19 julho 2014

Ouvi uma cega ver e vi uma surda ouvir

Ó rapariga, então já viste o teu novo sobrinho? Não, tu já o viste? Já, passou aqui há um bocado. Passou, passou, diz a outra. Também o viste? Não o vi mas ouvi-o falar. Uma conversa a três que me deixou perplexo: desta vez ouvi uma cega ver e vi uma surda ouvir, e não sei que dizer ou sentir.

Sorri sozinho abertamente durante algum tempo e, enquanto sorria, juntei as pontas soltas de há dois mil anos com estas de há dois minutos, duas horas, dois dias. Por momentos também eu vi e ouvi com outros olhos e outros ouvidos que cegos e surdos me emprestaram. Imaginei ao vivo o entusiasmo que a pessoa de Jesus deverá ter provocado em toda a gente que era descriminada, marginalizada, afastada do convívio social e com Deus, por mãos humanas com mentes desumanas. Estas duas senhoras não são desprezadas, mas as suas insuficiências físicas dão sempre azo a uma atitude levemente discriminatória.

Todavia, há pessoas e acontecimentos, ou mesmo lugares, que de repente nos levam além da nossa cegueira e surdez. Diz S. Marcos: “Depois, foram para Jericó. E, saindo ele de Jericó com seus discípulos e uma grande multidão, Bartimeu, o cego filho de Timeu, estava sentado junto do caminho, mendigando. E, ouvindo que era Jesus de Nazaré, começou a clamar, e a dizer: Jesus, filho de Davi, tem misericórdia de mim! E muitos o repreendiam, para que se calasse; mas ele clamava cada vez mais: Filho de Davi tem misericórdia de mim! E Jesus, parando, disse que o chamassem; e chamaram o cego, dizendo-lhe: Tem coragem e levanta-te que ele chama-te. E ele, lançando fora a sua capa, levantou-se e foi ter com Jesus. E Jesus, falando, disse-lhe: Que queres que te faça? E o cego disse-lhe: Mestre, que eu tenha vista. E Jesus disse-lhe: Vai, a tua fé te salvou. E logo viu, e seguiu Jesus pelo caminho.” (Marcos 10:46-52).

O cego de Jericó via melhor Jesus do que aqueles que o seguiam. Estes mandaram-no calar porque ele era cego, não prestava para fazer parte do que de importante se estava a passar. Não lhe ligaram e até o mandaram calar quando chamava por Jesus. Mas quando Jesus disse que o chamassem, dirigiram-se amavelmente a ele dizendo-lhe que Jesus estava a chamá-lo. Ai vida! A verdade é que o Bar-Timeu, cego, via mais do que aqueles que andavam atrás de Jesus, via Jesus com os olhos da fé, com a alegria e a esperança de que ele vinha também para curar cegueiras, sendo que a maior parte delas não era dos olhos mas das mentes. Foi esse estado de espírito santo que permitiu a Jesus dizer-lhe que a sua fé fazia com que visse. Quem precisava de abrir os olhos eram os que viam Jesus apenas por fora, com interesses que os cegos, coxos ou surdos-mudos não tinham possibilidade de acompanhar. Jesus inverte as posições: mais do que ao cego cura-os a eles, ensinando-os a saber para quem e para onde devem olhar.

A dona Glória não ouve e a dona Graça não vê. Mas aguardavam com tal espectativa o sobrinho da vizinha que uma venceu a cegueira e a outra a surdez. A verdade é que foi a cega que disse que viu e a surda que disse que ouviu. Bem sei que não há um paralelo muito ajustado com os cegos e surdos que viam e ouviam Jesus, mas num lugar onde nada acontece e ninguém aparece, a surpresa de uma visita não é menos que um milagre. Mais ainda se é de alguém anunciado por outros já conhecidos. Num lugar onde há muita gente o espanto é encontrar alguém conhecido, num lugar onde há pouca o que espanta é aparecer alguém que não se conhece. O novo sobrinho da vizinha, em relação a quem havia uma certa expectativa, sabe-se lá porquê, foi ocasião para se verificar que o milagre está a dois passos de nós, a dois minutos de poder acontecer. A possibilidade de o reconhecermos e vivermos depende de um encontro feliz entre a esperança e a promessa, entre aquilo em que acreditamos e alguém que acredita em nós.

Fr. Matias

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