Frei Bento Domingues, O.P.
1. Durante vários anos, ao interromper estas crónicas durante o mês de Agosto, costumava destacar alguns livros para férias. Dizem-me que já não vale a pena. Hoje, quem não for velho e desajeitado como eu, dispõe dos livros que quiser nos seus iPhones ou iPads, ligados a uma nuvem, limpa, vadia e sempre disponível.
Acerca das férias, a Igreja distribuiu, na Missa do passado Domingo, um texto curioso, tirado do Evangelho de S. Marcos. Por razões óbvias, Jesus de Nazaré resolveu partir para férias com os discípulos: ”vinde para um lugar deserto e descansai um pouco sozinhos. Com efeito, os que chegavam e os que partiam eram tantos, que não tinham tempo nem para comer” [1].
Fugiram de barco, mas não adiantou nada. Tinham sido vistos. Quando desembarcaram, Jesus deparou com uma multidão que o procurava e, diz o texto, ficou cheio de compaixão, eram como ovelhas sem pastor. Como poderia ele ficar indiferente perante aqueles que andavam “cansados e oprimidos” [2]?
“Começou logo a ensinar-lhes muitas coisas”. Entusiasmaram-se e perderam a noção do tempo. Os discípulos, sempre desconfiados das estravagâncias do Mestre, foram-lhe dizer já era muito tarde e que despedisse aquela gente para que pudesse ir aos campos e às aldeias mais próximas arranjar algo para comer.
Resposta pronta de Jesus: “Dai-lhes vós de comer”. Fizeram contas e não havia dinheiro para ir comprar pão para aquela multidão! Jesus insiste: ide ver quantos pães tendes. Tinham cinco e dois peixes!
Foram para um lugar relvado, sentaram-se no chão, em grupos de cem e cinquenta pessoas. Jesus pegou naqueles cinco pães e dois peixes e, de olhos no céu, proferiu uma bênção, partiu os pães e deu-os aos discípulos para os distribuírem. Comeram todos quanto quiseram e ainda sobraram doze cestos de pedaços de pão e de peixes.
2. Depois de uma leitura destas, o padre corre o risco de ficar a gaguejar uma homilia inconsequente, pois o Mestre não deixou nenhum manual de instruções para quando fosse preciso outra intervenção de emergência.
Nos Evangelhos, o milagre não é uma solução. É apenas um sinal contra a resignação e o fatalismo, um apelo à imaginação criadora que não dispensa os caminhos das ciências e da inovação técnica. Situa-se na linguagem da mobilização para um objectivo que parece impossível de alcançar. Não se trata de algo exclusivo da religião. A recusa de um presente insustentável e a luta por um futuro que parece irrealizável é a mola da consciência humana, quando não se deixa anestesiar pelo conformismo da propaganda.
Isto é só meia verdade ou uma escapatória à dificuldade na leitura do texto. Se fosse assim, não haveria razão nenhuma para lhe dar tanto espaço. Mas não será da própria essência do Evangelho o sentido da partilha, da solidariedade, do dom? Enquanto houver pessoas que se comovem com a alegria e a tristeza que as rodeiam - que nos rodeiam – não podemos desesperar. Há salvação.
Eduardo Vera-Cruz Pinto, no seu recente manifesto sobre o futuro da Justiça em Portugal, não se perde em reformas no sistema existente. Aposta num processo radical de mudança das estruturas e do modelo institucional vigente [3].
Recomendo este contributo para um debate imprescindível na sociedade portuguesa. Vale para as férias e para depois das férias. Este género de “milagres” exige uma profunda conversão ao primado incontornável das pessoas concretas e do bem comum: “A construção política de uma comunidade de pessoas implica um combate eficaz à pobreza e esse combate passa pela luta por uma sociedade mais igual e mais justa, isto é, por uma sociedade que combata as causas da pobreza. Esse combate precisa de um sistema de justiça diferente daquele que temos hoje”.
“O sistema em que vivemos produziu estas leis, estas ideias dirigentes, estas ofensas à pessoa. Veja-se por exemplo, que o Direito considera o trabalho uma dimensão essencial da personalidade da pessoa humana. Mas o sistema político vigente e aceite, obediente à troika e submetido a banqueiros e a jornalistas, criou biliões de desempregados, tratando-os como “mercadoria descartável”.
3. A linguagem do Papa Francisco vai-se difundindo. No entanto, dentro e fora da Igreja, ainda há muitos obstáculos a vencer, por inércia, por indiferença, por oposição declarada e, sobretudo, disfarçada. Daí que a grande leitura de férias poderá ser a meditação d’A Alegria do Evangelho (EG) e do Louvado Sejas (Laudato Si), que o Papa Francisco nos ofereceu.
E porquê? Porque abre todos os horizontes, sem fechar nenhum e sem se perder nas nuvens. Propõe uma Igreja de saída para a realidade, sem a pretensão de saber tudo. É uma abordagem da natureza, da história e da Igreja por quem se considera aprendiz do mundo e do Evangelho. Como é uma história aberta, não pode dispensar o contributo de ninguém. Basta olhar a realidade com sinceridade para ver que há uma grande deterioração da nossa casa comum. Se o olhar percorre as grandes regiões do nosso planeta, apercebemo-nos depressa que a humanidade frustrou a expectativa divina. Mas, podemos mudar de rumo. (Cf. LSI nº 61)
Público, 26.07.2014
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[1] Mc 6, 20-44
[2] Mt 11, 28
[3] O Futuro da Justiça, Vega, 2015
1. Durante vários anos, ao interromper estas crónicas durante o mês de Agosto, costumava destacar alguns livros para férias. Dizem-me que já não vale a pena. Hoje, quem não for velho e desajeitado como eu, dispõe dos livros que quiser nos seus iPhones ou iPads, ligados a uma nuvem, limpa, vadia e sempre disponível.
Acerca das férias, a Igreja distribuiu, na Missa do passado Domingo, um texto curioso, tirado do Evangelho de S. Marcos. Por razões óbvias, Jesus de Nazaré resolveu partir para férias com os discípulos: ”vinde para um lugar deserto e descansai um pouco sozinhos. Com efeito, os que chegavam e os que partiam eram tantos, que não tinham tempo nem para comer” [1].
Fugiram de barco, mas não adiantou nada. Tinham sido vistos. Quando desembarcaram, Jesus deparou com uma multidão que o procurava e, diz o texto, ficou cheio de compaixão, eram como ovelhas sem pastor. Como poderia ele ficar indiferente perante aqueles que andavam “cansados e oprimidos” [2]?
“Começou logo a ensinar-lhes muitas coisas”. Entusiasmaram-se e perderam a noção do tempo. Os discípulos, sempre desconfiados das estravagâncias do Mestre, foram-lhe dizer já era muito tarde e que despedisse aquela gente para que pudesse ir aos campos e às aldeias mais próximas arranjar algo para comer.
Resposta pronta de Jesus: “Dai-lhes vós de comer”. Fizeram contas e não havia dinheiro para ir comprar pão para aquela multidão! Jesus insiste: ide ver quantos pães tendes. Tinham cinco e dois peixes!
Foram para um lugar relvado, sentaram-se no chão, em grupos de cem e cinquenta pessoas. Jesus pegou naqueles cinco pães e dois peixes e, de olhos no céu, proferiu uma bênção, partiu os pães e deu-os aos discípulos para os distribuírem. Comeram todos quanto quiseram e ainda sobraram doze cestos de pedaços de pão e de peixes.
2. Depois de uma leitura destas, o padre corre o risco de ficar a gaguejar uma homilia inconsequente, pois o Mestre não deixou nenhum manual de instruções para quando fosse preciso outra intervenção de emergência.
Nos Evangelhos, o milagre não é uma solução. É apenas um sinal contra a resignação e o fatalismo, um apelo à imaginação criadora que não dispensa os caminhos das ciências e da inovação técnica. Situa-se na linguagem da mobilização para um objectivo que parece impossível de alcançar. Não se trata de algo exclusivo da religião. A recusa de um presente insustentável e a luta por um futuro que parece irrealizável é a mola da consciência humana, quando não se deixa anestesiar pelo conformismo da propaganda.
Isto é só meia verdade ou uma escapatória à dificuldade na leitura do texto. Se fosse assim, não haveria razão nenhuma para lhe dar tanto espaço. Mas não será da própria essência do Evangelho o sentido da partilha, da solidariedade, do dom? Enquanto houver pessoas que se comovem com a alegria e a tristeza que as rodeiam - que nos rodeiam – não podemos desesperar. Há salvação.
Eduardo Vera-Cruz Pinto, no seu recente manifesto sobre o futuro da Justiça em Portugal, não se perde em reformas no sistema existente. Aposta num processo radical de mudança das estruturas e do modelo institucional vigente [3].
Recomendo este contributo para um debate imprescindível na sociedade portuguesa. Vale para as férias e para depois das férias. Este género de “milagres” exige uma profunda conversão ao primado incontornável das pessoas concretas e do bem comum: “A construção política de uma comunidade de pessoas implica um combate eficaz à pobreza e esse combate passa pela luta por uma sociedade mais igual e mais justa, isto é, por uma sociedade que combata as causas da pobreza. Esse combate precisa de um sistema de justiça diferente daquele que temos hoje”.
“O sistema em que vivemos produziu estas leis, estas ideias dirigentes, estas ofensas à pessoa. Veja-se por exemplo, que o Direito considera o trabalho uma dimensão essencial da personalidade da pessoa humana. Mas o sistema político vigente e aceite, obediente à troika e submetido a banqueiros e a jornalistas, criou biliões de desempregados, tratando-os como “mercadoria descartável”.
3. A linguagem do Papa Francisco vai-se difundindo. No entanto, dentro e fora da Igreja, ainda há muitos obstáculos a vencer, por inércia, por indiferença, por oposição declarada e, sobretudo, disfarçada. Daí que a grande leitura de férias poderá ser a meditação d’A Alegria do Evangelho (EG) e do Louvado Sejas (Laudato Si), que o Papa Francisco nos ofereceu.
E porquê? Porque abre todos os horizontes, sem fechar nenhum e sem se perder nas nuvens. Propõe uma Igreja de saída para a realidade, sem a pretensão de saber tudo. É uma abordagem da natureza, da história e da Igreja por quem se considera aprendiz do mundo e do Evangelho. Como é uma história aberta, não pode dispensar o contributo de ninguém. Basta olhar a realidade com sinceridade para ver que há uma grande deterioração da nossa casa comum. Se o olhar percorre as grandes regiões do nosso planeta, apercebemo-nos depressa que a humanidade frustrou a expectativa divina. Mas, podemos mudar de rumo. (Cf. LSI nº 61)
Público, 26.07.2014
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[1] Mc 6, 20-44
[2] Mt 11, 28
[3] O Futuro da Justiça, Vega, 2015