Frei Bento Domingues, O. P.
1. Deparei com este título num artigo de R. F. Machado, O desencantamento da experiência de Deus em House, dedicado a estudar as relações entre fé e ciência, a partir de uma conhecida série norte-americana. O autor já tinha consagrado uma tese de doutoramento ao mesmo tema [1]. Numa das conversas entre House e uma freira doente – que disfarçava uma complicada história pessoal com a vontade de Deus - o médico acabou por explodir: acredite no que quiser, mas não seja idiota. Mesmo sob a protecção divina, ao atravessar a rua, se não quiser ser atropelada, olhe bem para os dois lados.
O Papa, ao regressar das Filipinas, tem uma observação ainda mais rústica: pensam alguns que para serem bons católicos - desculpem o termo - devem ser como coelhos. Contou, a propósito, a pergunta feita a uma mãe de sete filhos, todos nascidos de cesariana: como se atreve a pensar em ter ainda outro? Eu acredito em Deus! Bergoglio lembra-lhe que Ele nos deu meios para sermos responsáveis.
Sempre me irritou a beata invocação da vontade de Deus, a propósito de tudo e de nada. De forma consciente ou inconsciente é a arma psicológica sempre disponível. Contaram-me que um superior autoritário invocou a vontade de Deus para exigir a obediência de um membro da comunidade, acerca de uma decisão algo arbitrária. Resposta pronta e firme: devo-lhe obediência e cumprirei, mas não julgue que a santíssima e misteriosíssima vontade de Deus passa pela sua realíssima gana!
Fazer chantagem com a vontade de Deus, é um pecado contra o Céu.
2. Quando ouço falar de Deus levianamente, lembro-me de uma carta de S. Paulo a Timóteo [2]: “Deus mora numa luz inacessível, que nenhum ser humano viu, nem pode ver”.
Santo Agostinho advertiu: “Por mais altos que sejam os voos do pensamento, Ele está ainda mais além. Se compreendeste, não é Deus. Se pudestes compreender, não foi Deus que compreendeste, mas apenas uma representação de Deus. Se quase pudeste compreender, então foste enganado pela tua reflexão”.
S. Tomás de Aquino sustentava que de Deus tanto mais saberemos quanto mais nos dermos conta de que não sabemos. Da sua experiência mística, no final da vida, brotou a confissão: tudo o que escrevi parece-me palha! No entanto, cantou numa belíssima poesia iluminista: atreve-te quanto puderes! Em suma: ousar e saber os limites da nossa ousadia.
O sentido agudo da transcendência divina, não é fruto de uma fuga do mundo ou uma alienação e a chamada teologia negativa não resulta de um cansaço especulativo. São tudo expressões do esforço para não ceder às tentações idolátricas, sejam de que natureza forem.
S. Paulo, no célebre discurso no Areópago de Atenas recorreu à sua experiência judaica para falar da transcendência divina e ao poeta Arato, da Cilícia (séc. III a.C.) para falar da sua inteira imanência: a divindade não está longe de nós; é nela que vivemos, nos movemos e existimos. Somos da sua raça [3].
No cristianismo, confessa-se que Deus se esvazia da omnipotência dominadora para se revelar como puro dom do amor que nos amou primeiro, pura e simplesmente porque é amor de absoluta generosidade, ágape [4].
3. Para não invocar o nome de Deus em vão, ou contra o ser humano, importa ter cuidados com a linguagem teológica. Como princípio geral, deveremos considerar como falsa toda a afirmação acerca de Deus que despreze a liberdade humana, a sua responsabilidade e a sua alegria. Não é o ser humano para a religião, mas a religião para o ser humano. Esta sentença é atribuída ao próprio Cristo, mas esquecida ao longo dos séculos [5].
É pelos frutos que se conhece a árvore. Os frutos da orientação económica mundial não são todos apetecíveis. Se a tão louvada globalização da economia faz com que metade da riqueza do mundo esteja, brevemente, nas mãos de apenas 1% da população mundial, podemos acreditar à vontade nas teorias e práticas económicas que quisermos, mas não sejamos idiotas. Se o comércio internacional das armas faz com que cheguem à República Centro Africana armas de todos os géneros e proveniências, se as granadas de mão custam menos do que uma coca-cola, meio dólar, o resultado será a continuação da guerra.
No momento em que escrevo, ainda não se sabe os resultados da Conferência de Davos, onde mais de 2.500 participantes de 140 países, incluindo mais de quarenta chefes de Estado e de governo e um enorme grupo de empresários, terão a oportunidade de analisar a actual crise económica, política e tecnológica, expandir a sua rede de contactos e explorar possíveis contratos e acordos.
Não sei se terão alguns momentos para pensar com lucidez que as suas opções não podem estar colonizadas apenas por 1% da humanidade que goza de metade da riqueza mundial.
Ao deixarem 99% da população fora dos seus cuidados, estão a criar boas condições para a miséria e para o terrorismo. Depois, só se podem queixar de si próprios. Com tantos chefes de Estado e de governo, com tantos empresários e peritos em todas as áreas da governação alguém terá de perguntar: como conseguimos ser tão idiotas?
Público, 25.01.2015
- - - - - - - - - - -
[1] Cadernos de Teologia Pública, n.84, 2014
[2] 1 Tim. 6,16
[3] Act 17, 24-29
[4] Fl 2, 5-11; 1Jo 4
[5] Mc 2. 23-28 e paralelos; Mt 9. 13
1. Deparei com este título num artigo de R. F. Machado, O desencantamento da experiência de Deus em House, dedicado a estudar as relações entre fé e ciência, a partir de uma conhecida série norte-americana. O autor já tinha consagrado uma tese de doutoramento ao mesmo tema [1]. Numa das conversas entre House e uma freira doente – que disfarçava uma complicada história pessoal com a vontade de Deus - o médico acabou por explodir: acredite no que quiser, mas não seja idiota. Mesmo sob a protecção divina, ao atravessar a rua, se não quiser ser atropelada, olhe bem para os dois lados.
O Papa, ao regressar das Filipinas, tem uma observação ainda mais rústica: pensam alguns que para serem bons católicos - desculpem o termo - devem ser como coelhos. Contou, a propósito, a pergunta feita a uma mãe de sete filhos, todos nascidos de cesariana: como se atreve a pensar em ter ainda outro? Eu acredito em Deus! Bergoglio lembra-lhe que Ele nos deu meios para sermos responsáveis.
Sempre me irritou a beata invocação da vontade de Deus, a propósito de tudo e de nada. De forma consciente ou inconsciente é a arma psicológica sempre disponível. Contaram-me que um superior autoritário invocou a vontade de Deus para exigir a obediência de um membro da comunidade, acerca de uma decisão algo arbitrária. Resposta pronta e firme: devo-lhe obediência e cumprirei, mas não julgue que a santíssima e misteriosíssima vontade de Deus passa pela sua realíssima gana!
Fazer chantagem com a vontade de Deus, é um pecado contra o Céu.
2. Quando ouço falar de Deus levianamente, lembro-me de uma carta de S. Paulo a Timóteo [2]: “Deus mora numa luz inacessível, que nenhum ser humano viu, nem pode ver”.
Santo Agostinho advertiu: “Por mais altos que sejam os voos do pensamento, Ele está ainda mais além. Se compreendeste, não é Deus. Se pudestes compreender, não foi Deus que compreendeste, mas apenas uma representação de Deus. Se quase pudeste compreender, então foste enganado pela tua reflexão”.
S. Tomás de Aquino sustentava que de Deus tanto mais saberemos quanto mais nos dermos conta de que não sabemos. Da sua experiência mística, no final da vida, brotou a confissão: tudo o que escrevi parece-me palha! No entanto, cantou numa belíssima poesia iluminista: atreve-te quanto puderes! Em suma: ousar e saber os limites da nossa ousadia.
O sentido agudo da transcendência divina, não é fruto de uma fuga do mundo ou uma alienação e a chamada teologia negativa não resulta de um cansaço especulativo. São tudo expressões do esforço para não ceder às tentações idolátricas, sejam de que natureza forem.
S. Paulo, no célebre discurso no Areópago de Atenas recorreu à sua experiência judaica para falar da transcendência divina e ao poeta Arato, da Cilícia (séc. III a.C.) para falar da sua inteira imanência: a divindade não está longe de nós; é nela que vivemos, nos movemos e existimos. Somos da sua raça [3].
No cristianismo, confessa-se que Deus se esvazia da omnipotência dominadora para se revelar como puro dom do amor que nos amou primeiro, pura e simplesmente porque é amor de absoluta generosidade, ágape [4].
3. Para não invocar o nome de Deus em vão, ou contra o ser humano, importa ter cuidados com a linguagem teológica. Como princípio geral, deveremos considerar como falsa toda a afirmação acerca de Deus que despreze a liberdade humana, a sua responsabilidade e a sua alegria. Não é o ser humano para a religião, mas a religião para o ser humano. Esta sentença é atribuída ao próprio Cristo, mas esquecida ao longo dos séculos [5].
É pelos frutos que se conhece a árvore. Os frutos da orientação económica mundial não são todos apetecíveis. Se a tão louvada globalização da economia faz com que metade da riqueza do mundo esteja, brevemente, nas mãos de apenas 1% da população mundial, podemos acreditar à vontade nas teorias e práticas económicas que quisermos, mas não sejamos idiotas. Se o comércio internacional das armas faz com que cheguem à República Centro Africana armas de todos os géneros e proveniências, se as granadas de mão custam menos do que uma coca-cola, meio dólar, o resultado será a continuação da guerra.
No momento em que escrevo, ainda não se sabe os resultados da Conferência de Davos, onde mais de 2.500 participantes de 140 países, incluindo mais de quarenta chefes de Estado e de governo e um enorme grupo de empresários, terão a oportunidade de analisar a actual crise económica, política e tecnológica, expandir a sua rede de contactos e explorar possíveis contratos e acordos.
Não sei se terão alguns momentos para pensar com lucidez que as suas opções não podem estar colonizadas apenas por 1% da humanidade que goza de metade da riqueza mundial.
Ao deixarem 99% da população fora dos seus cuidados, estão a criar boas condições para a miséria e para o terrorismo. Depois, só se podem queixar de si próprios. Com tantos chefes de Estado e de governo, com tantos empresários e peritos em todas as áreas da governação alguém terá de perguntar: como conseguimos ser tão idiotas?
Público, 25.01.2015
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[1] Cadernos de Teologia Pública, n.84, 2014
[2] 1 Tim. 6,16
[3] Act 17, 24-29
[4] Fl 2, 5-11; 1Jo 4
[5] Mc 2. 23-28 e paralelos; Mt 9. 13
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