Frei Bento Domingues,
O. P.
1. Hoje é o primeiro Domingo do
Advento. Mudou o cenário exterior das celebrações litúrgicas, quanto a
paramentos, velas, textos e músicas. Estas modificações de ornamento só merecem
atenção se exprimirem a urgência de um novo impulso na alma profunda da Igreja,
isto é, dos cristãos, assim como nas reformas das instituições mais resistentes
à mudança.
Tornou-se
convencional dizer que o Advento convida à vigilância e à meditação, para
entrar no misterioso sentido do tempo. Não apenas o que é medido pelo relógio e
desfolhado nos calendários, no fluxo cósmico das estações, no ritmo biológico
que vai dizendo o nosso desgaste inexorável. No entanto, como diz S. Paulo, não nos deixemos abater. Pelo contrário,
embora o nosso aspecto exterior vá caminhando para a sua ruína, a nossa vida
interior renova-se dia a dia (…) pois o que se vê é transitório, mas o que não
se vê é eterno (2 Co 4, 16-18).
A pergunta mais
importante desta quadra litúrgica não é sobre as nossas experiências de outono
da vida, mais chuvoso ou mais ameno. Poderia talvez ser formulada assim: qual é
a graça regeneradora, para não aceitarmos - usando as palavras do Papa
Francisco – que milhões de seres humanos, nossos irmãos, vegetem e morram com o
estatuto de sobrantes e descartáveis?
2.
Para a inteligência bem informada de história e antropologia, de profunda
compreensão teológica e espiritual dos paradoxos da celebração do ano litúrgico
– com analogias noutras culturas e religiões, de quem vai recebendo e
rejeitando certas influências, - recomendo uma obra notável, de dimensões
razoáveis, bebida nas melhores fontes e inspirada nos mestres mais inovadores,
traduzida do espanhol e, inserida na colecção coimbrã “Para Viver”[1].
Este livro, de José Manuel Bernal, não tem
nada a ver com a abundante literatura de lugares comuns do ritualismo e do
espiritualismo moralista ou das folhinhas e receitas do agrado da ignorância
homilética. Pretende contribuir para que os pastores consigam organizar
celebrações de qualidade onde seja possível uma profunda experiência do
mistério transformante. Espero regressar a esta obra, sobretudo ao capítulo
fundamental sobre os rituais sagrados da “regeneração do tempo”.
Falar do Advento é
pensar no Natal. A. Cunha de Oliveira[2], sacerdote católico,
dispensado do ministério, casado e notável exegeta da Bíblia, publicou uma obra
minuciosa, erudita, volumosa, fundamentada e extremamente clara, cuja leitura é
indispensável para quantos se interessam pela verdade, pelas lendas e mitos em
torno do Natal. Não conheço nada de comparável, em português.
O Natal significa
que no cristianismo a salvação não
se atinge pela fuga ou desprezo do mundo, embora seja essa uma das tentações
que, periodicamente, o assaltam.
Foi inscrito, pela
pena de S. Lucas, no devir da história universal, colocando a figura mítica de
Adão como o primeiro antepassado de Jesus Cristo. No impressionante hino
cósmico da Carta aos Colossenses,
surge como princípio e sentido de todas as realidades, visíveis e invisíveis.
No conhecido poema que abre o Evangelho de S. João, o Verbo eterno fez-se carne, fragilidade humana. Numa
dramática poesia de S. Paulo (Fl 2, 6-11), Cristo é reconhecido como divino na
suprema humilhação da cruz.
Como escreveu E. Schillebeeckx,
O.P.[3], a história dos seres
humanos é a narrativa de Deus. Fora do mundo não há salvação, neutralizando o
nefasto e abusado aforismo: “fora da Igreja não há salvação”.
Recordo-me, como
se fosse hoje, do espanto de muitos quando ele surgiu, no congresso
internacional de teólogos dominicanos, em Valência (1966), a defender a
obrigatória inclusão do mundo na lista dos clássicos “lugares teológicos”.
3. A virtude do Advento é a
esperança. Não pode ser a esperança de que haverá Natal, mas que este produza o
renascimento da Igreja e do Mundo. Precisamos de voltar sempre às narrativas de
S. Mateus e de S. Lucas chamadas, impropriamente, Evangelhos da Infância. Para
o seu estudo remeto para o citado livro de Cunha de Oliveira. Se forem
entendidas como lições de pura história ou de biologia, como tantas vezes
acontece, fazem-nos perder a esperança de acreditar na verdade mais profunda do
Novo Testamento: Jesus Cristo era em tudo
igual a nós, excepto no pecado.
Quem melhor escreveu acerca desta virtude do
Advento foi o poeta- teólogo, Charles Péguy[4]: O que me espanta, diz Deus, é a esperança./ E disso não me canso./ Essa
pequena esperança que parece não ser nada./ (…) Que veio ao mundo no dia de
Natal do ano passado./ (…) Ama o que será./ No tempo e na eternidade.
A esperança merece
todos os elogios. Sem ela é impossível viver. Mas melhor do que esperar é ter a
certeza de que somos desejados e esperados. Afinal é este o evangelho dentro do
Evangelho, a célebre parábola do filho
pródigo (Lc 15, 11-31). Deus tem eternas saudades de nós.
Público, 30.11.2014
[1] José Manuel Bernal, O Ano Litúrgico, Gráfica de Coimbra,
2001
[2] Natal: Verdade, Lenda, Mito, Instituto Açoriano de Cultura, 2012
[3] L´histoire
des hommes, récit de Dieu, Cerf, 1992
[4] Os portais do mistério da segunda virtude, Paulinas, 2013