1. A nós, os velhos, roubam-nos tudo: roubam-nos o passado e o futuro,
a memória e a possibilidade de renovar o cartão de cidadão.
É breve e para poucos a sobrevivência na
memória afectuosa dos familiares e amigos. Chegamos tarde em relação ao passado
e demasiado cedo em relação às maravilhosas promessas da ciência e da técnica.
Por outro lado, a louca
persistência das guerras e os absurdos que as provocam, impondo a lei de matar,
ser morto ou fugir, geram cepticismo acerca da possibilidade global de humanização
da história[1].
A verdadeira vida e a
morte dependem dos afectos. Fora deles, há apenas estatística.
Os mais idosos vão
sofrendo a desertificação das relações de familiares e amigos. Mário Brochado
Coelho, a propósito da morte de Nuno Teotónio Pereira e do desaparecimento de
outros companheiros, manifestou aos amigos, de modo comovente, que embora tudo seja
natural, ficamos com o sentimento de uma grande orfandade.
Há
outras pessoas que alimentam o desejo de um Deus de memória afectuosa,
transfiguradora e universal, para si e para os outros, um coração que as
acolha.
2. Em relação ao Nuno Teotónio Pereira,
muitas coisas foram ditas e escritas, quer sobre a sua sólida e premiada obra
arquitectónica, quer sobre a sua evolução política e religiosa: de uma família monárquica e salazarista para
militante da transformação da Igreja na linha de João XXIII e do Vaticano II,
da luta contra guerra colonial, das metamorfoses políticas radicais até à
entrada no PS.
Cada
uma dessas fases e faces deixou imagens diferentes naqueles que com ele
conviveram. No entanto, o próprio se explicou longamente sobre os tempos e
acontecimentos que viveu. Quem voltar a ler as suas crónicas no Público[2],
a última entrevista a José Pedro Castanheira, publicada no Expresso[3] e o testemunho ditado para o Encontro do
ISTA e do NAM[4],
pode formar uma opinião mais abrangente, não apenas acerca dele, como da sua primeira
mulher, a extraordinária Maria Natália Duarte Silva.
É conhecido que ambos, nos anos 60, me
associaram à criação do Direito à
Informação, à Comissão Nacional de Socorro
aos Presos Políticos, à Iniciativa dos Terceiros
Sábados e ao trabalho de encontrar esconderijos
para clandestinos.
O Nuno ajudou-me também a encontrar, em
Portugal, a pista das pessoas percursoras do Vaticano II, algumas das quais
marcaram a sua mudança de rumo e as expressões militantes do seu profundo catolicismo.
Tentei, quando ainda não havia quase nada
estudado a esse respeito, apresentar um esboço nas Artes de ser católico português[5]. Desde a Voz de Santo
António (1895-1910) até D. António Ferreira Gomes, passando pelos irmãos
Alves Correia (Manuel e Joaquim), pelo Movimento e edições Metanoia, dos anos 40-50, pelo Padre Abel Varzim e pela aceleração
dos anos 50, em vários ramos da Acção Católica, podem-se encontrar tentativas,
obras e correntes que foram reconhecidas no Vaticano II e abafadas pela
hierarquia portuguesa, com raras excepções.
3. Ao reler o seu itinerário espiritual,
deparei com uma crónica do Público,
de 1995, onde reflecte sobre a Igreja Católica e o Partido Comunista, seus problemas actuais e seu futuro[6].
(…) «O Bem da Igreja», que tantas vezes ouvi invocar contra a liberdade das
pessoas e contra os preceitos evangélicos e o «Bem do Partido», que espezinhou direitos
humanos, têm de ser banidos numa e noutra instituição.
« (…) Pode ser que seja necessário passarem
uma ou duas gerações para que isto aconteça: são acontecimentos para o próximo
século. Mas talvez suceda que a mensagem evangélica, por um lado, e a crença
numa sociedade mais justa e solidária, por outro, sejam dois fachos que não se
apaguem na marcha da Humanidade e que poderão até ser convergentes, com
surpresa para muitos. (…) É preciso que
qualquer coisa renasça ou nasça de novo para nos devolver a esperança».
O
texto do Papa Francisco, sobre a «Igreja de saída», que transcrevi no passado
domingo e apresentei no funeral de Nuno Teotónio Pereira, parece-me o começo de
realização desta esperança.
José
Pedro Castanheira, na última entrevista, perguntou-lhe: deixou de ser crente? «A certa altura, sim, muito por causa do episódio da morte
da minha mulher. Não foi imediato, mas ficou sempre uma ferida. Depois meti-me
na política e acabei por chegar à conclusão que o sobrenatural não me dizia
nada. Mas, olhando para toda a minha vida e para a minha formação, acho que sou
católico, ainda que não praticante. Sou crente».
Santa coerência.
Frei Bento Domingues, O.P.
Público, 31.01.2016
https://www.publico.pt/sociedade/noticia/a-memoria-afectuosa-de-deus-1721809
[1] Cf.
António Lobo Antunes, Para a semana estou
cá, in Visão, 21. Janeiro. 2016,
p. 8-9.
[2] Nuno
Teotónio Pereira, Tempos, Lugares,
Pessoas, Público, 1996. As crónicas vão de 20.6.1993 a
21.11.1995.
[3] Fevereiro de 2015 e republicada a 20 de
Janeiro 2016 em on-line.
[4] ISTA
(Instituto S. Tomás de Aquino) e NAM (Movimento “Não Apaguem a Memória”),
Cadernos ISTA, nº 28 – 2014, p. 59-60.
[5] Frei
Bento Domingues, O.P., Artes de ser
católico português, in A Religião dos
Portugueses, Figueirinhas, Porto/Lisboa 1988, pp. 81-122.
[6] Nuno
Teotónio Pereira, Tempos, Lugares,
Pessoas, Público, 1996, pp.80-82
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