1. Com intenções diversas, dizem-se que já é tempo de me
convencer de que faço parte de uma minoria religiosa em extinção. Alguns
afirmam-no como um lamento: depois do desprezo laicista pelas raízes cristãs da
cultura europeia, passando pelo esquecimento ecuménico do Vaticano II, podemos estar
a caminhar, a passos largos, para uma Europa muçulmana de cariz revanchista.
Portugal, depois de um longo interregno, estaria incluído numa explícita vingança.
Não
sou nada bom em sociologia religiosa e já não tenho idade para chegar a ver o
que será esse futuro. Espero que as novas gerações católicas consigam libertar
a Igreja de certas formas religiosas e movimentos que a asfixiam, mas não para os
trocar por algo que se pareça com a vida da maioria dos países dominados pela
lei islâmica.
Importa
não esquecer que o movimento cristão nasceu de um processo libertário e só
conseguirá tornar-se indispensável enquanto tal: É para a liberdade que Cristo vos libertou. Não vos deixeis prender, de
novo, ao jugo da escravidão[1].
Seja ele qual for.
Nos
últimos Domingos fui intimado a confrontar-me com essa questão, juntamente com
os outros participantes na Eucaristia. É fundamental repensar tudo em confronto
com a narrativa de S. Lucas[2]. A missão e a responsabilidade
actual das Igrejas exigem que se perceba o que está em jogo nos acontecimentos,
gestos, decisões e palavras do pontificado reformador do Papa Francisco.
Comecemos
pelo texto evangélico. Jesus foi a Nazaré onde tinha sido criado e, segundo o
seu costume, entrou, em dia de sábado, na sinagoga. Levantou-se para ler.
Foi-lhe entregue o livro do profeta Isaías[3]. Abrindo-o, encontrou a
passagem onde está escrito:
O Espírito do Senhor está sobre mim,
porque me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar a remissão
aos presos e aos cegos a recuperação da vista; para restituir a liberdade aos
oprimidos e para proclamar o ano da graça do Senhor.
Diz
S. Lucas que, chegado a esse ponto, enrolou o livro, entregou-o ao servente e
sentou-se. Todos, na sinagoga, tinham os olhos fixos nele que fez, então, uma
declaração insólita: Hoje realizou-se a
Escritura que acabais de ouvir.
De
repente, manifestou-se uma reviravolta no auditório que desencadeou uma polémica
tão azeda que os seus conterrâneos resolveram acabar com esse improvisado e
atrevido profeta. Estava a desonrar a sua terra e a sua parentela. Expulsaram-no
para fora da cidade com intenção de o matar. Ele não se deixou intimidar.
2. Que terá, então, acontecido para provocar aquela
reviravolta, dado que Jesus tinha chegado à sua terra depois de ter suscitado grande
entusiasmo nas cidades por onde tinha passado?
O
texto pode parecer algo confuso, mas no fundo os seus conterrâneos estão
indignados com o que aconteceu: pode andar por aí a enganar as multidões, mas a
nós não nos engana. Conhecemo-lo bem a ele e aos seus familiares.
Jesus,
de facto, tinha reservado para Nazaré atitudes e declarações muito graves:
primeiro, atreveu-se a fechar o livro imediatamente depois de uma leitura propositadamente
incompleta do texto de Isaías sobre o ano jubilar, suprimindo a passagem sobre o
dia da vingança, da ira de Deus; abandonou a sua qualidade de leitor e de
intérprete da Escritura, para ser ele próprio a inaugurar esse tempo
absolutamente novo, o tempo da pura graça do amor.
Isto significava que tinha acabado o
estilo da conversa religiosa, repetitiva, da qual não se espera nada, pois com
ela também nada acontece: é só falar!
Com
Jesus, o cenário mudou: o dizer do amor faz acontecer! Do lirismo literário do
texto de Isaías, saltou-se para as transformações da realidade. Nos capítulos a
seguir à controvérsia, Jesus não se mostrou nada deprimido. Saiu na direcção de
todas as periferias, a intervir, a suscitar e a organizar os colaboradores.
A estes pede-lhes que “sejam
misericordiosos como o Pai é misericordioso” e não se transformem em juízes de qualquer
tribunal eclesiástico. Não quer cegos a fazer de lúcidos. Deseja pessoas de bom
coração, não beatas com a boca cheia de invocações divinas. Sem a prática
transformadora da realidade, a conversa é só areia movediça[4].
3. O entusiasmo que Jesus voltou a desencadear também estava
semeado de obstáculos e confusões, tanto entre os mais ortodoxos como entre os
próprios reformistas, os discípulos de João Baptista.
Para
complicar o panorama, o Mestre altera o estatuto religioso das mulheres que
passam a fazer parte do grupo dos discípulos. A nova ordem de coisas inclui
judeus e gentios, homens e mulheres, a família dos que se deixaram seduzir pela
boa nova do reino de Deus[5].
Não
podemos deixar de ir ao encontro dessas narrativas de há dois mil anos. Inauguraram
um tempo de vinho novo em odres novos. Os Evangelhos não podem ser o arquivo
morto das Igrejas. Estas não podem viver sem a circulação permanente entre essa
fonte e a complexidade do nosso tempo. Para escutar essa música dissonante é
preciso querer nascer de novo e abandonar os mundos fechados para ver a luz.
Frei Bento Domingues, O.P.
Público 07.02. 2016
https://www.publico.pt/sociedade/noticia/tirar-o-evangelho-da-cadeia-1722560
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