23 fevereiro 2013

A FREIRA QUE PARTIA PRATOS

Alguma gente diz que na Bíblia há de tudo e que, por isso, ela serve para tudo. Feitas as contas e estando as contas bem feitas, com tanta gente que por lá anda e durante tantos séculos, é normal haver nela muitas coisas. Não devem é ser usadas fora do seu contexto. Na Bíblia até de pratos se fala: de ouro, de prata, muitos, raros, para usos sagrados ou profanos, para bem e para mal. Por exemplo: um dia nasceram dois rapazes gémeos e o que vinha em segundo lugar agarrou-se à perna do primeiro inconformado com a sua posição. Uma mãe extraordinária, Rebeca, ajudou a configurar essa atitude na vida de adultos. Num fugaz momento de muita fome, um prato de lentilhas pareceu ao primeiro um manjar que valia bem o lugar destacado que ocupava. Foi, pois, com todo o prazer que Esaú cedeu o seu lugar de primogénito a Jacob em troca de uma comidinha fumegante (Génesis, 25). A fome é lixada! Foi também a um prato que foi parar a cabeça de João Baptista quando a perdeu por causa de um comportamento escandaloso que ele achava intolerável (Mateus 14). E em Marcos 14, Jesus identifica aquele que o vai trair como ”um dos Doze, que se serve comigo do mesmo prato”. Pela descrição da cena parece que todos desconfiavam que havia outros capazes de fazer o mesmo. Talvez todos, como nós.  
A freira que partia pratos também tinha as suas razões bíblicas. Alegre, amável, frontal, procurava em cada dia ter uma convivência humana pautada pela verdade e por atitudes solidárias. Uma razão razoável para se irritar visceralmente com alguns pecados capitais como a inveja, a soberba, a avareza. Depois de muitos esforços num combate inglório contra esses sentimentos próximos de si, decidiu atacar naquilo que dói a quem é pertinaz nesses modos que envenenam o relacionamento humano. Disse: de hoje em diante, sempre que vir atitudes dessa natureza parto um prato. Assim aconteceu: um dia ouvi a música de uma tigela, deixada cair como que por descuido, com todas as notas da escala musical, incluídos sustenidos e bemóis. O silêncio, tal como os impostos, era enorme. Cheguei a convencer-me que talvez o método resultasse, mas a natureza humana é ainda mais lixada que a fome. É por isso, aliás, que esta existe. A um dado momento apercebi-me de que a atitude daquela freira produzia um novo pecado: a acídia. Esta, trocada um dia pela preguiça, que me parece mais um pecado capitalista que capital, revela-se no azedume, no ressentimento, numa profunda compressão da alma. 
Já passou algum tempo depois desses acontecimentos e ainda não perguntei pelo êxito daquela irmã que, pedagogicamente, às vezes partia um prato. Mas para quem é tacanho, invejoso ou arrogante talvez o som de um prato a partir-se não seja uma melodia muito agradável. A vida humana deveria ser um banquete com pratos para todos os gostos, servidos numa convivência amável e fraterna. Não sendo assim, é preferível partir a loiça e pôr as coisas em pratos limpos. E quando se confunde a grandeza com o ser grande, cabe dizer com F. Pessoa: “Raios partam a vida e quem lá ande!...”.
Frei Matias, O. P.
         Fevereiro 2013

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