13 março 2016

O GOSTO PERVERSO DE ACUSAR


        1. Bergoglio, desde que foi nomeado bispo de Buenos Aires, empenhou-se em transfigurar, a partir da sua prática, o imaginário religioso do confessionário. Viu que era preciso fazer dos lugares de tortura psicológica e moral espaços e tempos de festa, mediante a manifestação da misericórdia infinita de Deus no comportamento dos confessores.

      O sacramento de reconciliação tem e teve muitos nomes, até o de “tribunal”. Numa aula de teologia dos Sacramentos, um estudante, ao ouvir tal designação, exclamou: só podia ser um tribunal fascista! Para o Papa Francisco, o confessionário tornou-se um dos lugares da prática mais profunda da sua teologia da libertação e da sua actuação pastoral.

       No passado dia 9 de Fevereiro, na celebração da Eucaristia, rodeado de franciscanos Capuchinhos, disse-lhes directamente: “a vossa tradição é a do perdão, oferecer o perdão”. Só aquele que se sente pecador pode ser um grande perdoador no confessionário. Os que se julgam puros e mestres sabem apenas condenar.

      O argentino universalizou depois, de modo coloquial, a sua exortação[i]: “Falo-vos como irmão e, em vós, gostaria de falar a todos os confessores, especialmente neste Ano da Misericórdia: o confessionário existe para perdoar. Se tu não puderes dar a absolvição – admito esta hipótese – «não maltrates!» A pessoa procura conforto, perdão, paz na sua alma; quer encontrar um sacerdote que a abrace, lhe diga e lhe faça sentir: «Deus ama-te!» Lamento ter de o dizer, mas quantas pessoas se queixam – creio que a maioria de nós já terá ouvido esta observação: «nunca me vou confessar porque certa vez me perguntaram, fizeram-me isto e aquilo …» Por favor! “

       Finalmente, com humor carinhoso, apresentou o exemplo de um grande perdoador capuchinho que ele conheceu. Tinha sempre pessoas em fila de espera para se confessarem. “Uma vez, ao visitá-lo, disse-me: Tu és bispo e podes esclarecer-me: eu penso que peco porque perdoo demais; ando com este escrúpulo, mas encontro sempre o modo de perdoar”. Que fazes, perguntou-lhe Bergoglio, quando te sentes assim? “Olha, vou à capela e, diante do tabernáculo, digo: desculpa-me, Senhor, perdoa-me, penso que hoje perdoei demais. Mas, foste tu, Senhor, quem me deu este mau exemplo”.

        2. O Sumo Pontífice aproveitou a ocasião para tornar o seu discurso ainda mais abrangente: “Existem outras linguagens na vida. Não há apenas a palavra. Temos também os gestos. Se uma pessoa se aproxima de mim, no confessionário, é porque sente algo que lhe pesa, do qual deseja libertar-se. Talvez não saiba como dizer, mas o gesto fala. Se esta pessoa se aproxima, é porque gostaria de mudar, deixar de fazer isto ou aquilo, de se transformar, ser pessoa de outra maneira. Isto é dito através deste gesto de aproximação. Não é preciso fazer perguntas do género: mas tu ?... Se alguém se aproxima é porque na sua alma quer mudar. Mas muitas vezes está condicionada pela sua psicologia, pela sua vida, pela sua situação… Ad impossibilia nemo tenetur (ninguém é obrigado a coisas impossíveis).

Com esta peça de antologia, Francisco desautorizou séculos de práticas de opressão pseudo-religiosa. No entanto, o que o preocupa é o presente e o futuro. Encerrou a sua homilia com uma exortação cheia de afecto responsabilizante: O perdão é uma carícia de Deus. Na Bíblia, o grande acusador é o diabo ou os que o imitam, os que têm gosto em acusar, como os escribas e os fariseus.

3. A cena evangélica deste domingo é muito conhecida e vai na mesma direcção. Levaram a Jesus, para lhe armarem uma cilada, uma mulher surpreendida em flagrante adultério[ii]. O texto não está muito preocupado com questões jurídicas concretas a esse respeito[iii]. O que lhe interessa é mostrar Jesus a desmascarar as pessoas que se julgam santas, cumpridoras exemplares das leis religiosas e que andam sempre à procura de poderem acusar alguém, no caso, escribas e fariseus. Hoje, ainda existem muitas sociedades que usam os mesmos bárbaros processos. Importa encontrar os meios adequados para varrer da face da terra essa vergonha.

A preocupação de Jesus era, pelo contrário, desmascarar a hipocrisia desses acusadores, prontos a matá-la à pedrada. Jesus escreve na areia com um desprezo infinito por aquele zelo bíblico. Desarma os atiradores com uma simples observação: Quem de entre vós estiver sem pecado atire a primeira pedra. Remédio eficaz: puseram-se todos a andar a começar pelos mais velhos.

Nas sociedades ocidentais, esta prática desarmada por Jesus já não é a mais comum. Em questões de sexo, vale tudo ou quase, embora o voyeuirismo ainda alimente alguns meios de comunicação social. Mas o gosto perverso de acusar, de encontrar alguém em falta, dentro e fora das religiões, nos espaços sagrados ou profanos, diz-nos que os fariseus e os escribas ainda não são uma espécie em extinção. Quem dera! Mas ainda persiste o gosto de novas formas de apedrejar “suspeitos” em praça pública.

       
 

[i] Cf. L’Osservatore Romano semanal (11.02.2016). A tradução, mesmo com arranjos, é sempre má. Os itálicos e as deslocações das aspas são da minha responsabilidade.
[ii] Jo 8, 1-11.
[iii] Cf. Deuteronómio 22, 13-29
         Frei Bento Domingues, O.P.
        in Público 13. 03. 2016
 
 
 
 

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