07 julho 2014

QUE TROUXE DE NOVO O PAPA FRANCISCO (2)

Frei Bento Domingues, O. P.

1. A sacralização da dimensão humana da Igreja e das respectivas estruturas acaba por impedir a sua reforma permanente e encobrir situações recentes de triste memória.

A Alegria do Evangelho* mostra que o Papa Francisco não tem acções nas indústrias de conserva: “Sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionado mais à evangelização do mundo actual do que à auto-preservação”.

Este sonho deve concretizar-se em processos de mudança nas paróquias, nos movimentos e nas dioceses. O Bispo deve estimular organismos de diálogo e participação nos quais todos sejam ouvidos e não apenas àqueles que estão sempre prontos a lisonjeá-lo.

Jorge Bergoglio comprometeu-se a praticar aquilo que pede aos outros, isto é, a trabalhar na conversão do Papado e das estruturas centrais da Igreja universal. Importa dar conteúdo à colegialidade e tornar as Conferências Episcopais sujeitos de atribuições concretas, mesmo doutrinais. A centralização excessiva não responde às necessidades actuais da evangelização a partir de situações sociais e culturais tão diversificadas.

Este argentino recusa a consagrada receita da rotina: fez-se sempre assim! É preciso ser ousados e criativos na tarefa de repensar objectivos, estruturas, estilos e métodos evangelizadores das respectivas comunidades. Sem identificação comunitária dos fins e dos meios, o sonho não passa de uma fantasia (nº 27-33).

2. Donde poderá vir a energia para tanta desenvoltura reformadora? Do encontro com o núcleo essencial do Evangelho. É este que dá sentido, beleza e fascínio ao novo estilo missionário, que faz a triagem entre o principal e o secundário e vence essa obsessão de amontoar doutrinas desconexas impostas à força de insistir no ridículo. 

Bergoglio retoma, do Concílio Vaticano II, uma perspectiva entretanto esquecida: “existe uma ordem ou hierarquia das verdades da doutrina católica, pois o nexo delas com o fundamento da fé cristã é diferente”.

Uma das tarefas teológicas mais urgentes consiste em passar, a pente fino, certas posições do magistério eclesiástico declaradas irreformáveis, certamente para evitar questões incómodas. Quem poderá fechar o futuro ao Espírito de Deus?

O Papa retoma o ensino de S. Tomás de Aquino para destacar que também na mensagem moral da Igreja existe hierarquia de virtudes e acções que delas decorrem. ”O elemento principal da Nova Lei é a graça do Espírito Santo, manifestada através da fé que opera pelo amor”. Relativamente ao agir exterior, a misericórdia é a maior de todas as virtudes, pois compete-lhe debruçar-se sobre os outros e – o que mais conta na realidade - remediar as misérias alheias. Tudo o resto só existe para secundar e exprimir o Evangelho da graça, do amor e da liberdade que exige e supera a justiça (S. Th. I-II, 66; 106-108).

Bergoglio conhece bem as consequências nefastas nas orientações pastorais, quando esta hierarquia não é respeitada e as virtudes que deveriam ser as mais presentes na pregação e na catequese – a caridade e a justiça - são as mais ausentes! Acontece a mesma coisa quando se fala mais da lei do que da graça, mais da Igreja do que de Jesus Cristo, mais do Papa do que da palavra de Deus (nº 36-38).

A moral cristã não é uma ética estoica, uma ascese, uma mera filosofia prática nem um catálogo de pecados e erros. É a resposta de amor ao amor que nos amou primeiro.

3. Este Papa resolveu descongelar a liberdade e o pluralismo na interpretação da Palavra revelada, honrando o trabalho dos exegetas e dos teólogos, assim como o pensamento filosófico e as ciências humanas. Serve-se de Tomás de Aquino para rejeitar o sonho de uma doutrina monolítica defendida por todos. O Evangelho é multiforme. 

O empenhamento dessacralizador do novo hóspede da Casa de Santa Marta põe em causa costumes, alguns muito radicados no decurso da história da Igreja, mas que não têm ligação directa ao núcleo de Evangelho. Diz a mesma coisa de normas ou preceitos eclesiais que podem ter sido muito eficazes noutras épocas, mas já não são canais de vida. Não tenhamos medo de os rever!

 Recorre a Tomás de Aquino para sublinhar que os preceitos dados por Cristo e pelos Apóstolos ao povo de Deus “são pouquíssimos”. A Igreja não deve transformar a nossa religião numa escravatura, quando a misericórdia de Deus quis que ela fosse livre e libertadora. A Igreja de portas abertas e enlameada pelos caminhos de todas as periferias o mundo, encontra os passos de Cristo (nº 37-49)

O guia do Papa, no seu programa reformador, é S. Tomás de Aquino, cuja novidade o espanta. Umberto Eco lembrou que, desde os finais do séc. XIX até aos nossos dias, uma corrente conservadora tentou transformar um incendiário, o condenado do séc. XIII, num bombeiro.

Esperemos que o irrequieto Bergoglio continue a desassossegar as Igrejas, as religiões, a banca, as sociedades, os governos para que se coloquem ao serviço da justiça.

P.S. A Sophia não precisa nada do Panteão. O Panteão Nacional precisa muito da Sophia.

Público, 06.07.2014

* Nesta crónica limitámo-nos a tocar em alguns números do 1º cap. do E.G.

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