28 abril 2014

Comunicado de Imprensa do Movimento Nós Somos Igreja - Internacional

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24 de Abril de 2014

O MOVIMENTO INTERNACIONAL NÓS SOMOS IGREJA (IMWAC) reflecte, de forma crítica, sobre a canonização de João Paulo II

“Todo o actual sistema de canonizações é questionável e torna-se essencial democratizá-lo”, afirma a Dra. Martha Heizer, coordenadora do Movimento Internacional Nós Somos Igreja (IMWAC). "A reforma do processo de canonização deve incluir-se nas demais reformas da governação, transparência e responsabilização que o Papa Francisco iniciou e que são essenciais para que a Igreja Católica se torne na "Luz do Mundo".

O IMWAC pensa que o processo de canonização deve ser democratizado e deixar de ser um instrumento político do Vaticano. A canonização de ambos os Papas, estando a maioria dos Papas recentemente falecidos já na calha da canonização, glorifica a natureza absoluta e infalível do Papado à custa do restante Povo de Deus.

A Igreja celebra tradicionalmente a vida dos cristãos que viveram uma vida proeminentemente virtuosa e de martírio, adicionando-os publicamente ao calendário dos Santos. Todavia, tem-se dado uma ênfase desmedida a esta tradição canonizando presbíteros e religiosas católicos.
O Movimento Nós Somos Igreja relembra que o Concílio Vaticano II (1962-65) enunciou o chamamento universal à santidade de todo o Povo de Deus, proclamado na Lumen Gentium: "cada uma/um é chamado por Deus, segundo a sua condição, a essa santidade perfeita tal como o Pai é perfeito" (Lumen Gentium, Capítulo II, nº 11).

Reservas quanto à canonização apressada

Embora louvemos e nos regozijemos com as vidas humanas e santas dos Papas João XXIII e João Paulo II a excessiva pressa revelada na canonização do último preocupa-nos. O IMWAC acredita que as reformas do Vaticano II foram praticamente abandonadas durante o pontificado do Papa João Paulo II (ver a declaração do IMWAC de 16.01.2011).

Com a Constituição Apostólica Divinus Perfectionis Magister, de 25 de Janeiro de 1983, o Papa João Paulo II introduziu alterações ao processo de canonização, reduzindo o prazo de cinquenta para cinco anos ou menos entre a morte da pessoa e a sua candidatura à santidade, tendo abolido simultaneamente o "Advogado do Diabo". Estas duas alterações radicais tiveram como consequência não só o aumento das canonizações, como também uma menor atenção  dada às contra-indicações de uma canonização apressada. Estas alterações permitiram ao Papa João Paulo II ser canonizado em tempo recorde, sem a presença de um Advogado do Diabo para argumentar sobre a sua inacção contra os abusos sexuais do clero e o seu apoio público ao abusador sexual, Frei Maciel, fundador dos Legionários de Cristo.
Significará isto que, uma vez que alguém é eleito Papa, a sua santidade se torna num corolário da sua função ou será que apenas os santos são eleitos Papas? Esta situação é contrária ao espírito do Concílio Vaticano II.

Além do mais, devemos continuar a investigar a relação entre a piedade popular e a radical mensagem evangélica de Jesus. A pompa e a glória resplandecentes da Igreja Católica medieval voltarão a surgir no próximo domingo na Praça de S. Pedro, em contradição com a vida da maioria do Povo de Deus que é de pobreza, marginalização e rejeição. Esta Igreja dos pobres foi desposada pelo Papa Francisco e nós apoiamo-lo na tentativa de transformar esta Igreja pomposa numa Igreja solidária com os pobres, uma Igreja que reflicta o Reino de Deus, na qual os últimos sejam os primeiros.

CONTACTOS PARA A COMUNICAÇÃO SOCIAL em diferentes países 



27 abril 2014

Domingo de Canonizações

Frei Bento Domingues, O.P.

1. Hoje é domingo de canonizações, de surpresas e decepções. Fizeram-me, a este respeito, uma pergunta estranha: será verdade que uma canonização envolve a infalibilidade pontifícia? Digo estranha porque, nas questões de ordem teológica, o que me preocupa, em clima cristão, é saber se um determinado acontecimento, atitude, gesto ou palavra servem a dimensão imanente e transcendente dos seres humanos, como criaturas de relação e de interajuda. Respondi que uns teólogos dizem que sim e outros dizem que não. Sabem tanto uns como outros. Estamos, portanto, em matéria opinável. Como a própria noção de infalibilidade tem pouco de infalível, é melhor não ligar muito a esse género de preocupações.

Além disso, o essencial da vida cristã não passa por aí e a Festa de Todos os Santos é muito mais inclusiva e democrática do que todos esses processos de levar gente aos altares. São, aliás, rápidos para uns, muito demorados para outros e impossíveis para quase todos. Preencher os requisitos previstos para obter esse diploma de santo, não é para qualquer um. Um bom currículo não basta. O júri que o avalia não goza de nenhuma garantia divina de imparcialidade.

2. Os produtos da hagiografia, feitos por encomenda ou por devoção, pretendem ser edificantes; os frutos dos incréus, nem sempre são modelos de crítica histórica, como pretendem.

Quanto a modelos, se podemos falar assim, no Ocidente ainda não apareceu nenhum mais interessante do que Jesus Cristo e aqueles que seguem os seus passos e recomendações: os que não procuram nem riquezas nem qualquer outro poder de dominação. Vem tudo muito bem explicado no Evangelho segundo S. Marcos e paralelos (10, 17-45).

Andavam os discípulos a discutir entre si os lugares que desejavam ocupar quando o Mestre, o líder, tomasse o poder. Jesus ia percebendo tudo e andava cada vez mais enjoado com todas essas conversas e segredos. Não reagiu logo. Deixou que eles tivessem a coragem de se manifestarem abertamente e aconteceu. Tiago e João, filhos de Zebedeu, abriram o jogo e pediram logo os primeiros lugares na hierarquia do governo. Jesus tentou dizer-lhes que não tinham entendido nada. Mas os dez, ouvindo isso, começaram a indignar-se contra Tiago e João. Então o Mestre percebeu que aquela ambição era geral. Chamou-os e pôs tudo em pratos limpos: “Sabeis que aqueles que vemos governar as nações as dominam e os seus grandes as tiranizam e são chamados Benfeitores. Entre vós não deverá ser assim: ao contrário, aquele que, de entre vós, quiser ser grande, seja o vosso servidor e aquele que quiser ser o primeiro, seja o servo de todos. Pois o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos”. 

Com o gesto do lava-pés aos discípulos, o Evangelista João deu o sentido a toda a vida de Jesus, antes, durante e depois da Páscoa. Indicou-lhes, para sempre, o papel da Igreja no mundo: não ajoelhar diante de nenhum poder (económico, financeiro, político ou religioso); ajoelhar apenas diante dos excluídos da mesa comum, os deixados à porta de tudo sem poder entrar!
                      
3. É esse o cânone cristão da santidade. O resto é apenas caminho para esse despojamento libertador. João XXIII deixou-nos uns apontamentos, para seu governo pessoal, com o propósito de reduzir tudo – princípios, directrizes, assuntos – ao máximo de simplicidade e de paz, com o cuidado de limpar em todo o tempo a sua vinha do que são folhas e ramos inúteis e onde brilhe, apenas, a verdade, a justiça e a caridade; sobretudo a caridade. “Qualquer outro sistema de actuação não é mais do que jactância e desejo de afirmação pessoal, que depressa se denuncia, se torna nociva e ridícula. (…) Todos os sábios do século, todos os santos da terra, incluindo os da diplomacia vaticana, que papel mais mesquinho representam, colocados à luz da simplicidade e da graça que emana deste grandioso e fundamental ensinamento de Jesus e dos seus santos!” 

Incomodado com o seu bom feitio, inclinado à condescendência e a descobrir o lado bom das pessoas e das coisas, sofre com o ambiente que o rodeia: “Qualquer forma de desconfiança ou de tratamento indelicado com alguém – sobretudo se se trata de deficientes, pobres ou subalternos -, qualquer dureza e irreflexão de juízo causam-me mágoa e íntimo sofrimento. Calo, mas sangra-me o coração. Estes meus colaboradores são uns magníficos eclesiásticos: aprecio as suas excelentes qualidades, estimo-os e merecem tudo. Mas sofro com o desacordo do meu espírito em relação a eles. Prefiro o silêncio, esperando que este resulte mais eloquente e eficaz para a sua educação. Não será isto debilidade?”

Seria longo explicar a razão de João XXIII ter surgido como uma espantosa surpresa para a Igreja e para o mundo: como foi possível, depois de Pio XII e de todos as condenações desde o séc. XIX, começar a dar a palavra a toda a Igreja, convocando o Vaticano II, aberto às outras Igrejas cristãs, às outras religiões, a todos os seres humanos de boa vontade? Apesar de todos os esforços para abafar essa revolução e para o esquecer, hoje, muitos se alegram e outros perguntam: afinal quem foi ele?

João Paulo II, quem o esqueceu? Para vergonha de todos temos o cardeal Bertone.

in Público, 27.04.2014

24 abril 2014

Comunicado de Imprensa do Movimento Internacional Nós Somos Igreja

The INTERNATIONAL MOVEMENT WE ARE CHURCH (IMWAC) critically reflects on the canonization of John Paul II

“The whole system of canonizations is now questionable and its democratization is essential”, says Dr. Martha Heizer, chair of the International Movement We are Church (IMWAC). “The reform of the canonisation process should now be added to the other reforms of governance, transparency and accountability Pope Francis has started and that are essential if the Catholic Church is to become the ‘Light of the World’.”

IMWAC believes the process of canonisation needs to be democratised and become less a politicised instrument of Vatican policy. The canonisation of both Popes, with most of the rest of recently deceased Popes already on the canonisation ladder, glorifies the absolute nature and infallibility of the Papacy at the expense of the rest of the People of God.
The Church has a tradition of celebrating the lives of Christian people who have lived lives of outstanding virtue and of martyrdom by adding them publicly to the calendar of the Saints. However there has been a disproportionate emphasis in this tradition in the canonisation of catholic clergy and nuns.

We Are Church recalls from the Second Vatican Council (1962-65) the universal call to holiness of all the People of God as proclaimed in Lumen Gentium: “each in her /his own way is called by the Lord to that perfect holiness whereby the Father Himself is perfect” (Lumen Gentium, Chapter 11).

Reservations about the hasty canonisation

While we praise and rejoice in the human and holy lives of Popes John XXIII and John Paul II, the undue haste in the canonisation of the latter is a cause of concern. IMWAC believes that the reforms of Vatican 2 were almost abandoned in the pontificate of Pope John Paul II (see the  IMWAC statement of 16.1.2011).

The Apostolic Constitution “Divinus Perfectionis Magister” of 25 January 1983 by Pope John Paul II introduced changes to the canonisation process which reduced the traditional time frame from fifty to five years or less between the death of a person and her/ his nomination for Sainthood whilst it also abolished the ‘Devil’s Advocate’. Both radical changes resulted not only in the increase of canonisations but also less attention being given to contra-indications against a person being speedily canonised. These changes allowed Pope John Paul II to be canonized in record time with no Devil’s Advocate to argue against his inaction against clerical sex abuse and his public support for the sex abuser Fr. Maciel, founder of the Legionaires of Christ.

Does it mean that once a cleric is elected Pope that sainthood becomes a corollary of the role or is it the case that only saints are elected Popes? This situation is against the spirit of the Second Vatican Council.

Moreover, we must continue to examine the relationship between popular piety and the radical Gospel message of Jesus. The glittering pomp and glory of the medieval Catholic Church will again appear in St Peter’s Square next Sunday and will be in contradiction to the lives of the majority of the people of God who live in poverty, marginalization and rejection. This Church of the poor is espoused by Pope Francis and we offer him our support as he attempts to reform this Church of pomp into one of solidarity with the poor, a church that will reflect the reign of God where the last shall be first.  



22 abril 2014

Para o tempo das canonizações

Frei Bento Domingues, O.P.
20.04.2014

Há canonizações: canonizados e a canonizar. Deveria existir uma outra categoria: santos não canonizados e santos incanonizáveis. Para os santos não canonizados, a Igreja arranjou uma festa, a Festa de todos os Santos. É suposto que, se houvesse quem se ocupasse de fazer uma selecção, pelo menos muitos deles, também seriam canonizados. Teriam de preencher as exigências padronizadas, as canónicas. Isto é, cumpririam os requisitos previstos para receberam o diploma de santo. A questão, como em tudo, é ter ou não currículo.

Tudo isto levanta um problema: Jesus permitiu-se andar com quem não tinha currículo de santo. Os seus contemporâneos mais zelosos também achavam que Ele não tinha nada de santo. Tinha mais de diabólico. Leiam os seguintes textos e concluam: Mc 2; Mt 12, 22-32.

Entre aqueles que foram condenados pelas Inquisições, que morreram excomungados, que estavam abrangidos pelo slogan eclesiástico: fora da Igreja não há salvação, contam-se, certamente, muitos santos. São os desalinhados ou incanonizáveis. Considerando, além disso, a História da Humanidade e a vontade universal de salvação por parte de Deus, teremos de concluir que a grande maioria dos santos é feita de desalinhados. 

Seria bom habituarmo-nos a não medir a misericórdia de Deus pelas leis que fabricamos na Igreja ou fora dela. O beatério não é o melhor juiz para avaliar os misteriosos desígnios de Deus.
Quem desejar conhecer os degraus todos que é preciso subir até à canonização, pode ir à internet e encontra tudo explicadinho, com todas as referências aos documentos promulgados pelo Vaticano, sobretudo na década de 80 do século passado, e poderá fazer o seu juízo próprio sobre aquilo que acabámos de evocar.

É preciso abandonar as imagens formatadas da santidade para passar a pessoas que neste mundo querem seguir os caminhos pouco ortodoxos de Jesus. Boa Páscoa.

20 abril 2014

A Ressurreição da Igreja

Frei Bento Domingues, O.P.

1. Não pretendo trazer para aqui a lista das significações que a palavra ressurreição tem na história religiosa e, particularmente, nas teologias cristãs. A ideia de insurreição contra os opressores, serviu a S. Paulo para destacar a vitória de Cristo sobre o pior e mais resistente dos inimigos, a morte, no tom de quem ganhou o desafio supremo e se ri da do fatal adversário: “morte, onde está a tua vitória, onde está o teu império? (1Cor 15).

Opto, este ano, por nomear uma questão recorrente e pouco atendida: a ressurreição da Igreja. Do ponto de vista histórico, foi a experiência de algumas mulheres que revelou aos discípulos, contra todas as evidências, que a morte não tinha sido a última palavra sobre a tragédia humana da Cruz. Por outro, as narrativas do Novo Testamento são, em parte, o fruto de um exame de consciência sobre a cegueira que impediu os Apóstolos de entender o sentido do percurso terrestre de Jesus de Nazaré.
Chamo aqui ressurreição da Igreja ao resultado das atitudes, dos gestos, das tomadas de posição e iniciativas que romperam, ao longo de 2.000 anos, com situações de decadência, de escândalos ou de marasmo e colocaram, de novo, as comunidades cristãs sob o impulso do Pentecostes. É um processo nunca acabado e, sob o ponto de vista local ou regional, estará sempre ameaçado pelo desleixo e pela usura do tempo. A história regista grandes rupturas e escandalosas divisões que continuam a marcar o seu tecido visível. E não só. Como esquecer o apagamento quase total, em diversas regiões, de numerosas comunidades cristãs, outrora florescentes?

Nem tudo é irremediável. Eu próprio testemunhei momentos impressionantes de ressurreição da Igreja: no rosto de João XXIII e na convocação do Vaticano II. Vieram depois longas e persistentes tentativas para os fazer esquecer. Repetidas notícias de escândalos correram por todos os meios de comunicação. De repente, chegou o Papa Francisco. Para usar a expressão de Ch. Péguy a pequena virtude da esperança voltou a dizer-nos bom dia todas as manhãs!

Bergoglio sabe que a duplicidade na pastoral da Igreja – “nem quente nem fria”, segundo a linguagem do Apocalipse - é pior do que a morte. Sem a memória viva da Paixão de Cristo, fonte de subversão dos poderes que multiplicam as vítimas da escravatura financeira, económica e política - o catolicismo perde o sal e não serve para nada: fica reduzido a mais uma religião. Vale a pena ver isto mais de perto.

2. A “era cristã”, fixada no séc. VI, por Dionísio, o Exíguo, tem falhas de cálculo, de alguns anos. Jesus, o Nazareno, nasceu provavelmente uns sete anos antes. Sendo assim, Jesus teria morrido com 37 anos, a 7 de Abril, do ano 30. Os cristãos não celebram a morte, mas sabem que Jesus não morreu de velho, de acidente, nem de doença prolongada. Foi condenado à morte, depois de ter sido barbaramente torturado, num processo político-religioso, a que temos acesso através de quatro narrativas, elaboradas com propósitos cristológicos e pastorais diferentes e, por, vezes, manipuladas.

Muitos cristãos gostam de ir, em peregrinação, a Jerusalém nesta data. Nunca senti nenhuma atracção por esse lugar, nesta ou noutra data. Tornou-se, para mim, por várias razões, uma referência saturada.
Tive, uma vez, um convite fantástico para visitar os lugares sagrados das grandes religiões. Quando estava quase seduzido pela oferta, a simbólica conversa de Jesus com a Samaritana desencorajou-me. O templo de Deus, respeitado ou ofendido, somos nós. O culto, em espírito, verdade e justiça pode e deve ser realizado em qualquer lugar.

No entanto, os católicos que forem em peregrinação à chamada Terra Santa não se esqueçam de que as únicas relíquias de Jesus que lá podem encontrar são as diversas e atormentadas comunidades cristãs de ritos diferentes – por vezes pouco ecuménicas - que celebram a Eucaristia, “por todos”. Importa partilhar com elas - nas suas diferentes expressões - a memória confusa da “mãe de todas as Igrejas”.

Lendo e meditando os Evangelhos, observo que Jesus e os discípulos, de modo diverso, fracassaram todos em Jerusalém. Enquanto Jesus estava banhado em lágrimas de sangue, os discípulos dormiam. Um deles entregou o Mestre aos inimigos, outro negou-o, os restantes fugiram e a impotência de Deus era o próprio crucificado. Apenas um grupo de mulheres, verdadeiras discípulas, aguentou tudo. Até no túmulo o procuram. Só elas perceberam que o passado estava vazio e foram convocadas para começarem o processo da ressurreição de toda a Igreja moribunda, no horror do Calvário.

3. Para o último Nietzsche, o cristianismo, ao impedir de atirar fora o lixo humano, os diminuídos, os fracos, conserva os que enfraquecem os povos. O indivíduo foi tomado demasiado a sério e colocado pelo cristianismo como um absoluto. A espécie humana só pode sobreviver graças aos sacrificados.

Nietzsche diz bem o que os cristãos devem recusar. Na cruz, foi a fraqueza que venceu, pela inclusão de todos os excluídos. Estamos numa das linhas sísmicas que atravessam o mundo: Islão/Ocidente, Norte/Sul, ricos/pobres. É na recusa destas fracturas que se pode vislumbrar a luz da Ressurreição.

Boa Páscoa
20.04.2014

19 abril 2014

Judas, um amigo de longa data

       
Já conhecia o Judas de muito ouvir falar dele e a sua imagem de traidor não o tornava nada simpático, particularmente numa época em que vivíamos a preto e branco e a figura do traidor era cinzenta. Mas depois conheci o Judas mais de perto. Calhou-me num sorteio um livro sobre ele e considerei isso como uma exigência para o conhecer melhor. Essa exigência redobrou quando vi alguns olhares centrados em mim com ar de que o sorteio se tinha enganado. Nada que eu não conhecesse já. Foi assim o início de um relacionamento amistoso com o Judas apesar da má imagem que tinha dele. O livro tinha como título “Judas o primeiro traidor cristão”. Não tenho memória de um conteúdo exaltante, mas o questionamento sobre a figura de Judas nunca mais me largou. Afinal, Judas, mesmo sendo traidor poderá ser cristão. Afinal o que o destaca é ser o primeiro de muitos, ou talvez de todos. Afinal todos podemos ser traidores, não por seguirmos o caminho de Judas mas por não seguirmos o outro caminho. Traidores por maldade ou traidores por falta de forças diante de uma enorme pressão? Traidores a fim de tirar disso proveito ou traidores por termos diferentes convicções e opiniões? E foi assim que, entre perguntas e respostas, a figura do Judas se foi reconfigurando. Afinal no grupo dos Doze não havia ninguém que seguisse claramente o outro caminho, e se outros não enveredaram pela traição, ficaram estancados nas águas turvas da cobardia, considerando o fim de Jesus um fracasso. Judas foi mais claro, seguiu as suas convicções e as expectativas depositadas naquela nova proposta. É costume dizer-se acerca de algumas pessoas: prometia muito mas não deu grande coisa, ou terminou em nada. Prometia ou alguém esperava? Quem espera, espera o que deseja e não o que a outra pessoa poderá dar. Judas também pode ter dito, ou ao menos pensado: prometia muito, mas isto está a terminar tudo numa compota celestial. Judas foi honesto consigo mesmo e teve também uma reação honesta. Só tinha um pequeno problema que pode ser o de todos nós, queria que as coisas seguissem um rumo à sua maneira, do modo como ele pensava. Não estava interessado no caminho que as coisas estavam a levar e tomou medidas para provocar uma rutura que forçasse o caminho que lhe parecia correto. A reação de Pedro quase lhe dava uma ajuda quando arrancou uma orelha ao pobre Malco. Talvez este se tenha desviado para não ficar com a cabeça rachada. Mas não foi preciso muito tempo para que a pedra angular da Igreja negasse conhecer Jesus. E confessou isso a uma mulher, o que não abona nada em seu favor tendo em conta a condição da mulher naquele tempo e naquele mundo. Mas nunca nada está dado como certo. Judas saiu frustrado da sua tentativa e o único lugar que encontrou para pôr fim à sua desilusão foi o ramo de uma figueira, uma árvore de vida agora estéril, como terá ouvido mais que uma vez. Quanto ao Pedro teve um fim conforme ao arrependimento que o pôs no caminho do seu mestre. Mas o Judas não merece acusações tão duras como a de um asqueroso traidor, e ainda menos por interesses materiais. Também ele desejava um mundo novo pelo menos na sua pátria. Só que a pátria dele talvez não coincidisse exatamente com aquela que andava pelas ruas da amargura e do sofrimento. Era nessa que Jesus andava.
Frei Matias, O.P.
14.04.2014
 
 

 


13 abril 2014

Trabalho para todos?

Frei Bento Domingues, O. P.

1. A “Liga Operária Católica/Movimento dos Trabalhadores Cristãos” (LOC/MTC) tem uma longa história de confissão pública da fé cristã, no seio da luta operária e das suas organizações. Inscreve-se no caminho aberto por Jesus, um judeu marginal, de há dois mil anos, que terá sido educado por José, o artesão, na lei de ganhar o pão com o suor do seu rosto e não com o do rosto dos outros.

Jesus não era nem um pobre de pedir nem um proprietário ou empresário. O seu Evangelho tinha a ousadia de anunciar, aos pobres e excluídos, a bem-aventurança de um mundo de irmãos, que reunisse todos os filhos de Deus dispersos (Jo 11,52). Acabou por concluir que não seria tarefa fácil.

Aos seus discípulos interessava mais a esperança de chegar ao governo do novo poder do que embarcar nos sonhos loucos do Nazareno. Diante do líder crucificado, desiludidos, cada um voltou à sua vida.

 Segundo a 1ª carta aos Tessalonicenses – o primeiro escrito cristão - quando S. Paulo entrou em cena, a esperança tinha mudado radicalmente de sentido: o mais importante era preparar-se para o fim do mundo. 

        O apóstolo tinha-se entusiasmado tanto com a voz do Ressuscitado, que entrou em delírio. Verificado, porém, o equívoco, pediu aos cristãos para abandonarem as conversas sobre o fim do mundo e desautorizou os parasitas do engano, da forma mais prática: “quem não quer trabalhar que não coma! Às pessoas que levavam a vida à toa, muito atarefados a não fazer nada, ordena e exorta, no Senhor Jesus Cristo, que trabalhem tranquilamente a ganhar o pão com o próprio esforço” (2Tess 3).

        Aos militantes da LOC não se lhes pede que regressem às condições de trabalho de Jesus e José, às espectativas das comunidades de S. Paulo de há dois mil anos, nem às condições dos anos 30, do século passado, quando a LOC foi organizada em pleno Estado Novo. Ao exigirem “trabalho para todos”, não esperam certamente que a destruição dos postos de trabalho destes últimos anos venha a ser invertida. Sabem que o trabalho como já o conheceram não regressará. As técnicas da agricultura, das pescas e das indústrias, que aprenderam e usaram, morreram e não ressuscitarão.

         Sendo assim, a luta por “trabalho para todos” não será apenas o último grito do desespero ou um exercício quixotesco de alucinados? Ainda não terão ouvido falar da nova ou terceira revolução industrial que obriga a repensar, de forma radical, o trabalho, implicando a reorganização fundamental da economia e das relações humanas? Não saberão que está a nascer uma nova civilização sem eles e contra eles?

    2. Saber, sabem, mas não lhes serve de nada. Se para a maioria da população, o determinismo tecnológico é niilista, para alguns é exaltante e desses é o poder, o reino e a glória. Com muito menos operários, graças à informática e à robótica, crescem a produção e os lucros. Os vencimentos dos gestores de topo sobem em flecha e os dos trabalhadores, os mais mal pagos, vão deslizando. As desigualdades entre uns e outros são cada vez maiores. Os factores de desigualdade variam segundo os ramos de actividade. Alguns roçam o absurdo. O vertiginoso progresso da informática é um dos factores que mais conta no aprofundamento das maiores desigualdades.

       Apesar da cadeia de esmolas, montada ao longo do país, os ideais da revolução francesa - liberdade, igualdade e fraternidade, filhos laicos do Evangelho - foram substituídos por várias formas de opressão, pelo abismo económico e social, pela institucionalização do egoísmo e da humilhação.

      3. Se é previsível que, muito rapidamente, em muitos lugares, a maioria da população será constituída por desempregados, que adianta que a LOC, o Papa Francisco, o Bispo do Porto e todos os que ainda não perderam a capacidade de indignação, continuem a teimar na exigência de trabalho e emprego para todos?

       Talvez por uma razão muito simples: o trabalho é uma das dimensões fundamentais da existência humana e a situação de desemprego uma humilhação tal que afecta a própria consciência da dignidade humana – não valho nada! O desempregado é um marginal à força, um desqualificado.

       A displicência com que certos governantes, entidades patronais, comentadores e jornalistas de serviço se referem ao número de desempregados, revela uma degradação ética insuportável. O ser humano passou a não valer mesmo nada, é um aborto.

      É preciso gritar que as novas tecnologias, substituindo muitos postos de trabalho, abrem também a possibilidade de imaginar, reorganizar e distribuir, de modo novo, os calendários do trabalho, combinados com novas formas de cultura e espiritualidade. As novas tecnologias são para proveito de todos os seres humanos e não só de alguns. Importa ressuscitar a política do bem comum. Estarão os cristãos rendidos ao culto dos novos ídolos?

Sem a redescoberta de novos valores e modelos de vida pessoal e familiar, empresarial, social e política não adianta falar de austeridade, de empobrecimento ou desenvolvimento, pois é uma linguagem do castigo ou da promessa que assenta na demagogia. As visões curtas são sempre mais curtas do que se imaginam.

Portugal não pode sair do resgate com sucesso se os portugueses saírem de rastos.

in Público, 13.04.2014

06 abril 2014

A Religião Crítica e a Crítica da Religião

Frei Bento Domingues, O.P.

1. Conheci o casal luso-catalão, Inês Castel-Branco e Ignasi Moreta,
no Parlamento Mundial das Religiões, celebrado em Barcelona no âmbito do Fórum Universal das Culturas, em 2004. Esse jovem casal, apaixonado pelo diálogo inter-humano, inter-religioso e intercultural, falou-me, então, do seu projecto familiar no campo da edição. Pretendia criar um território cultural de bons livros que rompessem com a banalidade e onde reinassem, em conexão, o rigor, as ideias e o prazer, um autêntico hedonismo de leitura pausada e saboreada. Sabor e sabedoria têm, aliás, uma etimologia comum. A leitura e a vida verdadeira não são conceitos antagónicos. São sinónimos.
          Peça a peça, a Fragmenta Editorial foi-se tornando uma referência do universo de pensamento crítico e reflexivo. Para o seu conselho de assessores, as respostas institucionais às perguntas religiosas entraram em crise, mas as perguntas antigas e novas, de muitas origens, não se calam. O que já não existe são respostas tranquilizadoras. Andamos, por isso, todos à procura. Não aceitamos que os outros pensem, investiguem e escolham por nós. O que importa é pôr a circular ideias, pensamentos, pistas, críticas, isto é, tentativas de subversão das ideias feitas. Mas não será isto o que caracteriza o chamado “pensamento débil”?
         Não! É simplesmente e apenas pensamento! As respostas prefixadas não são pensamento nem fortaleza, mas um convite à demissão. É outro, o lema desta editora: não se demitir da faculdade de pensar, de investigar, de viver. Neste contexto, fragmentos não são restos perdidos, mas símbolos do vasto mundo da cultura crítica ocultada ou desatendida.  

2. Juan José Tamayo, é um conhecido teólogo espanhol, professor da Universidade Carlos III (Madrid), secretário geral da Associação de Teólogos e Teólogas João XXIII e colaborador do El País. Recebeu o Diploma e a Medalha de Ouro da Liga Espanhola Pro Direitos Humanos, pelo conjunto da sua obra e, de forma mais imediata, pela publicação, nos finais de 2013, de Cinquenta Intelectuales para una Consciencia Crítica, na referida editora. Na semana passada foi apresentada, em Lisboa, na Fundação José Saramago.
O primeiro dos cinquenta intelectuais é um filósofo ateu muito especial, Ernst Bloch; o último nome é o de uma teóloga feminista muçulmana, Amina Wadud. Entre estes, contam-se dois autores portugueses: José Saramago e Boaventura de Sousa Santos.
Os intelectuais não gozam de grande prestígio pela sua utilidade. O autor esforça-se por caracterizar o que se deve entender por intelectual, servindo-se de António Gramsci e de Edward Said. Para este último, o intelectual talvez seja uma espécie de memória antagonista que não permite que a consciência se distraia, passe ao lado dos problemas ou adormeça. Não se instalam no que já está conseguido, perguntam sempre pelo que deve ser (momento ético) e pelo que falta realizar (dimensão da praxis). Pertencem à cultura do desassossego.  
          Para Tamayo, a pergunta dos intelectuais é a da serpente no paraíso: numa discussão entre ela, Adão e Eva, sobre a necessidade de ter ou não aspirações além das da mera subsistência, a serpente diz-lhes: vós vedes as coisas e perguntais, porquê? Eu sonho coisas que nunca existiram e pergunto-me, porque não? (B.Shaw).
Na escolha de 50 perfis de intelectuais, homens e mulheres, de diferentes continentes que, ao longo do século XX, realizaram a ideia do intelectual crítico, optou por quem sabia conjugar o sentido do local e global na análise crítica, na abertura de alternativas. O futuro não está escrito.

3. Para muitos dos autores apresentados, a religião desempenhou ou desempenha um papel importante, nalguns casos fundamental, como experiência pessoal, objecto de estudo, dedicação profissional, mas sempre numa perspectiva libertadora. Situam-se em referência a diversas tradições religiosas - judaica, muçulmana, católica, protestante, budista - mas não as seguem de maneira submissa ou apologética. Os não crentes também são de signo diferente quanto à religião: entre ateus e agnósticos, umas vezes, reconhecem a sua importância positiva, noutros casos, destacam a sua negatividade.
Entre os teólogos e as teólogas também existe diversidade e afinidades. A maioria dos estudados aqui tem formação interdisciplinar e trabalha em diálogo com outros ramos do saber, das filosofias e das ciências.
Não foram excluídas as personalidades que exerceram funções de governo no seio de instituições religiosas que contribuíram para a mudança social, política e religiosa e criaram um novo magistério.
J. Tamayo destaca o seu critério na escolha desses 50 intelectuais: no meio das suas diferenças, que não são pequenas, observa-se um denominador comum: sentido crítico, não apologético; perspectiva laica, não confessional; atitude heterodoxa no modo de entender e viver a religião; ideologia crítica, não reprodutora do sistema; modo de olhar o futuro, não de restaurar o passado.
A religião foi o primeiro grito contra a miséria e a opressão. Deve ser denunciada quando, em nome do louvor, perde o sentido da indignação.

in Público, 06.04.2014