Frei Bento Domingues, O. P.
1. Esta interrogação, mansa e assustadora, faz parte do título de um livro de Alain Touraine que, infelizmente, ainda não perdeu actualidade [1]. Conheci bem o contexto da sua elaboração. Andava eu, na altura, a trabalhar na América Latina, em vários projectos, no meio e no rescaldo de ditaduras tenebrosas, confrontado com os inevitáveis debates em torno da revolução e da democracia.
Vivia entre entusiastas e adversários das comunidades de base e da teologia da libertação. Estava muito ligado a uma corrente que procurava abrir caminhos mais sensíveis à complexidade dos desafios locais e ao quadro internacional. Nas incertezas do tempo, os questionamentos deste sociólogo ajudavam a não perder de vista o essencial.
Isto acontecia já depois de ter participado em iniciativas, ora ousadas ora ingénuas, de teologia prática de inculturação do Evangelho em Africa – sobretudo em Moçambique – e fazendo eco de tudo o que se ensaiava e discutia noutros espaços eclesiais do continente – onde a questão da igualdade e da diferença tinha raízes coloniais, expressões neocoloniais e cruéis guerras civis, comandadas de fora e de dentro de cada país [2].
Evoco esse passado apenas para dizer que, ainda hoje, continuo perplexo perante a pergunta deste texto. A história da humanidade é, de facto, uma cruel história de desumanidade.
Conheci, desde muito novo, a estupidez da violência entre famílias e aldeias vizinhas que chegavam a expressões sangrentas nas feiras e nas romarias da minha zona. O meu pai, “Juiz de Paz”, era de uma paciência sem medida para conciliações e reconciliações sempre efêmeras. Tinha de abandonar, muitas vezes, os trabalhos do campo para ir servir de mediador em desacatos em aldeias bastante afastadas. Nunca quis aprender o “jogo do pau”, jogo aparente e treino real para ajuste de contas.
O que mais me impressionou, desde muito cedo, foram as narrativas de velhos conterrâneos que contavam, à lareira da minha avó, o que tinham passado, em França, na 1ª Grande Guerra. Por causa desses relatos, a minha mãe ofereceu todo o ouro que tinha para o monumento a Cristo Rei, por termos escapado à 2ª Grande Guerra Mundial!
2. Um conjunto de grandes estadistas conseguiu mostrar que, na Europa, era possível, em vez da guerra, construir um futuro de cooperação e de paz. Os dirigentes actuais não estão à altura dessa herança. Regressa a pergunta: iguais e diferentes - poderemos viver juntos?
Alguns souberam cooperar com o belicismo de G. W. Bush – entre eles, Durão Barroso – para levar mais guerra ao Iraque. Agora, perante a violência extrema, no Médio Oriente, a que chamaram “primavera árabe”, a única coisa que sabem patrocinar é o comércio das armas. Importa lembrar que João Paulo II foi dos raros dirigentes que denunciou a loucura do então presidente dos EUA.
O Papa Francisco foi em peregrinação à chamada Terra Santa. Todos louvaram o seu estilo, o seu comportamento e as suas propostas. Encorajou as autoridades a esforçarem-se para diminuir as tensões no Médio Oriente, principalmente na martirizada Síria, e a procurar uma solução equitativa para o conflito israelo-palestino. Convidou, por isso, o Presidente de Israel e o Presidente da Palestina, para irem ao Vaticano, a fim de rezarem juntos pela paz. Destacou que essa peregrinação à Terra Santa foi também a ocasião para confirmar na fé as comunidades cristãs martirizadas e manifestar-lhes a gratidão da Igreja inteira pela presença dos cristãos naquela região e em todo o Médio Oriente.
O convite do Papa foi aceite e cumprido, com a oração e plantação das pacíficas oliveiras no Vaticano. Entretanto, o governo de Israel não achou nada mais interessante para responder ao apelo do Papa do que alargar a ocupação de terras que lhe não pertencem, construindo mais e mais colonatos. O Presidente de Israel ficou bem na fotografia. Já está outro eleito.
3. Hoje, a Liturgia católica celebra a festa da Santíssima Trindade. As milenares monstruosidades da guerra, sempre reeditadas, podem levar a concluir, na expressão de José Saramago, que o ser humano não tem conserto. Será defeito de fabrico? Sabemos que a própria investigação científica e o desenvolvimento tecnológico foram e são usados para o que há de pior.
Segundo a linguagem simbólica da Bíblia, o ser humano foi modelado à imagem de Deus invisível. É divina a eterna Fonte do nosso parentesco.
Jesus Cristo testemunhou, em expressões escandalosamente familiares, que Deus – limite de todos os conceitos - não é solidão. Quando Tertuliano cunhou a palavra trindade pretendia dizer que Deus é a misteriosa coincidência da máxima unidade na máxima diversidade, a insondável comunhão de relações pessoais de conhecimento e amor.
Graças a esta fonte do nosso parentesco, as tendências de dominação e rivalidade não podem ser reorientadas, sem uma cultura do desenvolvimento humano, nas suas relações múltiplas, que promova o gosto da unidade na diversidade.
A alternativa monoteísta, pura e dura, é excelente para a ditadura.
in Público, 15.06.2014
[1] Iguais e Diferentes - Poderemos viver Juntos? Piaget, 1998.
[2] Jaime Nogueira Pinto, Jogos Africanos, Esfera dos Livros, 2008
1. Esta interrogação, mansa e assustadora, faz parte do título de um livro de Alain Touraine que, infelizmente, ainda não perdeu actualidade [1]. Conheci bem o contexto da sua elaboração. Andava eu, na altura, a trabalhar na América Latina, em vários projectos, no meio e no rescaldo de ditaduras tenebrosas, confrontado com os inevitáveis debates em torno da revolução e da democracia.
Vivia entre entusiastas e adversários das comunidades de base e da teologia da libertação. Estava muito ligado a uma corrente que procurava abrir caminhos mais sensíveis à complexidade dos desafios locais e ao quadro internacional. Nas incertezas do tempo, os questionamentos deste sociólogo ajudavam a não perder de vista o essencial.
Isto acontecia já depois de ter participado em iniciativas, ora ousadas ora ingénuas, de teologia prática de inculturação do Evangelho em Africa – sobretudo em Moçambique – e fazendo eco de tudo o que se ensaiava e discutia noutros espaços eclesiais do continente – onde a questão da igualdade e da diferença tinha raízes coloniais, expressões neocoloniais e cruéis guerras civis, comandadas de fora e de dentro de cada país [2].
Evoco esse passado apenas para dizer que, ainda hoje, continuo perplexo perante a pergunta deste texto. A história da humanidade é, de facto, uma cruel história de desumanidade.
Conheci, desde muito novo, a estupidez da violência entre famílias e aldeias vizinhas que chegavam a expressões sangrentas nas feiras e nas romarias da minha zona. O meu pai, “Juiz de Paz”, era de uma paciência sem medida para conciliações e reconciliações sempre efêmeras. Tinha de abandonar, muitas vezes, os trabalhos do campo para ir servir de mediador em desacatos em aldeias bastante afastadas. Nunca quis aprender o “jogo do pau”, jogo aparente e treino real para ajuste de contas.
O que mais me impressionou, desde muito cedo, foram as narrativas de velhos conterrâneos que contavam, à lareira da minha avó, o que tinham passado, em França, na 1ª Grande Guerra. Por causa desses relatos, a minha mãe ofereceu todo o ouro que tinha para o monumento a Cristo Rei, por termos escapado à 2ª Grande Guerra Mundial!
2. Um conjunto de grandes estadistas conseguiu mostrar que, na Europa, era possível, em vez da guerra, construir um futuro de cooperação e de paz. Os dirigentes actuais não estão à altura dessa herança. Regressa a pergunta: iguais e diferentes - poderemos viver juntos?
Alguns souberam cooperar com o belicismo de G. W. Bush – entre eles, Durão Barroso – para levar mais guerra ao Iraque. Agora, perante a violência extrema, no Médio Oriente, a que chamaram “primavera árabe”, a única coisa que sabem patrocinar é o comércio das armas. Importa lembrar que João Paulo II foi dos raros dirigentes que denunciou a loucura do então presidente dos EUA.
O Papa Francisco foi em peregrinação à chamada Terra Santa. Todos louvaram o seu estilo, o seu comportamento e as suas propostas. Encorajou as autoridades a esforçarem-se para diminuir as tensões no Médio Oriente, principalmente na martirizada Síria, e a procurar uma solução equitativa para o conflito israelo-palestino. Convidou, por isso, o Presidente de Israel e o Presidente da Palestina, para irem ao Vaticano, a fim de rezarem juntos pela paz. Destacou que essa peregrinação à Terra Santa foi também a ocasião para confirmar na fé as comunidades cristãs martirizadas e manifestar-lhes a gratidão da Igreja inteira pela presença dos cristãos naquela região e em todo o Médio Oriente.
O convite do Papa foi aceite e cumprido, com a oração e plantação das pacíficas oliveiras no Vaticano. Entretanto, o governo de Israel não achou nada mais interessante para responder ao apelo do Papa do que alargar a ocupação de terras que lhe não pertencem, construindo mais e mais colonatos. O Presidente de Israel ficou bem na fotografia. Já está outro eleito.
3. Hoje, a Liturgia católica celebra a festa da Santíssima Trindade. As milenares monstruosidades da guerra, sempre reeditadas, podem levar a concluir, na expressão de José Saramago, que o ser humano não tem conserto. Será defeito de fabrico? Sabemos que a própria investigação científica e o desenvolvimento tecnológico foram e são usados para o que há de pior.
Segundo a linguagem simbólica da Bíblia, o ser humano foi modelado à imagem de Deus invisível. É divina a eterna Fonte do nosso parentesco.
Jesus Cristo testemunhou, em expressões escandalosamente familiares, que Deus – limite de todos os conceitos - não é solidão. Quando Tertuliano cunhou a palavra trindade pretendia dizer que Deus é a misteriosa coincidência da máxima unidade na máxima diversidade, a insondável comunhão de relações pessoais de conhecimento e amor.
Graças a esta fonte do nosso parentesco, as tendências de dominação e rivalidade não podem ser reorientadas, sem uma cultura do desenvolvimento humano, nas suas relações múltiplas, que promova o gosto da unidade na diversidade.
A alternativa monoteísta, pura e dura, é excelente para a ditadura.
in Público, 15.06.2014
[1] Iguais e Diferentes - Poderemos viver Juntos? Piaget, 1998.
[2] Jaime Nogueira Pinto, Jogos Africanos, Esfera dos Livros, 2008
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