1. Estava adormecida a memória da turbulência que Angelo G. Roncalli (1881-1963) – um pobre camponês italiano – provocou no mundo, quando, inesperadamente, o Movimento Internacional “Nós Somos Igreja” resolveu revisitar as datas que romperam, durante algum tempo, com a ideologia que justificava a Igreja Católica como monarquia absoluta. Embora com dezenas de anos a refazer-se desse susto, os debates sobre o Vaticano II regressaram. Por razões diferentes, ninguém quer ficar para trás. Mesmo em Portugal, multiplicaram-se os colóquios, as conferências e as publicações de todo o género.
O que terá levado o Conclave dos Cardeais, de Outubro de 1958, a escolher um camponês para a liderança da Igreja Católica? A hipótese mais divulgada é a seguinte: o consenso para a escolha do novo Papa tornara-se cada vez mais difícil. O cardeal Roncalli estava velho, doente e não tinha nenhum gosto pelos conflitos. Dada a sua idade, era uma escolha de transição pacífica, até se encontrar uma figura marcante, digna de suceder a Pio XII, que sabia tudo e estava preparado para falar de tudo.
J. Cornwell nota que ele dava lições aos grupos de visitantes sobre temas tão diversos como odontologia, ginástica, ginecologia, aeronáutica, cinematografia, psicologia, psiquiatria, agricultura, cirurgia plástica ou sobre a arte de ouvir as notícias pela rádio. O grande teólogo dominicano e o maior eclesiólogo do século XX, Yves Congar, escrevia à sua mãe, em Setembro de 1956: “O papa actual, sobretudo a partir de 1950, desenvolveu, de forma obcecada, um regime paternalista em que ele, e só ele, diz ao mundo e a cada um o que é preciso pensar e como actuar. Pretende reduzir os teólogos ao papel de comentadores dos seus discursos, sem que possam ter a veleidade de pensar algo, de ter qualquer iniciativa fora dos limites desse comentário: excepto, repito, numa margem muito estreita, perfeitamente delimitada e vigiada, acerca de problemas sem consequências”.
2. Dir-se-ia que o camponês eleito papa, diante de tanto saber e autoridade, teria de se reduzir à sua insignificância. Puro engano. A 25 de Janeiro de 1959 espantou o mundo inteiro. Anunciou, da forma mais breve possível, um novo concílio ecuménico. Seguiu-se uma fase preparatória e a 25 de Dezembro de 1961 fez a convocatória oficial. A 11 de Outubro de 1962 realizou-se a abertura solene do 21º concílio ecuménico. A 8 de Dezembro foi encerrada a primeira sessão regozijando-se o papa com o clima de liberdade que nela se viveu.
A 3 de Junho de 1963 morre João XXIII. Não morreu o concílio. Prosseguiu com Paulo VI até 8 de Dezembro de 1965, com um estilo muito diferente.
José Mª Castillo, autor de uma vasta obra teológica, veio a Lisboa, a convite do Nós Somos Igreja e fez uma conferência, no Convento de S. Domingos, sobre a situação da Igreja antes, durante e depois do Concílio. Defendeu a seguinte tese: a Igreja, como está, não é de fundação divina. Não pertence a Jesus o modelo de uma monarquia absoluta. Tentou mostrar como é que isto aconteceu. Foi possível desenhar, no Vaticano II, uma eclesiologia nova. Continua, no entanto, a reflectir os contrastes que existiam entre os padres conciliares, permitindo, por isso, leituras pouco convergentes. O modelo piramidal foi abalado, mas recuperou depois, através do chamado poder absoluto e universal de ”jurisdição” do papa, inspirado nas concepções jurídicas de B. Sassoferrato (séc. XIV). Como a reforma da Cúria romana não foi realizada e enfraquecido o exercício da colegialidade dos bispos, regressou-se ao modelo da monarquia absoluta, ao poder absoluto do papa, embora, por vezes, não se saiba se é o papa que manda ou a cúria que ele mantém. Saem prejudicados os direitos humanos, no interior da Igreja.
3. Segundo o costume mais antigo da Igreja, isto é, da assembleia cristã, o direito e a autoridade não residiam só na hierarquia. Nos primeiros tempos, quando havia problemas, era dada a palavra a todos para a sua solução. Ainda em meados do século III, Cipriano, bispo de Cartago, escrevia: desde o princípio do meu episcopado determinei não tomar nenhuma resolução, por minha conta, sem o vosso conselho e o consentimento do meu povo. Esta prática era observada na nomeação dos bispos e papas. S. Leão Magno (séc. V) disse com precisão: aquele que deve ser posto à cabeça de todos deve ser eleito por todos. De forma mais taxativa, o papa Celestino I estabeleceu a norma que, no séc. XI, voltou a ser recolhida no Decreto de Graciano: Não se imponha nenhum bispo àqueles que o não aceitem; deve requerer-se o consentimento do clero e do povo.
É pena que os bons costumes estejam esquecidos. Continuam a pertencer-nos. Procurar incarná-los numa democracia que também tem de ser refeita, não me parece que seja grande heresia. O contrário é que não me parece nada ortodoxo.
Frei Bento Domingues, o.p.
in Público de 28.10.2012