Frei Bento Domingues, O.P.
1. A escravatura não tem data de começo. Com a descoberta das Américas começaram a ser usadas como escravas as populações ameríndias. Depois, recorreu-se ao comércio transatlântico. Calculando que por cada escravo que chegava vivo, quatro morriam pelo caminho, o resultado são sessenta milhões de africanos, a que é preciso acrescentar ainda os destinados às colónias asiáticas de Inglaterra e de França. Somando tudo, temos, aproximadamente, noventa milhões. Como perguntava Antón de Montesinos: E estes não serão seres humanos?[1]
Fr. Bartolomé de las Casas tinha razão para denunciar a destruição tanto das Índias e como a de África.[2]
Marcello Caetano[3] verifica que até ao século XIX, todas as nações coloniais praticaram a escravatura. As chamadas colónias de plantação careciam de mão-de-obra adaptada às condições do meio e que só podia ser obtida mediante a compra de escravos, no continente africano. Os navios empregados no tráfico dirigiam-se aos portos de embarque, onde se encontravam estabelecidos os intermediários – os negreiros -, que geralmente obtinham as suas peças por meio de permuta feita com os régulos indígenas, visto estes disporem despoticamente da liberdade e da vida dos súbditos, além de possuírem também escravos e de poderem sempre obter mais através da rapina e da guerra com outras tribos.
Morrem umas escravaturas, nascem outras.
2. O Papa, na sua mensagem para o Dia Mundial da Paz, nota que hoje, na sequência duma evolução positiva da consciência humana, a escravatura foi formalmente abolida. No próprio Direito Internacional consta como norma irrevogável.
Mas, apesar da comunidade internacional ter adoptado numerosos acordos para acabar com a escravatura, em todas as suas formas e ter lançado diversas estratégias para a combater, ainda hoje milhões de pessoas – crianças, mulheres e homens, de todas as idades – são privadas de liberdade e constrangidas a viver em condições semelhantes às da escravatura.
Bergoglio não esquece a teologia do Antigo (AT) e do Novo Testamento (NT) que fundamenta a defesa da pessoa, que tem valor, mas não tem preço. Mas não repousa nessa memória. Pensa nos trabalhadores e trabalhadoras, mesmo menores, escravizados nos mais diversos sectores, a nível formal e informal, desde o trabalho doméstico aos trabalhos agrícolas e industriais, tanto nos países em que não há legislação segundo os padrões internacionais, como naqueles em que há e não é cumprida.
Não esquece as condições de vida de muitos migrantes que, ao longo do seu trajecto dramático, passam fome, são privados de liberdade, despojados dos seus bens e abusados física e sexualmente. Lembra aqueles que, chegados ao seu destino, depois duma viagem duríssima e dominada pelo medo e a insegurança, ficam detidos em condições às vezes desumanas.
Recorda os que em diversas circunstâncias sociais, políticas e económicas são obrigados a passar à clandestinidade, e aqueles que, para permanecer na legalidade, aceitam viver e trabalhar em condições indignas, especialmente quando as legislações nacionais criam ou permitem uma dependência estrutural do trabalhador migrante em relação ao dador de trabalho como, por exemplo, condicionando a legalidade da estadia ao contrato de trabalho... Sim! O Papa pensa no «trabalho escravo».
Como esquecer as pessoas obrigadas a prostituírem-se, entre as quais se contam muitos menores, as escravas e escravos sexuais; as mulheres forçadas a casar-se, quer as que são vendidas para casamento quer as que são deixadas em sucessão a um familiar por morte do marido, sem poderem recusar?
Bergoglio não pode deixar de pensar nos menores e adultos, objecto de tráfico e comercialização para remoção de órgãos, para ser recrutados como soldados, para servir de pedintes, para actividades ilegais como a produção ou venda de drogas, ou para formas disfarçadas de adopção internacional.
Finalmente, todos aqueles e aquelas que são raptados e mantidos em cativeiro por grupos terroristas, servindo os seus objectivos como combatentes ou, especialmente no que diz respeito às meninas e mulheres, como escravas sexuais. Muitos desaparecem - alguns são vendidos várias vezes – outros torturados, mutilados, mortos.
3. No cristianismo não pode haver senhores e escravos. Só irmãos. Jesus nem servos quer, quer amigos. Talvez não fosse má ideia acabar, de uma vez por todas, com as piedosas evocações de servas e escravas. Que se perderia com isso?
Quando se reza: eis a escrava do Senhor, talvez não se pense, que este Senhor não quer nem escravos nem escravas, mas amigos e amigas. Porque não lhe fazer a vontade?
Bom Ano
Público, 04.01.2015
- - - - - -
[1] Cf. E estes não serão Homens? Os dominicanos e a evangelização das Américas, Tenacitas, Coimbra, 2014
[2] Brevíssima relação da destruição das Índias, Ed. Antígona, Lisboa 1990; Brevissima Relacion de la Destruccion de Africa, San Esteban, Salamanca, 1989; Brevíssima relação da destruição das Índias, Ed. Antígona, Lisboa 1990; Brevissima Relacion de la Destruccion de Africa, San Esteban, Salamanca, 1989
[3] Portugal e o Direito Colonial Internacional, Lisboa, 1948, p 46
1. A escravatura não tem data de começo. Com a descoberta das Américas começaram a ser usadas como escravas as populações ameríndias. Depois, recorreu-se ao comércio transatlântico. Calculando que por cada escravo que chegava vivo, quatro morriam pelo caminho, o resultado são sessenta milhões de africanos, a que é preciso acrescentar ainda os destinados às colónias asiáticas de Inglaterra e de França. Somando tudo, temos, aproximadamente, noventa milhões. Como perguntava Antón de Montesinos: E estes não serão seres humanos?[1]
Fr. Bartolomé de las Casas tinha razão para denunciar a destruição tanto das Índias e como a de África.[2]
Marcello Caetano[3] verifica que até ao século XIX, todas as nações coloniais praticaram a escravatura. As chamadas colónias de plantação careciam de mão-de-obra adaptada às condições do meio e que só podia ser obtida mediante a compra de escravos, no continente africano. Os navios empregados no tráfico dirigiam-se aos portos de embarque, onde se encontravam estabelecidos os intermediários – os negreiros -, que geralmente obtinham as suas peças por meio de permuta feita com os régulos indígenas, visto estes disporem despoticamente da liberdade e da vida dos súbditos, além de possuírem também escravos e de poderem sempre obter mais através da rapina e da guerra com outras tribos.
Morrem umas escravaturas, nascem outras.
2. O Papa, na sua mensagem para o Dia Mundial da Paz, nota que hoje, na sequência duma evolução positiva da consciência humana, a escravatura foi formalmente abolida. No próprio Direito Internacional consta como norma irrevogável.
Mas, apesar da comunidade internacional ter adoptado numerosos acordos para acabar com a escravatura, em todas as suas formas e ter lançado diversas estratégias para a combater, ainda hoje milhões de pessoas – crianças, mulheres e homens, de todas as idades – são privadas de liberdade e constrangidas a viver em condições semelhantes às da escravatura.
Bergoglio não esquece a teologia do Antigo (AT) e do Novo Testamento (NT) que fundamenta a defesa da pessoa, que tem valor, mas não tem preço. Mas não repousa nessa memória. Pensa nos trabalhadores e trabalhadoras, mesmo menores, escravizados nos mais diversos sectores, a nível formal e informal, desde o trabalho doméstico aos trabalhos agrícolas e industriais, tanto nos países em que não há legislação segundo os padrões internacionais, como naqueles em que há e não é cumprida.
Não esquece as condições de vida de muitos migrantes que, ao longo do seu trajecto dramático, passam fome, são privados de liberdade, despojados dos seus bens e abusados física e sexualmente. Lembra aqueles que, chegados ao seu destino, depois duma viagem duríssima e dominada pelo medo e a insegurança, ficam detidos em condições às vezes desumanas.
Recorda os que em diversas circunstâncias sociais, políticas e económicas são obrigados a passar à clandestinidade, e aqueles que, para permanecer na legalidade, aceitam viver e trabalhar em condições indignas, especialmente quando as legislações nacionais criam ou permitem uma dependência estrutural do trabalhador migrante em relação ao dador de trabalho como, por exemplo, condicionando a legalidade da estadia ao contrato de trabalho... Sim! O Papa pensa no «trabalho escravo».
Como esquecer as pessoas obrigadas a prostituírem-se, entre as quais se contam muitos menores, as escravas e escravos sexuais; as mulheres forçadas a casar-se, quer as que são vendidas para casamento quer as que são deixadas em sucessão a um familiar por morte do marido, sem poderem recusar?
Bergoglio não pode deixar de pensar nos menores e adultos, objecto de tráfico e comercialização para remoção de órgãos, para ser recrutados como soldados, para servir de pedintes, para actividades ilegais como a produção ou venda de drogas, ou para formas disfarçadas de adopção internacional.
Finalmente, todos aqueles e aquelas que são raptados e mantidos em cativeiro por grupos terroristas, servindo os seus objectivos como combatentes ou, especialmente no que diz respeito às meninas e mulheres, como escravas sexuais. Muitos desaparecem - alguns são vendidos várias vezes – outros torturados, mutilados, mortos.
3. No cristianismo não pode haver senhores e escravos. Só irmãos. Jesus nem servos quer, quer amigos. Talvez não fosse má ideia acabar, de uma vez por todas, com as piedosas evocações de servas e escravas. Que se perderia com isso?
Quando se reza: eis a escrava do Senhor, talvez não se pense, que este Senhor não quer nem escravos nem escravas, mas amigos e amigas. Porque não lhe fazer a vontade?
Bom Ano
Público, 04.01.2015
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[1] Cf. E estes não serão Homens? Os dominicanos e a evangelização das Américas, Tenacitas, Coimbra, 2014
[2] Brevíssima relação da destruição das Índias, Ed. Antígona, Lisboa 1990; Brevissima Relacion de la Destruccion de Africa, San Esteban, Salamanca, 1989; Brevíssima relação da destruição das Índias, Ed. Antígona, Lisboa 1990; Brevissima Relacion de la Destruccion de Africa, San Esteban, Salamanca, 1989
[3] Portugal e o Direito Colonial Internacional, Lisboa, 1948, p 46
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