20 março 2016

A PÁSCOA DO ESCRAVO

 
1. Graças a Deus, há sempre algum amigo que se julga encarregado de me chamar à “realidade”. Convidado para umas mini férias na Semana Santa, observei que, para mim, não era a melhor altura. O amigo não me largou sem uma viagem pela sua visão do mundo, em forma de sermão, que passo a resumir: isto já não vai com cerimónias, nem com as da Páscoa, nem com as outras. Estamos cercados de guerras por todos os lados e sem qualquer proposta para enfrentar a desordem mundial em que estamos mergulhados. A paixão pela dominação económica e financeira não recua diante de nada. O apelo aos direitos humanos tornou-se uma invocação de rotina.
A chamada UE já não sabe para que nasceu. A promovida divisão entre a Europa rica e a Europa pobre - divisão reproduzida também dentro de cada país – fabricou a burocracia que esvaziou o seu desígnio primeiro. Esquecida da responsabilidade solidária, parece que nenhuma refundação a poderá salvar. Continuaremos na dúvida se vale a pena discutir a dívida.
Por outro lado, com a recusa, ao longo do tempo, em resolver o conflito israelo-palestino, sucederam-se, no Médio Oriente, loucas intervenções norte-americanas e europeias. O Ocidente, de alma vazia, confrontado com as estratégias terroristas de poder político-religioso (daesh), discute na Europa, a partilha dos refugiados. Nos Estados Unidos e no norte europeu crescem os desejos de muralhas salvadoras.
Agradeci este rápido percurso. Observei que, perante ameaças de guerra ou de catástrofes, nunca há dinheiro para as soluções razoáveis e baratas. Surgem sempre financiadores da estupidez desumanizante e nunca faltarão propostas de negócio depois do desastre. O sofrimento humano não conta e os mortos não se queixam.
2. Ao contrário do que pensa este amigo, não existem apenas celebrações vazias, onde não acontece nada, que se esgotam na encenação do seu teatro mais ou menos cuidado. Não é decisivo saber se tudo se passou, do ponto de vista histórico, como vem narrada, nos Evangelhos, a Paixão de Jesus Cristo.
 Recorde-se que, no povo judeu palestino, desde os finais do séc. I a. C até ao séc. II d. C., surgiram diversos movimentos libertadores, directamente políticos ou proféticos. Eram, por isso, variadas as figuras messiânicas: chefe político libertador, em geral de ascendência de David; um profeta proclamando a vontade de Deus e actuando com sinais específicos ou, ainda, a de sacerdote à frente da nova e definitiva comunidade teocrática, com Deus como único soberano.
Segundo as circunstâncias e no meio de tantas propostas polémicas, é normal que os judeus que reconheceram em Jesus de Nazaré o Messias tivessem o cuidado de reconfigurar a originalidade de Jesus como Cristo, como Messias[i].
A celebração da Eucaristia estava enquadrada numa nova forma de entender e praticar a vida cristã, nas suas diferentes comunidades, como se pode ver na narrativa dos Discípulos de Emaús[ii].
Não era apenas, nem sobretudo, a reprodução de uma cerimónia estereotipada. S. Paulo, que apresenta a narrativa mais completa da Ceia do Senhor[iii], fez também o protesto mais acutilante contra a prática de descriminação social na celebração da Eucaristia, que ele próprio recebeu e transmitiu à comunidade de Corinto.
As comunidades joaninas celebravam, como todas as outras, a Ceia do Senhor em termos muito próximos da narrativa transmitida por S. Paulo. No entanto, no 4º Evangelho, a Ceia termina com o gesto que exprime a transformação que a Eucaristia semanal deve produzir nos seus participantes: a prontidão para o serviço[iv]. Quando se diz: fazei isto em memória de Mim, com o Lava-pés afirma-se que a memória da Igreja terá de ser, no futuro, a reinvenção desta prática e não apenas uma colecção de ritos. Daí a discussão com Pedro, que não estava a gostar nada do programa incluído no gesto despropositado do Mestre. Ao referir apenas o Lava-pés dos discípulos, enuncia-se a lei geral do Cristianismo: a árvore conhece-se pelos frutos.
3. Diz-se que o Papa alterou o ritual da 5ª feira Santa: as mulheres já podem ser incluídas na cerimónia do lava-pés. É uma forma miserável de anestesiar e reduzir o sentido da intervenção do Papa. A alteração que o seu gesto visa provocar não é de tipo ritual, mas de acção transformadora. Pertence ao seu programa de ver o mundo a partir dos excluídos. Levar o centro às periferias.
O Papa Francisco compreendeu que era preciso pôr a Igreja a mexer, como Maria Julieta Mendes Dias e António Marujo intitularam o 4º volume da selecção das minhas crónicas[v], cuja realização só tem sido possível pela sua grande competência e extraordinária dedicação. Recolheram muitos anos da hospitalidade do Público e de esforço empenhado de Guilhermina Gomes.
O gesto chocante de Jesus, próprio de um escravo, tinha sido neutralizado pelo ritual. O Papa Francisco restituiu-lhe a força de interpelação. Ao questionar a sua solenidade aos pés de gente, aparentemente, pouco recomendável, fez dele a bússola da Igreja.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 20.03.2016


[i] Senén Vidal, Evagelio y cartas de Juan, Mensajero, Bilbao, 2013;  Daniel Boyarin Le Christ juif, Cerf, 2007; Cadernos ISTA, Messianismo: ontem e hoje, nº 14, 2002
[ii] Lc 24, 13-35
[iii] 1Cor. 11,17-29 
[iv] Jo. 13
[v] Frei Bento Domingues, O.P., Francisco o Papa que põe a Igreja a mexer, Temas e Debates, 2016


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