Sabemos que um dia virá para cada um. Duas faces da mesma moeda; de um lado a vida e do outro a morte. Indissociáveis estes dois lados mas parece que apenas olhamos para uma das faces, a da vida. É cultural, sem dúvida, evitarmos falar naquela face oculta.
No entanto confrontamo-nos permanentemente com ela. Morremos um pouco cada dia que passa e saboreamos a vida de outro modo; crescer ou envelhecer é amadurecer, humanizarmo-nos um pouco mais, e quando estivermos mais próximos de sermos capazes de um amor infinito e desinteressado estaremos prontos para sermos acolhidos pela fonte de todo o Amor que é o nome de Deus.
Há gente que evita tanto a palavra “morreu” que diz sempre eufemisticamente “partiu”. Subentenda-se partiu para o Pai, partiu para a eternidade, partiu desta para melhor, no dizer do povo.
Lembro-me de uma amiga que vivia em Lisboa e foi viver para o Porto, vivendo e trabalhando entre as duas cidades em circulação permanente. Um dia um amigo comum disse-me com um ar consternado; “ela partiu” e eu perguntei ingenuamente “outra vez para o Porto?” ao que ele me respondeu indignado com a minha questão; “Não, morreu!”
Agora cada vez que oiço dizer que alguém partiu, olho bem para a cara de quem mo diz; se está triste ou preocupado sei que significa que alguém morreu, se está de sorriso aberto quer dizer que a pessoa em causa partiu para férias ou coisa assim.
A morte dos outros faz cortes violentos e deixa uma saudade infinita, uma parte de nós morre com essa saudade de um definitivo “nunca mais”, de um “adeus” sem retorno.
Vidas ceifadas antes do que nós consideraríamos o tempo certo. Recentemente sentimos isso de modo particular quando o Bernardo Sassetti morreu e pouco antes quando o Miguel Portas morreu depois de lutar contra um cancro devastador. Nenhum deles tinha “idade para morrer”, entre os quarenta e os cinquenta e picos não é a “idade” adequada nem de acordo com as estatísticas, nem no nosso quadro mental e sensibilidade.
Olhando um pouco o que foi a vida deles, sabemos que deixaram uma marca insubstituível no mundo, independentemente de podermos concordar ou não com algumas das respetivas opções, as duas vidas foram cheias de busca pela beleza e pela justiça, e isso expressou-se em gestos de amor concreto de cuidado pelos outros. Provavelmente estavam prontos para sair fora da finitude do tempo e serem acolhidos numa dimensão misteriosa a que chamamos eternidade.
Recentemente conversei longamente sobre a questão da morte com uma pessoa que tem mais de 90 anos. Tem consciência de que estatisticamente já ultrapassou o tempo de vida previsto e cada dia é uma vitória sobre o fatal momento de que tem um medo terrível. Direi mesmo um medo infantil. Mas medo de quê afinal? Confessou-me que tem medo do Juízo Final. Terá sido suficientemente boa pessoa?
Realmente é um dado a ter em conta, e é uma questão pertinente. A nossa experiência humana diz-nos que ninguém gosta de ir a tribunal ou de fazer exames, mesmo se ultrapassa esses momentos com sucesso. Sendo neste caso o juiz divino e não humano, confio que terá em conta muito mais vertentes do que as simples leis humanas ou eclesiais que teremos certamente transgredido.
Com uma vida longa cheia de missas, terços, primeiras sextas-feiras e de primeiros-sábados, entre outras devoções, já deve ter acumulado a quantidade de indulgências no sistema “bancário” instituído pela piedade do catolicismo tradicional a que Lutero reagiu com vigor e bastante razão.
Espanta-me pois que o Papa Bento XVI, à imagem do seu antecessor, continue a distribuir indulgências como se nada fosse. Ir a Madrid no ano passado às jornadas mundiais da juventude ou ir agora ao encontro mundial de famílias, desde que incluam uma confissão, missa e comunhão dão direito a mais “créditos” na hora da morte, depositados numa conta “off-shore” com sede no paraíso!
Será uma preocupação pastoral com as pessoas idosas que têm medo da morte? Suspeito que não seja bem isso mas apenas a reciclagem de tradicionalismos devocionais incluídos no chamado programa de Nova Evangelização.
Em vez destes investimentos em indulgências, é capaz de ser mais fácil quando nos confrontamos com a nossa mortalidade procurarmos rever as obras de misericórdia e verificar se fizemos o investimento correto em “ações” de amor ao próximo.
E se a fé nos ensina que o Amor de Deus é infinito devemos aprender a confiar em Deus sempre, incluindo o momento fatal da “hora da nossa morte. Amém!”
Ora, como ainda estamos vivos temos todo o tempo necessário para aprender a amar o próximo, do primeiro ao último dia da nossa vida, seja ela breve ou longa.
A dificuldade não é pois a morte, o difícil é viver!
AFF
27-05-2012
No entanto confrontamo-nos permanentemente com ela. Morremos um pouco cada dia que passa e saboreamos a vida de outro modo; crescer ou envelhecer é amadurecer, humanizarmo-nos um pouco mais, e quando estivermos mais próximos de sermos capazes de um amor infinito e desinteressado estaremos prontos para sermos acolhidos pela fonte de todo o Amor que é o nome de Deus.
Há gente que evita tanto a palavra “morreu” que diz sempre eufemisticamente “partiu”. Subentenda-se partiu para o Pai, partiu para a eternidade, partiu desta para melhor, no dizer do povo.
Lembro-me de uma amiga que vivia em Lisboa e foi viver para o Porto, vivendo e trabalhando entre as duas cidades em circulação permanente. Um dia um amigo comum disse-me com um ar consternado; “ela partiu” e eu perguntei ingenuamente “outra vez para o Porto?” ao que ele me respondeu indignado com a minha questão; “Não, morreu!”
Agora cada vez que oiço dizer que alguém partiu, olho bem para a cara de quem mo diz; se está triste ou preocupado sei que significa que alguém morreu, se está de sorriso aberto quer dizer que a pessoa em causa partiu para férias ou coisa assim.
A morte dos outros faz cortes violentos e deixa uma saudade infinita, uma parte de nós morre com essa saudade de um definitivo “nunca mais”, de um “adeus” sem retorno.
Vidas ceifadas antes do que nós consideraríamos o tempo certo. Recentemente sentimos isso de modo particular quando o Bernardo Sassetti morreu e pouco antes quando o Miguel Portas morreu depois de lutar contra um cancro devastador. Nenhum deles tinha “idade para morrer”, entre os quarenta e os cinquenta e picos não é a “idade” adequada nem de acordo com as estatísticas, nem no nosso quadro mental e sensibilidade.
Olhando um pouco o que foi a vida deles, sabemos que deixaram uma marca insubstituível no mundo, independentemente de podermos concordar ou não com algumas das respetivas opções, as duas vidas foram cheias de busca pela beleza e pela justiça, e isso expressou-se em gestos de amor concreto de cuidado pelos outros. Provavelmente estavam prontos para sair fora da finitude do tempo e serem acolhidos numa dimensão misteriosa a que chamamos eternidade.
Recentemente conversei longamente sobre a questão da morte com uma pessoa que tem mais de 90 anos. Tem consciência de que estatisticamente já ultrapassou o tempo de vida previsto e cada dia é uma vitória sobre o fatal momento de que tem um medo terrível. Direi mesmo um medo infantil. Mas medo de quê afinal? Confessou-me que tem medo do Juízo Final. Terá sido suficientemente boa pessoa?
Realmente é um dado a ter em conta, e é uma questão pertinente. A nossa experiência humana diz-nos que ninguém gosta de ir a tribunal ou de fazer exames, mesmo se ultrapassa esses momentos com sucesso. Sendo neste caso o juiz divino e não humano, confio que terá em conta muito mais vertentes do que as simples leis humanas ou eclesiais que teremos certamente transgredido.
Com uma vida longa cheia de missas, terços, primeiras sextas-feiras e de primeiros-sábados, entre outras devoções, já deve ter acumulado a quantidade de indulgências no sistema “bancário” instituído pela piedade do catolicismo tradicional a que Lutero reagiu com vigor e bastante razão.
Espanta-me pois que o Papa Bento XVI, à imagem do seu antecessor, continue a distribuir indulgências como se nada fosse. Ir a Madrid no ano passado às jornadas mundiais da juventude ou ir agora ao encontro mundial de famílias, desde que incluam uma confissão, missa e comunhão dão direito a mais “créditos” na hora da morte, depositados numa conta “off-shore” com sede no paraíso!
Será uma preocupação pastoral com as pessoas idosas que têm medo da morte? Suspeito que não seja bem isso mas apenas a reciclagem de tradicionalismos devocionais incluídos no chamado programa de Nova Evangelização.
Em vez destes investimentos em indulgências, é capaz de ser mais fácil quando nos confrontamos com a nossa mortalidade procurarmos rever as obras de misericórdia e verificar se fizemos o investimento correto em “ações” de amor ao próximo.
E se a fé nos ensina que o Amor de Deus é infinito devemos aprender a confiar em Deus sempre, incluindo o momento fatal da “hora da nossa morte. Amém!”
Ora, como ainda estamos vivos temos todo o tempo necessário para aprender a amar o próximo, do primeiro ao último dia da nossa vida, seja ela breve ou longa.
A dificuldade não é pois a morte, o difícil é viver!
AFF
27-05-2012
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