28 outubro 2012

JÁ CHEGA DE CONCÍLIO?

1. Estava adormecida a memória da turbulência que Angelo G. Roncalli (1881-1963) – um pobre camponês italiano – provocou no mundo, quando, inesperadamente, o Movimento Internacional “Nós Somos Igreja” resolveu revisitar as datas que romperam, durante algum tempo, com a ideologia que justificava a Igreja Católica como monarquia absoluta. Embora com dezenas de anos a refazer-se desse susto, os debates sobre o Vaticano II regressaram. Por razões diferentes, ninguém quer ficar para trás. Mesmo em Portugal, multiplicaram-se os colóquios, as conferências e as publicações de todo o género.
O que terá levado o Conclave dos Cardeais, de Outubro de 1958, a escolher um camponês para a liderança da Igreja Católica? A hipótese mais divulgada é a seguinte: o consenso para a escolha do novo Papa tornara-se cada vez mais difícil. O cardeal Roncalli estava velho, doente e não tinha nenhum gosto pelos conflitos. Dada a sua idade, era uma escolha de transição pacífica, até se encontrar uma figura marcante, digna de suceder a Pio XII, que sabia tudo e estava preparado para falar de tudo.
J. Cornwell nota que ele dava lições aos grupos de visitantes sobre temas tão diversos como odontologia, ginástica, ginecologia, aeronáutica, cinematografia, psicologia, psiquiatria, agricultura, cirurgia plástica ou sobre a arte de ouvir as notícias pela rádio. O grande teólogo dominicano e o maior eclesiólogo do século XX, Yves Congar, escrevia à sua mãe, em Setembro de 1956: “O papa actual, sobretudo a partir de 1950, desenvolveu, de forma obcecada, um regime paternalista em que ele, e só ele, diz ao mundo e a cada um o que é preciso pensar e como actuar. Pretende reduzir os teólogos ao papel de comentadores dos seus discursos, sem que possam ter a veleidade de pensar algo, de ter qualquer iniciativa fora dos limites desse comentário: excepto, repito, numa margem muito estreita, perfeitamente delimitada e vigiada, acerca de problemas sem consequências”.
2. Dir-se-ia que o camponês eleito papa, diante de tanto saber e autoridade, teria de se reduzir à sua insignificância. Puro engano. A 25 de Janeiro de 1959 espantou o mundo inteiro. Anunciou, da forma mais breve possível, um novo concílio ecuménico. Seguiu-se uma fase preparatória e a 25 de Dezembro de 1961 fez a convocatória oficial. A 11 de Outubro de 1962 realizou-se a abertura solene do 21º concílio ecuménico. A 8 de Dezembro foi encerrada a primeira sessão regozijando-se o papa com o clima de liberdade que nela se viveu.
A 3 de Junho de 1963 morre João XXIII. Não morreu o concílio. Prosseguiu com Paulo VI até 8 de Dezembro de 1965, com um estilo muito diferente.
José Mª Castillo, autor de uma vasta obra teológica, veio a Lisboa, a convite do Nós Somos Igreja e fez uma conferência, no Convento de S. Domingos, sobre a situação da Igreja antes, durante e depois do Concílio. Defendeu a seguinte tese: a Igreja, como está, não é de fundação divina. Não pertence a Jesus o modelo de uma monarquia absoluta. Tentou mostrar como é que isto aconteceu. Foi possível desenhar, no Vaticano II, uma eclesiologia nova. Continua, no entanto, a reflectir os contrastes que existiam entre os padres conciliares, permitindo, por isso, leituras pouco convergentes. O modelo piramidal foi abalado, mas recuperou depois, através do chamado poder absoluto e universal de ”jurisdição” do papa, inspirado nas concepções jurídicas de B. Sassoferrato (séc. XIV). Como a reforma da Cúria romana não foi realizada e enfraquecido o exercício da colegialidade dos bispos, regressou-se ao modelo da monarquia absoluta, ao poder absoluto do papa, embora, por vezes, não se saiba se é o papa que manda ou a cúria que ele mantém. Saem prejudicados os direitos humanos, no interior da Igreja.
3. Segundo o costume mais antigo da Igreja, isto é, da assembleia cristã, o direito e a autoridade não residiam só na hierarquia. Nos primeiros tempos, quando havia problemas, era dada a palavra a todos para a sua solução. Ainda em meados do século III, Cipriano, bispo de Cartago, escrevia: desde o princípio do meu episcopado determinei não tomar nenhuma resolução, por minha conta, sem o vosso conselho e o consentimento do meu povo. Esta prática era observada na nomeação dos bispos e papas. S. Leão Magno (séc. V) disse com precisão: aquele que deve ser posto à cabeça de todos deve ser eleito por todos. De forma mais taxativa, o papa Celestino I estabeleceu a norma que, no séc. XI, voltou a ser recolhida no Decreto de Graciano: Não se imponha nenhum bispo àqueles que o não aceitem; deve requerer-se o consentimento do clero e do povo.
É pena que os bons costumes estejam esquecidos. Continuam a pertencer-nos. Procurar incarná-los numa democracia que também tem de ser refeita, não me parece que seja grande heresia. O contrário é que não me parece nada ortodoxo.
Frei Bento Domingues, o.p.
in Público de 28.10.2012

25 outubro 2012

IMPOR OU SERVIR?

1. O Prémio Nobel da Paz de 2012 foi atribuído à Europa, cuja população é de 500 milhões de cidadãos. Vem, como é normal, justificado: A União e os seus precursores têm contribuído, há mais de seis décadas, para o avanço da reconciliação, da democracia e dos direitos humanos. O papel estabilizador da UE ajudou a transformar a maior parte da Europa de um continente de guerra num continente de paz.
Embora o seu comportamento, sobretudo em relação ao Médio Oriente, por acções e omissões, continue a ser desastroso, o prémio celebra um processo interno notável que, por desgraça, tem vindo a ser gravemente traído. Quando os actuais dirigentes políticos parecem ter perdido a memória, o juízo e a decência, este prémio poderá ser interpretado como um alerta solene: não deitem a perder, com políticas mesquinhas, esquecidas da “fraternidade entre as nações”, um património de esperança.
Por outro lado, o culto das guerrilhas económicas e financeiras nunca poderá ser fonte de paz. As lógicas imperiais sempre precisaram de vítimas, sejam elas as seguidas pelo mundo ocidental, sejam as praticadas pela China, cada vez menos misteriosa.
Naquilo que imediatamente nos toca, não sei se chegaremos a conhecer a rede e o percurso dos interesses de todos os intervenientes – visíveis e invisíveis – com um resultado que violenta as pequenas empresas, os trabalhadores, os pensionistas e entrega a massa dos desempregados às reacções do desespero. Mas a insistência no caminho do quanto pior melhor, depois de todos os avisos, talvez não seja um jogo inocente. Não é, pelo menos, o caminho mais inteligente e virtuoso.
2. Para os eurocépticos, a própria ideia de UE não passou de mais uma utopia destinada à falência, fruto de um voluntarismo descontrolado pela memória dos horrores de duas guerras mundiais.
Talvez não tenha sido voluntarismo cego, mas alta lucidez. Não bastava dizer “guerra nunca mais”. Era preciso imaginar e percorrer os caminhos que, passo a passo, constroem a paz. Nenhum futuro desejado está, porém, garantido à partida. A vigilância activa de todo o processo é a condição para não confundir a utopia com o delírio.
O desejo e a imaginação são fontes de mudança, mas também de instabilidade e sofrimento. Buda, ao adoptar o longo processo interior de desapego do seu próprio eu, atingiu a “iluminação”, pois ficou a saber o que é o sofrimento, de onde vem, como pode ser superado e o caminho para o superar. Não é pouco.
O caminho de Jesus tem pontos de contacto com o de Buda – “perder é ganhar” – mas de modo diferente. Toda a sua pessoa e intervenção eram desejo de um mundo outro, um fogo a acender em todos os corações. Não apagava o desejo. Intensificava-o, convertendo-o sempre em algo de melhor, para não se perder em labirintos sem rumo. Não era nem um austero nem um libertino. Gostava da vida e para todos a desejava em abundância, alargando a tenda do Reino onde reunisse todos os filhos de Deus dispersos pela desumanidade.
Está escrito que ele próprio teve de resistir às tentações messiânicas, à vontade de tomar o poder e instaurar uma nova era em Israel ocupado. Interpretou-as como diabólicas! Não conseguiu, todavia, convencer os seus discípulos de que sem a radical conversão do desejo nunca iriam entender o que é preciso para alterar a própria natureza do poder. Ao pressentir que se passava com eles algo de muito estranho, descobriu a luta pelo poder, com as clássicas manhas do carreirismo, que envenena a política. Foi obrigado a uma linguagem e atitudes muito duras para tentar restabelecer a paz no grupo.
 3. O Evangelho de S. Marcos, proclamado na missa de hoje, identifica a tentação que tem minado a Igreja, ao longo dos tempos. Nada de muito original: para satisfazer a ambição do poder, a vontade de mandar, é preciso saber construir uma carreira e intervir no momento exacto. A narrativa não podia ser mais clara. “Tiago e João, filhos de Zebedeu, foram ter com Jesus e disseram-Lhe: Mestre, queremos que nos concedas o que te vamos pedir. (…) que quereis que vos conceda?  Que na tua glória – quando tomares o poder – nos sentemos um à tua direita e outro à tua esquerda”. Estavam dispostos a tudo. Ouvindo isso, os outros, os dez, sentindo-se ultrapassados, indignaram-se contra Tiago e João.
Jesus não podia deixar isto em claro e fez uma reunião: “Sabeis que os chefes das nações exercem domínio sobre elas e os grandes fazem-lhes sentir o seu poder. Não deve ser assim entre vós: quem entre vós quiser tornar-se grande, será vosso servo e quem quiser entre vós ser o primeiro será o escravo de todos, porque o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida pela redenção de todos”( Mc 10. 35-45).
Quando se pergunta que pode a Igreja fazer pela paz, pressupõe-se uma situação grave, atravessada por conflitos nacionais ou internacionais. Não deve tentar substituir o que pertence aos caminhos da política. Mas,  sabendo o que perverte as relações económicas, políticas e sociais,  tem de mostrar pela sua vida, pelo seu comportamento, pela transformação do poder de dominar em serviço, no seu interior, que existem alternativas ao modo como são governadas as nações. A Igreja tornar-se-ia, desse modo, fermento, sal da terra e luz do mundo.

Frei Bento Domingues, O.P.
Artigo copiado do Jornal Público

21 outubro 2012

Colesterol religioso

Encontrei o Chico G no largo em frente à igreja. Fiquei admirado porque ele não é nada inclinado a devoções de tipo religioso, é mais dado a celebrações na taberna. Não é muito original mas, pronto, é assim. Afinal estava perto da igreja por casualidade, um pouco mais gordo e com aspecto sedentário. Então, Chico, que tal anda o colesterol? Nada, tudo bem. Uns 180 e a tensão a 12. Fiquei espantado porque ele não cuida muito da alimentação, anda mais ao sabor dos sabores. Quem me mandou fazer um juízo negativo? Ri-me quando acrescentou: vocês é que têm de cuidar do colesterol das beatas. O quê!? Não é do colesterol do sangue, é do religioso. Do religioso? Então, se na política falam em gorduras do Estado, na Igreja bem podem falar no colesterol religioso. E como é isso!? Como é isso! É que na Igreja anda tudo com fartura de religião e tudo muito pasmado. Nesse momento lembrei-me que, há já bastantes anos, ouvi várias vezes um bispo português indignado com aquilo a que chamava “pastoral da engorda”. A ideia era que os padres se centravam quase só nas pessoas que frequentavam a Igreja, não estabelecendo relacionamentos muito além dessa fronteira. Continuei: mas parece que as pessoas gostam muito do novo padre que aqui está. Também já ouvi dizer. Não percebo nada disso, mas parece que gostam de o ouvir. Lembrei-me então que a mãe do Chico dizia que os padres de há uns anos só falavam em ovelhas, cordeiros, searas, videiras, que não bastava andarem toda a semana com isso senão virem ainda para a igreja ouvir essas coisas. E ele acrescentou: aqui as mulheres dizem que este fala bem, que não fala nada dessas coisas. O homem também é novo, se calhar não percebe nada disso. Dizem que nem gosta de vinho! Claro, o vinho, diz-se que o vinho é um antioxidante. Mais umas conversas que não vêm ao caso e cada um seguiu o seu caminho, ele para dentro de um minimercado e eu para dentro de mim. Há um extenso mundo entre o falar e o ouvir, o ouvir e o entender, o entender e o fazer-se desentendido. Numa missa, pouco depois de ter estado com o Chico, um senhor padre fez uma homilia que achei bastante interessante, mas não sei se era muito adequada àquela gente. Algumas pessoas referiram isso à saída. No que me diz respeito fiquei a conhecer uma espécie de provérbio que se calhar só eu não sabia e que vem a propósito: “não há banquete sem bom vinho, nem sermão sem santo Agostinho”. Pensei então que talvez não haja sermão nem banquete sem agitação no colesterol, mas a responsabilidade também é de quem come. A luta principal de Jesus dirigiu-se exactamente aos malefícios de uma religião adulterada e de uma moral falsificada. Disse um dia que o que faz mal “não é o que entra pela boca, mas o que sai” (Mt 15, 11. E ainda que não é por se dizer “Senhor, Senhor, que se salva, mas por se fazer a vontade do Pai” (Mt 7, 21). Ora a vontade do Pai é que as pessoas não sejam subjugadas nem se deixem subjugar às leis (do Sábado, como paradigma), mas que estas sejam para facilitar a vida. E também que não estejam sujeitas a práticas religiosas sem alma, mas que a sua religião seja a de um coração amável. Por isso vem sempre o dilema: o Chico no adro da igreja ou as pessoas que estavam dentro? Bem, não se pode meter a mão na mente ou na consciência de ninguém, e também não se pode condenar alguém por actos de que não é responsável. Mas, segundo os evangelhos, quem não tem o colesterol religioso elevado parece ter melhores condições para aceitar uma mensagem de humanidade do que aqueles que estão certos e seguros da sua gordura religiosa. Esta linguagem um pouco enjoativa não é nada estranha mesmo ao Antigo Testamento. O próprio Deus se manifesta contra as muitas gorduras queimadas com intenção de lhe agradar e pouca justiça e amor nas relações humanas que é aquilo de que verdadeiramente gosta (Isaías 1, 11-14). Por isso, nesta época, haja amor debaixo do sol que faz bem ao colesterol!

frei matias, op

15 outubro 2012

Nós Somos Igreja na Havana de Fidel

Em Julho passado li a notícia da morte do dissidente cubano Osvaldo Payá, em desastre de carro numa estrada a 800Km de Havana. Admitida a possibilidade de assassinato, já que em regimes totalitários todas as hipóteses são possíveis, a notícia foi divulgada no mundo e especialmente desenvolvida no jornal El País. Osvaldo Payá, católico, engenheiro, esteve na oposição ao regime desde a juventude, e desde então se envolveu em movimentos católicos. Foi fundador do Movimento Cristão de Libertação e quando em 2002 ganhou o Prémio Sakharov de Direitos Humanos, Payá conseguiu autorização para receber o Prémio em Bruxelas, e ainda foi recebido pelo Papa em Roma. Em mim, a sua memória ficou inscrita na galeria de mortos que me fazem reviver a vida, ou estimular o gosto de vivê-la. Na consciência da liberdade de viajar por onde quiser e puder, sem limites de liberdade nem fronteiras de expressão. E fez-me reviver a vida porquê? Porque a evocação de Osvaldo Payá me fez regressar ao ano de 1989, quando no mês de Julho viajei do Rio de Janeiro para uma estadia em Cuba. Entretanto, recordei as notícias sobre a visita de João Paulo II em 1998 a Havana e o aperto de mão com Fidel, notícias jubilosas para uma possível abertura do regime à Igreja. Este ano, a viagem apostólica de Bento XVI foi formalmente correta, sem alusões à situação dos dissidentes presos e apesar dos apelos para que houvesse um pronunciamento sobre direitos humanos. Mas voltando ao meu mês de Julho de 1990, num dia de calor intenso e em contraste com os brilhos das casas que enquadravam a Praça, com a emoção própria do momento excecional me estava a acontecer, eu entrei na Catedral chamada da Virgem Maria da Imaculada Conceição de Havana, sede da Diocese e Património Mundial da Unesco. Imponente, como são as igrejas construídas no Novo  Mundo pelos jesuítas no séc.XVIII, a Catedral tem o despojamento da decadência, a frescura do silêncio, a escuridão do fio de luz que nos ilumina em funda viagem interior. E que viagem. Logo à entrada, parei a ler o texto de um painel simplesmente manuscrito, assente num cavalete, bem visível, impossível seria que o painel não chamasse a atenção de todo o homem ou mulher que ali chegasse. Fotografei. Revelei. Imprimi. Guardei no álbum de fotografias, entre todas as desses dias em Cuba. Em memória de Osvaldo Payá aqui trancrevo o texto, a registar o fermento da Palavra. Também naquele distante ponto do mundo, nós somos Igreja.   

“No começo da nossa Era, um homem único fez a sua entrada na história da humanidade. Este homem pode significar a tua mais nobre esperança e o melhor futuro para todos os povos.
Chamou-se JESUS.
Por ofício foi CARPINTEIRO e os seus amigos chamavam-lhe MESTRE.  Ele ensinou
Que os pobres e os que deixam de ser maus são os primeiros para Deus.
Que a liberdade é fazer sempre o bem.
Que o homem vale pelo que é e não pelo que tem e pelo que se pode tirar dele.
Que a vida é luta e que quando lutamos por viver como seres humanos, Deus está do nosso lado.
Que não há um Deus distinto para cada um.
Que há um Deus para todos e se chama PAI 
Que não se deixa comprar nem controlar. Dá o seu amor livremente e não suporta a hipocrisia nem a injustiça.
Que a religião não é magia nem ritos nem velhas tradições nem aparências.
Que a religião é trabalhar com retidão perante Deus.É olhar limpamente a vida. É cumprir com os deveres de cada um. É tratar os outros como irmãos.
Que a religião que agrada a Deus é o bem que se faz aos demais.
Vivia o que ensinava e a sua doutrina foi tida como subversiva. Por  dizer estas coisas, mataram-no os poderosos da sua época.
Mas não puderam apagar o seu nascimento nem apagar a luz que incendiou com a sua vida.
Porque CRISTO VIVE.
Vive no coração dos que o amam e lhe entregam a sua vida.
Vive porque veio a vencer todos os males e triunfou sobre a morte
Vive porque ressuscitou e está connosco.
Com o seu nascimento nasceu um mundo novo que todavia ainda está por completar.
Ele deu o primeiro impulso e a nós toca-nos continuar…
Passaram muitos anos desde que esteve no meio de nós.
Dele se disseram muitas coisas
O tempo e o nosso comportamento podem ter desfigurado a sua atuação e os seus ensinamentos.
A Igreja que Ele fundou quer dá-lo a conhecer.”

Leonor Xavier

14 outubro 2012

Os dominicanos em Portugal e o Vaticano II

1. Não vimos de nós mesmos. Também não nos confundimos com o nosso património genético. Situamo-nos numa história, numa língua e assumimos, de forma necessariamente selectiva, um património, uma linhagem. Depois de ter desfeito muitas quimeras, tentamos viver na companhia da esperança. Não somos nem o último dia, nem a última noite do mundo. Ao longo do tempo, conhecemos pessoas luminosas e outras assim-assim.

No passado dia 11, foram celebrados os 50 anos do início do Concílio Vaticano II. Muitos dos que participaram na preparação e na realização do acontecimento maior da Igreja Católica no século XX já morreram. De quem se esperava que ele fosse acolhido, de forma criativa, na intervenção pastoral, verificamos que não entendeu ou não quis entender as suas orientações mais profundas. Não vale a pena referir os movimentos que preferiam que esse Concílio nunca tivesse existido.

Estava tudo a correr muito bem - numa Igreja que se procurava que fosse imobilista - quando o desvairado ou ingénuo João XXIII, ao fazer a barba, se lembrou de convocar os bispos do mundo inteiro para pensarem tudo de novo. Sentiu que Igreja precisava de um aggiornamento, isto é, de se pôr em dia com o espírito de Cristo, em confronto com os problemas do mundo contemporâneo. Não era uma assembleia para dizer, de uma vez para sempre, o que devia ser o futuro, mas para ensaiar um método de ler os sinais dos tempos, sabendo que Deus faz sinal à sua Igreja a partir não só do seu interior, mas também do mundo que ela não comanda.

2. Mais vale tarde do que nunca e, desde que o Movimento Nós Somos Igreja se lembrou que nem a convocatória nem o começo deste Concílio podiam ser ignorados, têm-se multiplicado as referências a estas datas, com maior ou menor convicção. Depois, até se tornou de bom-tom dizer que o Vaticano II nunca foi tão actual. De facto, o Vaticano II, em Portugal, não foi nem preparado, nem acompanhado, nem bem recebido pelas instâncias oficiais. Manuel de Almeida Trindade, nas suas Memórias de um Bispo, confessa que faltou um grupo de peritos nacionais para acompanhar os bispos portugueses no desenrolar do Concílio e que foi uma lacuna. Se tivessem acompanhado o Concílio estariam depois em condições de, nas suas dioceses, "fazer um trabalho de divulgação e explicação da doutrina conciliar". Mesmo sem querer fazer um juízo exacto acerca das intervenções dos bispos portugueses, observa que "houve intervenções que mostraram o nosso atraso em assuntos teológicos" (...): "Os bispos, ocupados com os trabalhos da pastoreação diária das suas dioceses, não dispõem de sobras de tempo para se dedicarem, com profundidade, a assuntos dessa natureza. É, pois, compreensível que a nossa participação não tenha tido o nível do episcopado do Centro da Europa - ou da que tivemos no Concílio de Trento".

3. Isto não significa que não tivesse havido, em Portugal, pessoas e grupos que trabalharam para a reforma da Igreja na linha do que veio a ser o Vaticano II. Essa História, com várias histórias, já encontrou bons e conhecidos narradores. No passado dia 6, no Convento de Cristo-Rei (Porto), realizou-se um intenso colóquio, de três painéis, dedicado a celebrar os 50 anos da Restauração da Província Portuguesa da Ordem dos Pregadores. Moisés Martins, professor da Universidade do Minho, mostrou o desconforto de não ter tido tempo - ao falar da presença dominicana em Portugal - de abordar a relação dos dominicanos com o Vaticano II. De facto, mesmo sem ter sido explicitada, com essa designação, esteve presente em muitos momentos. Destaco a abordagem, lúcida e fervorosa, feita pelo filósofo e poeta Eduardo Bento, sobre o papel do Studium Sedes Sapientae (Filosofia e Teologia), frequentado por várias congregações religiosas. Multifacetada e longa foi a acção do Instituto S. Tomás de Aquino (ISTA), através do Curso de Verão de Teologia, que começou por ser, embora não de forma exclusiva, a iniciação das mulheres à prática da teologia, antes, durante e depois do Vaticano II, causando muita perturbação em vários sectores da Igreja.

Além de muitas outras realizações deste instituto, que ficam para outra altura, é obrigação da memória referir os Encontros de Teologia para Leigos, em Coimbra e no Porto, realizados sob forte vigilância eclesiástica. Deixo aqui pequenos fragmentos do testemunho do cónego Urbano Duarte, no Diário de Coimbra, em 23.02.67: "Uma comissão de leigos incentivou a realização deste III Encontro de Teologia para Leigos, a cargo dos padres dominicanos de Fátima. (...) Mais uma vez, foi impressionante e, podemos dizer, novo, o êxito alcançado. Nada em Coimbra se lhe pode comparar, em matéria de cultura religiosa: (...) os ouvintes, muitos que em salões caracteristicamente confessionais não costumam entrar, eram às centenas. A sobriedade melíflua, o "santo engano", ou a paz morta à sombra da ignorância não tiveram assento nestas assembleias de reflexão sobre a Fé."

Tanta coisa fica por contar... mas seria uma tristeza que a memória de mais de 50 anos não despertasse uma Igreja de futuro.

Frei Bento Domingues, O.P.

Esta crónica foi publicada no jornal Público de hoje, 14.10.12

11 outubro 2012

11 de Outubro 1962-2012

Que data tão maravilhosa celebramos no dia 11 de Outubro de 2012! O cinquentenário da abertura de um dos maiores e mais transformadores eventos do século XX, o Concílio Vaticano II. Esta magna assembleia da Igreja Católica, convocada pelo homem de Deus o Papa João XXIII, foi um acontecimento profético, onde o Espírito Santo parecia andar à solta. Eu tinha 19 anos, pertencia à Acção Católica e recordo as emoções que sentimos, como católicas e católicos, perante a perspectiva de uma Igreja mais fiel ao espírito de Jesus nos Evangelhos - amor, inclusão, tolerância, respeito, abertura. João XXIII queria que o Concílio fosse ‘um novo Pentecostes’ e devido aos esforços e orações de tantas pessoas, de facto, a Igreja como instituição e a Igreja como Povo de Deus ficaram marcadas para sempre por um espírito novo.
Evidentemente que há muitos que querem retroceder aos tempos pré-conciliares mas é igualmente evidente que, apesar dos esforços realizados nesse sentido pelos actual e último papa e pela  Cúria Romana,  nunca vai ser possível apagar a imensa energia e esperança libertada.Transformou-se a pastoral que ‘passou a ser mais alicerçada na igual dignidade de todos os fiéis e a ser mais  virada e aberta para o mundo.’ Houve uma profunda reforma litúrgica que nos trouxe a alegria de podermos celebrar a eucarística na língua vernacular, entre outros aspectos. Aceitou-se como valor a liberdade religiosa, promoveu-se o ecumenismo, ou seja o diálogo com outras igrejas cristãs e reconheceu-se que fora da Igreja também pode haver salvação. Ficou escrito que o Povo de Deus, ou seja o conjunto dos baptizados, constituem a Igreja. Nós todas e todos somos Igreja, o que nos exige uma prática de fé muito mais exigente e responsável.  Entretanto, é fácil encontrar milhares de páginas sobre o Concílio Vaticano II na internet.
Ana Vicente

02 outubro 2012

AS MULHERES NÃO CONTAM?


1. Claro que contam. A sua presença qualificada, em muitos sectores da sociedade portuguesa, é cada vez mais afirmativa e insubstituível. Alguns homens chegam a temer um “desequilíbrio” que possa afectar privilégios ancestrais.
Esse destaque feminino, ao mostrar uma realidade irrecusável, sublinha o contraste com um passado humilhante, não muito longínquo. As contínuas notícias de violência doméstica que, por vezes, vai até ao homicídio conjugal, arrefece as visões mais eufóricas. Se a violência doméstica designava, sobretudo, os maus tratos dados às mulheres e crianças, estende-se, cada vez mais, aos idosos, mulheres e homens. Sem adequadas pensões de reforma, ficam sem meios para garantir a defesa da sua dignidade. A predominância actual da cultura utilitarista não pode entender o que exige e implica a dignidade humana dos idosos.
As Igrejas cristãs foram confrontadas, desde o começo, com o estado de negação das mulheres na cultura judaica, gravado para sempre na expressão: “sem contar mulheres e crianças” (Mt 14, 21; 15, 38 e //).
Era, de facto, o retrato da realidade em que Jesus nasceu, foi educado, mas que recusou. As mulheres, afastadas da vida pública, confinadas ao lar, preparando-se para o matrimónio, estavam destinadas a sacrificar-se pela família até ao fim dos seus dias, sob o olhar atento do pai e do marido. Sem estudos, sem papel na religião, sem posses, não tinham qualquer capacidade de decisão autónoma.
Nesta situação, estava certíssima uma oração masculina, cínica e diária: “Bendito sejas, Senhor, por não me teres feito mulher”. (Tos. Ber. VII, 18)
2. Dizem os especialistas, que a ruptura activa de Jesus com essa situação representa um dos traços essenciais da originalidade da sua intervenção histórica. Afrontou tudo o que, no plano social e religioso, marginalizava as mulheres. Segundo as narrativas da paixão e ressurreição, Jesus encontrou nelas quem melhor entendeu a sua mensagem e o seu caminho. Garantiram futuro ao movimento cristão, quando tudo parecia morto.
Artur Cunha de Oliveira publicou uma obra notável sobre Jesus de Nazaré e as Mulheres, a propósito de Maria Madalena (Instituto Açoriano de Cultura, 2011). É uma obra de referência para a teologia feminista e pode ser de muito proveito para os anti-feministas. O autor é um sacerdote católico, dispensado do ministério e casado, licenciado em Teologia Dogmática e em Ciências Bíblicas, tendo sido professor no Seminário Episcopal de Angra, Cónego da Sé e assistente diocesano de vários movimentos, organismos e associações de apostolado.
Em 2011 nasceu a Associação Portuguesa de Teólogas Feministas. Criada por Teresa Toldy, Fernanda Henriques, Maria Carlos Ramos e Maria Julieta Mendes Dias, com os seguintes objectivos: contribuir para o aprofundamento da investigação teológica feminista; criar condições para a troca de experiências de investigação entre investigadores feministas de Teologia a nível nacional e internacional; relançar, em Portugal, o debate sobre as Mulheres, numa perspectiva ecuménica.
Esta Associação vem preencher, entre nós, uma lacuna no campo da teologia, inscrevendo-se num movimento sem fronteiras. A publicação das comunicações do I Colóquio Internacional de Teologia Feminista será apresentada no próximo Colóquio, marcado para o próximo mês de Novembro.
3. A reflexão teológica na Igreja não tem sentido desligada da experiência concreta das comunidades cristãs. É, por natureza, contextual. A descoberta dos direitos e do seu papel na sociedade obrigaram as mulheres cristãs a fazer uma verificação: a nossa situação é esquizofrénica. Por um lado, participamos na emancipação das mulheres na sociedade e por outro, é-nos dito que na Igreja não pode ser assim, tem de ser diferente, pois ela não existe para reproduzir a sociedade, mas para a evangelizar na fidelidade a Jesus Cristo. Manifesta-se, precisamente aqui, um dos aspectos do debate. Na constituição hierárquica da Igreja, não há lugar para as mulheres. Não têm acesso aos ministérios ordenados, pois decretaram que o sacramento da Ordem não é para elas.
Se os ministérios ordenados são para servir, perguntam-se: que haverá em nós, por sermos mulheres, que nos impede de ser chamadas a servir as comunidades cristãs? Surge-nos a dúvida: se fossem verdadeiramente um serviço, seríamos as primeiras a ser chamadas. Como se trata de poder, fica privilégio de homens.
Note-se que nem todas pretendem ser chamadas a preencher a lacuna da falta de vocações masculinas. Mas não escondem o que as comunidades católicas teriam a ganhar com as virtualidades da diferença feminina nos ministérios ordenados. O que não suportam, enquanto cristãs, é que as mulheres não contem na orientação da vida das comunidades cristãs e sejam reduzidas ao estado pré-cristão em que Jesus as encontrou.
A Igreja nunca poderá aceitar a vontade do Simão Pedro do evangelho apócrifo segundo Tomé: “ Maria deve ir embora, pois as mulheres não são dignas da vida”. A resposta do Jesus desse evangelho é dos diabos: “Vede, vou atraí-la para que se torne macho a fim de que ela também se torne um espírito vivente que se assemelha a vós, machos.”
4. Quando certas personalidades da Igreja, para recusar às mulheres determinadas funções, invocam a prática de Jesus para as fundamentar, importa não esquecer o seguinte: antes de mais, é preciso ver a qualidade e o volume de intervenções de Jesus que são uma autêntica revolução; alteraram completamente as ideias e atitudes que ofendiam e marginalizavam a mulher, que faziam dela um ser menor, uma eterna criança. Hoje, abundam os estudos que podem evidenciar o salto civilizacional e religioso que a prática de Jesus e a sua palavra representam.
O que não é aceitável é o seguinte: não se olha para esse acontecimento e, depois, fala-se de uma ausência nas decisões de Jesus, acerca de problemáticas que não pertenciam à sociedade em que Ele viveu. Por exemplo: quando se fala dos ministérios ordenados das mulheres, não é ridículo imaginar um ritual que hoje e há séculos se pratica nas Igrejas para ordenar padres ou bispos? Figurar Jesus, paramentado, de mitra e báculo, rodeado de bispos e padres e de candidatos prostrados de rosto por terra, esperando a sua vez, é não só ridículo como inteiramente anacrónico. Se imaginarmos as coisas assim, Jesus de facto, não ordenou mulheres como não ordenou homens. Só que a questão não é essa. A questão é simples porque é que este ritual foi criado para homens e nunca para mulheres. A partir daqui fica tudo baralhado. O que importa é responder hoje, na problemática de hoje, à novidade da prática de Jesus para hoje e para sempre. Graças a Deus, Jesus Cristo continua vivo e nós, continuamos surdos e cegos.

Frei Bento Domingues, O.P.