uma demonstração digna de nota: o lançamento de 2.000 balões representando os nascimentos já havidos este ano. No início da tarde, as janelas da fachada começaram a ficar adornadas com grupos de balões cor-de-rosa e azuis. Apesar das incertezas sobre o destino daquela casa, é notável a determinação em que tudo continue a funcionar com normalidade como se a saída do conflito fosse um lançamento de balões. Não por festiva inconsciência, mas pela satisfação de um bom desempenho profissional como se não houvesse fim. A meio da tarde as janelas e o gradeamento da entrada principal estavam enfeitados como se pretendia. No interior, utentes e profissionais estavam preparados para cortarem os fios quando o sinal fosse dado. Do lado de fora algumas dezenas de amigos, trabalhadores da MAC e também crianças, seguravam os seus balões. Por volta das oito, após contagem decrescente, lá partiram eles como notícias de uma festa e de uma causa. Foi bonito vê-los subir na brisa morna do entardecer, a voar como sorrisos de esperança, apoiados por uma orquestra de buzinas dos muitos carros que ali passavam. No dia seguinte aquela fachada continuou a ser iluminada pelo sol nascente.
frei matias, op
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