Frei Bento Domingues, O.P.
1.
Temos mandamentos da Lei de Deus e da Santa Madre Igreja, sete
Sacramentos, normas litúrgicas, Direito Canónico, tribunais
eclesiásticos, dogmas definidos, burocracias nas paróquias, nas dioceses
e na Cúria do Vaticano. Estando tudo previsto e regulamentado, porque
será que há tantos católicos insatisfeitos, a começar pelo Papa
Francisco, o mais irrequieto de todos?
Não basta dizer que há reformas urgentes a fazer nas
instituições da Igreja, que passa o tempo e nada acontece, porque estas
não são razões suficientes nem toda a verdade.
Vamos
por partes. Não é a multiplicação das instituições e das leis que
resolve os impasses de uma sociedade. No âmbito cristão, foi essa uma
percepção fundadora. Jesus de Nazaré cresceu e foi educado num ambiente
marcado pelas infindáveis proibições para não violar a sagrada
instituição do Sábado. Perante aquela obsessão, Jesus cunhou um aforismo
célebre: o Sábado é para o ser humano e não o ser humano para o Sábado.
O radicalismo de S. Paulo contra o primado da Lei é bem conhecido.
Como estamos na festa do Pentecostes, há logo quem
sugira e com base em várias passagens do Novo Testamento: falta o
Espírito Santo.
O abade cisterciense Joaquim de
Fiore (1132-1202) concebeu uma interpretação da História em três eras
ou idades que anunciava o reino da pura liberdade. As três idades
correspondiam às três pessoas da Santíssima Trindade: a do Pai (Antigo
Testamento), a do Filho e da sua Igreja (Novo Testamento) e a terceira
seria o Advento do Império do Divino Espírito Santo, sem leis e
instituições disciplinadoras da fé.
Nos Açores e na vasta emigração açoriana, as festas
do Divino Espírito Santo ainda conservam marcas desse sonho de
abundância de tudo pela igualitária partilha dos bens. Mesmo depois de
condenado, o “joaquinismo” sobrevive em metamorfoses diversas. O
Pentecostes, em clima cristão, evoca sempre o imprevisível, a
desregulamentação, a divina generosidade.
2. Não tinha, no entanto, que ser assim. A palavra é
uma simples transcrição do grego pentecostés, cinquenta dias depois da
Páscoa judaica, comemorativa do dom da Lei no Sinai, embora nas origens
fosse sobretudo uma festa agrícola, de alegria e acção de graças pelas
primícias das colheitas. Evocava a Lei de Deus e as leis da natureza,
obra do Criador.
Era uma celebração muito concorrida e reunia muitos
judeus vindos de muitos países. S. Lucas teve, então, uma ideia genial.
Aproveitou aquele cenário e alterou-lhe a significação: desatar o
movimento cristão da estreiteza das amarras do judaísmo ortodoxo, a
partir do próprio judaísmo. Vem tudo contado no começo do capítulo 2 dos
Actos dos Apóstolos (Act.). É a inauguração de uma nova era, numa
linguagem de fogo, que realiza o prodígio da máxima unidade no respeito
pela pluralidade dos povos, das linguagens e das culturas, uma união que
fecunda a diversidade.
É o Espírito que tinha alterado o rumo da vida de
Jesus de Nazaré, que irrompe na vida dos seus discípulos de forma
espantosa. Aqueles inveterados calculistas – que, ainda há pouco,
perguntavam a Jesus se era desta que iria restaurar a realeza em Israel –
descobrem, de repente, o mundo todo por horizonte. Não para o dominar,
mas para lhe testemunhar que a nova lei é a alegria de servir a
esperança, na imprevisibilidade de cada situação.
Não se trata, apenas, do desenho literário de um
sonho longínquo: os convertidos “eram assíduos ao ensino dos Apóstolos, à
união fraterna, à fracção do pão e às orações. (…) Todos os crentes
viviam unidos e possuíam tudo em comum. Vendiam terras e outros bens e
distribuíam o dinheiro por todos, de acordo com as necessidades de cada
um (Act.2, 42-46). O narrador insiste em que, devido à partilha dos bens
“não havia necessitados entre eles” (4,32-36).
3. Nos Actos, não há clivagem entre o espiritual e o
material, a vida interior e as relações sociais. O sinal mais
inequívoco da presença actuante do Espírito Santo é a partilha dos bens
espirituais e materiais. Nunca haverá boa partilha de uns sem a partilha
dos outros. O Papa, arreliado com as histórias em torno do Banco do
Vaticano, disse numa das Missas matinais, em Santa Marta, que S. Pedro
não tinha conta bancária.
Não vamos pedir aos Actos uma receita para a gestão
económica e financeira do mundo, da Europa ou de Portugal. Servem apenas
para nos dizer que, do ponto de vista ético, as coisas não têm de ser
irremediavelmente o que são. Podem ser diferentes.
Como é possível que Philippe Legrain – um
ex-conselheiro de Durão-Barroso na presidência da Comissão Europeia –
tenha revelado, numa entrevista a este jornal (Público 11/5/2014), que
os resgates à Grécia e a Portugal serviram para salvar os bancos
franceses e alemães, arruinando a vida de milhões de gregos e
portugueses, e que tudo tenha continuado sem qualquer sobressalto
político, sem consequências imediatas!?
A seguir ao teatro da gloriosa saída limpa, já nos acenam com ameaças de novo resgate. Quem nos resgatará de cenas tão tristes?
Só os inspirados pelo Espírito de verdade. Só esta nos libertará.
in Público, 08.06.2014
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