06 março 2016

ESTA QUARESMA COMEÇOU BEM (2)

1. Há 25 anos, a convite do Centro Bartolomé de Las Casas, de Cusco, participei num congresso internacional sobre modelos de Inculturação e Modernidade, realizado na cidade do México. Samuel Ruiz Garcia, bispo de San Cristobal de las Casas, estava hospedado no convento dominicano onde também eu tinha sido fraternalmente acolhido. Pude conversar longamente com esta figura do catolicismo mexicano que, na altura, já andava nas bocas do mundo, vigiado pelo Governo e pelo Vaticano. Contou-me que tinha sido um padre muito conservador. O contacto com a vida terrível e humilhada dos índios de Chiapas, a participação no Vaticano II e na conferência de Medellin (Colômbia), mostraram-lhe que o caminho do catolicismo era o da incarnação nas culturas nativas. Daí brotou a teologia indigenista que se prolongou na teologia da libertação.

Participei, então, com representações de várias dioceses, numa fervorosa romagem ao Santuário da Virgem de Guadalupe, presidida pelo referido bispo, de protesto contra a prisão de um padre responsável pela nova orientação pastoral indigenista[i].

Voltei a encontrar o bispo Samuel no meio do seu povo, onde se anunciava a guerra na qual ele desempenhou um papel de mediador, evitando um genocídio. Gostei de ver o Papa Francisco a rezar junto ao seu túmulo.

2. Na visita pastoral ao México, o Papa foi extremamente duro com os exploradores da população pobre, sobretudo com os narcotraficantes. Mas ao fazer o balanço da viagem com os jornalistas, foi enfático: Quero dizer uma coisa, uma coisa justa, sobre o povo mexicano. Tem uma cultura… milenária. Sabeis que hoje, no México, se falam 65 línguas, contando as indígenas? É um povo duma grande fé, também sofreu perseguições religiosas, existem mártires: irei canonizar dois ou três.

(…) O «povo» não é uma categoria lógica; é uma categoria mística. Como conseguiu este povo não falir, com tantas guerras? E as coisas que sucedem agora... Um povo que ainda tem esta vitalidade só se explica por Guadalupe.

No primeiro dia, o destaque foi para o encontro com o episcopado. Perante os graves problemas que este tem de enfrentar, o Papa lembrou que era preciso um olhar que reflectisse a ternura de Deus. Por isso, sede bispos de olhar límpido, alma transparente, rosto luminoso; não tenhais medo da transparência. A Igreja não precisa da obscuridade para trabalhar. Vigiai para que os vossos olhares não se cubram com as penumbras da névoa do mundanismo; não vos deixeis corromper pelo vulgar materialismo nem pelas ilusões sedutoras dos acordos feitos por baixo da mesa; não ponhais a vossa confiança nos «carros e cavalos» dos faraós de hoje, porque a nossa força é a «coluna de fogo» que irrompe separando em duas as águas do mar, sem fazer grande rumor[ii].

O Papa observou que a hibridação irreversível da tecnologia aproxima o que está afastado, mas, infelizmente, torna distante o que deveria estar perto.

Por isso, nos vossos olhares, o povo mexicano tem o direito de encontrar os indícios de quem «viu o Senhor». Isto é o essencial. Assim, não percais tempo e energias nas coisas secundárias, nas críticas e intrigas, em projectos vãos de carreira, em planos vazios de hegemonia, nos clubes estéreis de interesses ou compadrios. Não vos deixeis paralisar pelas murmurações e maledicências. Introduzi os vossos sacerdotes nesta compreensão do ministério sagrado. A nós, ministros de Deus, basta a graça de «beber o cálice do Senhor», o dom de guardar a parte da sua herança que nos foi confiada, apesar de sermos administradores inexperientes. Deixemos o Pai atribuir-nos o lugar que preparou para nós[iii]. Poderemos nós ocupar-nos verdadeiramente doutras coisas que não sejam as do Pai? Fora das «coisas do Pai[iv]» perdemos a nossa identidade e, culpavelmente, tornamos vã a sua graça.

Se o nosso olhar não dá testemunho de ter visto Jesus, então as palavras que recordamos d’Ele não passam de figuras retóricas vazias. Talvez expressem a nostalgia daqueles que não podem esquecer o Senhor, mas, em todo o caso, são apenas o balbuciar de órfãos junto do sepulcro. No fim de contas, são palavras incapazes de impedir que o mundo fique abandonado e reduzido ao próprio poder desesperado.

3. Peço-vos que não subestimeis o desafio ético e anticívico que o narcotráfico representa para a juventude e para a sociedade mexicana inteira, incluindo a Igreja.

(…) Qual é a tentação que nos pode vir de ambientes dominados pela violência, a corrupção, o tráfico de drogas, o desprezo pela dignidade da pessoa, a indiferença perante o sofrimento e a precariedade? Qual é a tentação que repetidamente podemos ter nós, os chamados à vida consagrada, ao presbiterado, ao episcopado?

Acho que a poderemos resumir numa só palavra: resignação. À vista desta realidade, pode vencer-nos uma das armas preferidas do demónio: a resignação que nos entrincheira nas nossas «sacristias» e seguranças aparentes e nos trava na hora de arriscar e transformar.

Pai Nosso, não nos deixeis cair em tentação.

Esta Quaresma ainda não terminou.

Frei Bento Domingues, O.P.

Público, 28.02.2016

[i] Cf. Frei Bento Domingues, O.P. A Igreja e a Liberdade, Mário Figueirinhas, Porto,1997, 120-123
[ii] Mt 20, 20-28
[iii] Lc 2, 48-49

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