1. A preocupação com o futuro do cristianismo, e nomeadamente com a sua versão católica, ditou, no âmbito da nova evangelização, o Ano da Fé. Multiplicam-se as iniciativas para que o Evangelho não se torne insignificante, mesmo nos países cuja matriz cultural e religiosa é, precisamente, o cristianismo. É normal a preocupação pelo seu futuro. A Igreja não existe para passar certidões de óbito ao cristianismo europeu. O modo mais adequado para evitar o seu apagamento no futuro não é desenhar cenários, óptimistas ou pessimistas, mas fazer com que as experiências do presente, pela sua criatividade de vida transfigurada, sejam uma fonte de beleza e de alegria, que ninguém queira perder. É do presente plural, aberto ao futuro, que importa experimentar e falar. O que não se pode é persistir em opções que desconvocam, logo à partida, a maioria dos cristãos, as mulheres.
Esta persistência da hierarquia católica em não contar com elas para conceber, projectar, orientar e realizar a missão da Igreja no mundo contemporâneo, é considerada altamente negativa, em alguns ambientes eclesiais, embora noutros, essa situação ainda se possa apresentar como absolutamente normal, pois “sempre foi assim”.
Este último argumento só pode ser usado por quem não vê o papel activo das mulheres em todos os sectores das sociedades ocidentais. Portugal não é excepção. Não procurar alterar o funcionamento da Igreja, tendo em conta esta tendência irreversível, parece cegueira, fuga aos sinais dos tempos, tantas vezes evocados em vão.
2. Como as fontes do Espírito nunca secam, todas as viragens são possíveis e ainda é tempo de perguntar: qual o papel original que as mulheres estão a ter, no desenho dos projectos da chamada “nova evangelização”? Não recorrer à sua intuição, experiência e saber é esquecer a própria simbólica da Anunciação do Anjo, ao colocar o futuro na graça de uma mulher.
Maria de Nazaré não acolhe a proposta divina sem a questionar frontalmente. A sua fé não é cega. Aliás, acredita-se sem evidências, mas não sem sentir que é por ali que corre a vida e o amor.
Neste sentido, será importante meditar nas narrativas da Paixão e da Ressurreição, consideradas as mais decisivas para entender a significação do atribulado percurso histórico de Jesus com os seus apóstolos.
Ora, o que há a destacar de mais extraordinário e paradoxal, nesses relatos, é a enorme falta de fé de Jesus nos seus discípulos. Tão grande que recorreu às discípulas, às mulheres, individualmente e em grupo, para que fossem elas a comunicar-lhes que nada estava acabado com a crucifixão: o projecto, o sonho e Ele próprio estavam vivos e para sempre.
As mulheres, tidas por mentirosas, não podiam testemunhar em tribunal. Jesus viu que foram elas que, sem arredar pé, O seguiram até ao fim. Eram elas as suas testemunhas e encarregou-as de evangelizar os apóstolos, que o medo e a falta de fé tinham feito dispersar. Os próprios textos insistem, no entanto, que os homens, os discípulos, não lhes deram crédito. Continuavam com a ideia velha e derrotada de que o testemunho das mulheres não valia nos processos jurídicos. Elas serviam, quando muito, para levantar boatos. Como Tomé, tinham de ser eles a verificar. Cristo repreende-os: homens de pouca fé, continuais incapazes de vos render à palavra das discípulas.
Paulo cunhou a fórmula cristã mais curta e mais exacta da igualdade e da liberdade de todos na Igreja: Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher; pois todos vós sois um só em Cristo Jesus (Gal. 3, 28). Não ficou por aqui. São-lhe atribuídas outras, muito infelizes, acompanhadas de razões teológicas, cristológicas e antropológicas demasiado rabínicas: As mulheres estejam em tudo sujeitas aos seus maridos (Ef. 5, 21) e para preservar as tradições, pede às mulheres que mantenham a cabeça coberta e em silêncio nas assembleias (1 Co. 11, 2; 14, 34)[i].
Na história da Igreja, nem todas as mulheres se sentiram obrigadas a essas tradições que Cristo já tinha sacudido. Contudo, pelo que se ouve dizer, as santas rebeldes não conseguiram ser tantas como as submissas.
3. Multiplicam-se as notícias de violência sobre as mulheres. Não veem só do Paquistão e do Afeganistão, dos Estados Unidos ou da India, do Brasil ou de Portugal. Cobrem o planeta. As mulheres já não são, apenas, as mais descriminadas no trabalho, usadas nos negócios de publicidade para vender carros e outros produtos, na pornografia e na prostituição. A violência doméstica, as violações em série, o tráfico de mulheres e órgãos são tão frequentes que o modo de abordar estas questões - espectáculos de momentos televisivos -, tende a banalizar o crime.
É de espantar que nas paróquias, nas dioceses, nas organizações católicas, não se desenvolvam movimentos, de homens e mulheres, que incarnem estas questões, como centrais para a Nova Evangelização.
Aliás, uma “evangelização” que não faça destas situações, e do que elas revelam, o seu tema incontornável, fica longe do comportamento de Jesus Cristo, narrado nos Evangelhos.
Não é uma questão reservada a algumas mulheres rebeldes.
Frei Bento Domingues, O.P.
[i] Cf. Pe. Carreira das Neves, Paulo e as Mulheres, in São Paulo, Presença, 2011, pp 198-221.
in Público
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