24 abril 2016

A ALEGRIA DO AMOR (II)

1. Quando tudo parece sem remédio, surge o Papa Francisco a dar uma estranha solidez à esperança, a virtude das situações difíceis. É normal que nem todos vejam assim os seus gestos. Mesmo dentro da própria Igreja, existem grupos, movimentos e personalidades que se opõem à sua orientação, usando diversos métodos para neutralizar a sua influência. A prática mais corrente é a da resistência passiva. Fazem de conta que as suas iniciativas, convocatórias e tomadas de posição não têm nenhuma importância. As pessoas com responsabilidades diocesanas e paroquiais sabem que as rotinas bastam para barrar o caminho a propostas desestabilizadoras.
 Outro método frequente é a desqualificação de Bergoglio. O que este argentino propõe de mais acertado já estava dito pelos seus antecessores. Quando procura ser original, não passa de um demagogo do terceiro mundo. A sua perspectiva social, condensada em três T- trabalho, tecto (casa) e terra –, apresentada no Vaticano, ao acolher os Movimentos Populares[i], como anseios e direitos sagrados de qualquer família, é um exemplo de pregação irresponsável. O jesuíta, C. Theobald, mostrou, pelo contrário, a originalidade e a pertinência do estilo concreto do Papa Francisco, atento à existência social infinitamente diversa e plural[ii].
Enquanto ficava por aí, tinha de facto, muitas passagens da doutrina social da Igreja a seu favor. Agora, tudo se agravou. Em nome de ajustamentos pastorais, a Exortação A Alegria do Amor, deu instrumentos àqueles que procuram destruir a concepção católica da família.
Compreendo que o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o Cardeal Ludwig Müller, viva momentos atribulados. Tinha revelado publicamente que se sentia investido da missão de estruturar teologicamente o pontificado do Papa Francisco, pois este não era um teólogo profissional. Não sei se por vaidade ou megalomania, lutou até à última para desautorizar as posições que acabaram por vingar na Amoris laetitia. Paradoxalmente, é este documento que exige revisões no ensino da teologia moral, denunciando a moral fria de escritório[iii]. Terá ele a humildade suficiente para repensar a sua teologia algo enfatuada?
2. O Movimento Internacional Nós Somos Igreja reconhece que esta Exortação Apostólica introduz uma nova época na ética sexual, na linha do Concílio Vaticano II. Agora, são essencialmente as igrejas locais, incluindo as ciências teológicas e todos os fiéis, que têm a obrigação de desenvolver as linhas gerais, as ideias e as iniciativas básicas definidas por Francisco. Quando afirma que nem toda a discussão doutrinária, moral ou pastoral deve ser decidida com uma intervenção do magistério (nº 3), o Papa Francisco devolve à Igreja a liberdade de diálogo e de desenvolvimento da doutrina, que muitos papas anteriores restringiram em excesso. Explicitamente, o Papa também exige a reflexão dos pastores e teólogos, sobre as ciências teológicas[iv].
Bergoglio reparte as responsabilidades pastorais, precisamente porque todos somos Igreja. Ele convoca, não substitui, mas dá o seu contributo e, neste caso, incontornável. Fala da alegria do amor com muita alegria e pouca solenidade. Sabe que hoje muitos noivos escolhem para a celebração do casamento o hino de S. Paulo[v] à caridade. Como esta é confundida com uma esmola, passou a ser traduzida por amor e o Papa embarcou nesta opção. As leituras na missa têm tão pouca sorte, que a homilia ou as repete ou interpreta o que ninguém ouviu. Como este pontífice tem muita experiência dessa desgraça, resolveu comentar este hino, estrofe a estrofe. Confesso que não conheço nada de mais adequado para os CPM[vi] e os retiros de casais.
3. O que será que permite a este Papa tanta desenvoltura humana, pastoral e teológica ao relacionar-se com as crianças, os idosos, os doentes, os sem-abrigo, os refugiados, inscrevendo tudo em responsabilidades locais e globais?
Se não me engano, é devido ao amor que move o seu pensamento, os seus passos e as suas mãos. Se fosse apenas um conhecimento científico da realidade, este criava, automaticamente, uma distância analítica, especulativa, como o daqueles que sabem tudo, mas não mexem uma palha. A sua teologia é unitiva: é um conhecimento que nasce da alegria do amor e alimenta a investigação contínua e concreta. Não é daqueles que fazem um curso de teologia, ou até um doutoramento, e ficam dispensados de pensar e investigar até ao fim da vida. Como nada os surpreende, também não surpreendem ninguém.
Na apresentação do documento final dos movimentos que se dedicaram a Escutar a Cidade[vii], tive a alegria de ouvir a teóloga Cátia Sofia Tuna, cruzando experiência social e cultural, prática teológica e espiritualidade, apontando caminhos a percorrer e metas a atingir, para escutar sempre a voz de Deus, nas vozes do mundo.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 24.04.2016


[i] Encontro Mundial dos Movimentos Populares, 28. Outubro. 2014
[ii] L’enseignement social de l’ Église selon le pape François, NRT 138 (2016) 273-288
[iii]  Amoris laetitia, n.311-312
[iv] Comunicado de imprensa do IMWAC, Munique / Roma, 8 de Abril de 2016
[v] 1 Cor 13, 1-13
[vi] Cursos de preparação para o matrimónio
[vii] Contributos para o Sínodo da Diocese de Lisboa







17 abril 2016

A ALEGRIA DO AMOR (I)

1. A partir do século XIX, pode-se falar de uma crescente inflação de documentos pontifícios sobre tudo e mais alguma coisa, mas, como já foi observado muitas vezes, ainda não apareceu nenhum sobre o humor. A queixa é muito mais antiga. Humberto Eco, no seu romance O Nome da Rosa, refere um debate monacal para responder a uma pergunta transcendente: Jesus riu ou não? Para o grande historiador, Jacques Le Goff, esse foi um tema constante da Idade Média.
Se alguém tentasse fazer uma enciclopédia do humor e do riso provocados pelas figuras da Bíblia, dos evangelhos, da história da Igreja, dos monges do Deserto, da prática dos sacramentos, da vida dos santos, das devoções, do céu, do inferno e do purgatório, nos diferentes países e continentes, teria matéria hilariante para muitas vidas. Pode ser intermitente, mas na área católica, nunca se esgota.
Depois do sisudo catolicismo da primeira parte do século XX, foi eleito papa, João XXIII. Passado pouco tempo, perguntaram-lhe: quantas pessoas encontrou a trabalhar no Vaticano? – Mais ou menos metade. Quando é que decidiu convocar o Concílio? – Quando estava a fazer a barba. Os seus Fioretti correram o mundo.
Ao angustiado Paulo VI, sucedeu João Paulo I, o abreviado Papa do sorriso. Esquecendo-se de que estava no Vaticano, continuou com o seu costume de chamar a Deus Pai e Mãe e de manifestar, com bonomia, a vontade de varrer a cúria romana. Não teve sorte.
Veio um longo inverno e depois precipitou-se a primavera com um argentino, chamado Mário Bergoglio que, sendo jesuíta, se fez franciscano radical, Francisco. Parece habitado por uma paixão estranha que mistura indignação e misericórdia, bom humor e gestos proféticos, reforma da cúria vaticana e deslocação às periferias mais abandonadas. Desde a primeira Exortação Apostólica até à mais recente, tudo é feito por causa da alegria[i].
2. A Exortação A Alegria do Amor, sobre a família - uma análise, uma autocrítica e uma proposta- não é de alguém que se julga infalível a definir doutrina ou a ditar leis irreformáveis. Procura que a Igreja, na sua intervenção pastoral, abandone o inveterado mau gosto de lamentar e condenar. No capítulo II, ao apresentar a realidade actual e os desafios que ela representa para a vida familiar, destaca, por um lado, a tentação de querer resolver os problemas actuais, reproduzindo receitas gastas. Nem a sociedade em que vivemos, nem aquela para onde caminhamos, permitem a sobrevivência indiscriminada de formas e modelos do passado[ii]. Por outro lado, também não se pode cair na ideia de que tudo é descartável, cada um usa e deita fora, gasta e rompe, aproveita e espreme enquanto serve e, depois … adeus.
Entretanto, o Papa não se limita a mostrar que esses são becos sem saída. Adverte, no entanto, que devemos ser humildes e realistas para reconhecer que, às vezes, a nossa maneira de apresentar as convicções cristãs e a forma como tratamos as pessoas ajudaram a provocar aquilo de que hoje nos lamentamos, pelo que nos convém uma salutar reacção de autocrítica. Além disso, muitas vezes apresentamos de tal maneira o matrimónio que o seu fim unitivo, o convite a crescer no amor e o ideal de ajuda mútua ficaram ofuscados por uma ênfase, quase exclusiva, no dever da procriação.
Bergoglio lembra que não fizemos o acompanhamento dos jovens casais nos primeiros anos, com propostas adaptadas aos seus horários, às suas linguagens, às suas preocupações mais concretas. Outras vezes, apresentamos um ideal teológico do matrimónio demasiado abstrato, construído quase artificialmente, distante da situação concreta e das possibilidades efectivas das famílias tais como são.
Esta excessiva idealização, sobretudo quando não despertámos a confiança na graça, levou a que o matrimónio deixasse de ser desejável e atraente; muito pelo contrário[iii].
3. Na acção pastoral, custa-nos deixar espaço à consciência dos fiéis, que são capazes de realizar o seu próprio discernimento, mesmo em situações onde se rompem todos os esquemas. Somos chamados a formar as consciências, não a substituí-las.
Muitas vezes agimos na defensiva e gastamos as energias pastorais multiplicando os ataques ao mundo decadente, com pouca capacidade de propor e indicar caminhos de felicidade. Muitos não sentem a mensagem da Igreja sobre o matrimónio e a família, como um reflexo claro da pregação e das atitudes de Jesus, o qual, ao mesmo tempo que propunha um ideal exigente, não perdia jamais a proximidade compassiva às pessoas frágeis, como a samaritana ou a mulher adúltera[iv].
Hoje, destacamos apenas a mudança radical de atitude e de método da pastoral da Igreja sobre a família, realidade incontornável na sua diversidade, em todos os povos e culturas. Triste seria uma pastoral das falências[v] sem apontar os caminhos para a alegria do amor sem a qual não se pode falar de família[vi].
Frei Bento Domingues, O.P.
Público 17.04.2016





[i] Evangelii Gaudium (A alegria do Evangelho), 24. 11.2013; Laudato Sí (Louvado sejas), 24. 05. 2015; Amoris Laetitia (A alegria do Amor), 19.03.2016
[ii] Amoris Laetitia, 32-39
[iii] Amoris Laetitia, 36
[iv] Amoris Laetitia, 38
[v] Amoris Laetitia,308
[vi] Os itálicos das citações da Exortação Apostólica são da minha opção

16 abril 2016

Comunicado de imprensa do IMWAC sobre a Exortação para a Família, do Papa Francisco



A responsabilidade está agora nas mãos dos bispos, teólogos e igrejas locais

Comunicado de imprensa
Munique / Roma, 8 de Abril de 2016

Primeira avaliação da Exortação para a Família, do Papa Francisco, pelo Movimento Internacional Nós Somos Igreja

        O Movimento Nós Somos Igreja vê a Exortação Apostólica Amoris Laetitia, do Papa Francisco, publicada recentemente, como um novo caminho de esperança para o desenvolvimento, que há muito urge, da ética sexual católica e da teologia pastoral e familiar.
Esta Exortação Apostólica introduz uma nova época na ética sexual, na linha do Concílio Vaticano II. Agora são essencialmente as igrejas locais, incluindo as ciências teológicas e todos os fiéis, que têm a obrigação de desenvolver as linhas gerais, as ideias e as iniciativas básicas definidas por Francisco.
Na sua estrutura, estilo e conteúdo a Carta é um bom ponto de partida do pensamento legalista e rigoroso sobre o ensino sexual católico em direcção a uma perspectiva de caridade, que pode invocar correctamente a acção exemplar de Jesus.
No entanto, o Papa Francisco ainda não fez conscientemente – o que muitas pessoas lamentarão - nenhuma reforma nem alteração na doutrina. Mas a discrepância entre a mensagem de misericórdia do Evangelho e a abordagem pastoral do Papa Francisco exprimem, cada vez, mais a necessidade fazer correcções e novos desenvolvimentos na doutrina e no Direito Canónico.
Quando afirma que nem toda a discussão doutrinária, moral ou pastoral deve ser decidida com uma intervenção do magistério (nº 3), o Papa Francisco devolve à Igreja a liberdade de diálogo e de desenvolvimento da doutrina que muitos papas anteriores restringiram em excesso. Explicitamente, o Papa exige a reflexão dos pastores e teólogos, também sobre as ciências teológicas (n. 2).
Esta Carta e a descentralização pretendida pelo Papa Francisco transferem a responsabilidade essencialmente para os bispos de todo o mundo, que devem procurar soluções mais bem inculturadas em cada país ou região (nº 3).
Pede-se aos bispos, por exemplo, que encontrem caminhos para decisões individuais adequadas para o acesso à comunhão dos casais divorciados e recasados, decisões essas que não deverão depender da boa vontade do pároco. Agora, nenhum bispo ou sacerdote pode voltar a dizer que é Roma que nega a comunhão aos divorciados que voltaram a casar (nº 243). Decisões de consciência acerca da questão da contracepção (proibida na Encíclica Humanae Vitae) são agora claramente confirmadas na Amoris Laetitia (nº 222).
Decepcionante - mesmo em comparação com suas declarações anteriores – é o facto de o Papa Francisco mencionar indirectamente os homossexuais (nº 250) e de a Igreja não ver nenhuma possibilidade de parcerias homossexuais serem comparáveis ao casamento e à família (nº 251). No entanto, digna de nota é a afirmação de que a Igreja honra elementos constitutivos noutras formas de parceria, contrárias ao ideal cristão de casamento " (nº 292).

Outros aspectos a realçar:
A função da Igreja é formar consciências e não substituí-las. (nº 37).
É reconhecida a grande variedade de situações familiares que podem oferecer uma certa estabilidade (nº 52).
Deve ser claramente rejeitada toda a forma de submissão das mulheres, muitas vezes justificada com os textos de São Paulo (nº 156).
Há uma advertência para não usar o celibato como uma solidão confortável e uma liberdade autónoma (nº 162).
                 
Contacto para a imprensa:
Christian Weisner, Tel: +49(0)172 518 4082,

E-Mail: presse@wir-sind-kirche.de

10 abril 2016

O BEM E A PAZ CANSAM

1. Segundo o mito bíblico, a Criação[1] é uma vitória sobre o caos. Deus viu tudo o que tinha feito e era muito bom. Um paraíso. Os antigos próximo-orientais faziam um balanço da história da humanidade diametralmente oposto ao dos modernos ocidentais. Contrariamente à ideia do progresso irreversível, os antigos pensavam que o mundo começou perfeito, mas degradou-se progressivamente. Os mitos mesopotâmicos também expressam essa convicção. No mundo grego, esta ideia esquematizou-se no mito das cinco idades do universo[2]. Esses mitos vêem no dilúvio a principal fronteira dos primórdios da humanidade. Na versão bíblica, é uma descriação[3].
No entanto, quando parece que se chegou à degradação sem remédio, surge sempre uma esperança. A título de exemplo, cito o Profeta Isaías[4]: “O povo que andava nas trevas viu uma grande luz (…) porque um menino nos nasceu, um filho nos foi dado que anuncia uma paz sem fim”. A IV Bucólica de Virgílio[5] parece copiada desse profeta. No seu poema há também um Menino que vai deixar o mundo livre do medo, governando a terra em paz.
Os cristãos viram nessas figuras míticas do Menino, Jesus de Nazaré, o príncipe da paz, cuja proposta foi rejeitada em público e em tribunal. Acabou na cruz. Este facto foi tão traumatizante para os discípulos que lhes matou a esperança. Todas as narrativas da Ressurreição testemunham que se sentiram completamente perdidos. O Ressuscitado encontrou, nas mulheres que o seguiram e procuravam, as evangelizadoras dos apóstolos, paralisados pelo medo. A era da audácia, dentro e fora do judaísmo, é atribuída à irrupção do Espírito de Cristo.
2. Na sua apologia da Roma cristã, o bracarense Paulo Orósio[6] vê no Império Romano um sistema quase perfeito, no preciso momento em que está a ruir, dilacerado pelas contradições internas e pelas invasões germânicas: “as mesmas leis que se subordinam ao Deus único reinam por toda a parte e por onde quer que eu vá, sem ser conhecido, não receio uma violência repentina, como se fosse um homem sem protecção. Entre romanos, como disse, sou romano; entre cristãos sou cristão; entre homens sou homem; apelo para a república pelas suas leis, para a consciência pela fé, para a natureza pela igualdade. Faço uso temporariamente de toda a terra como se fosse a minha pátria, porque aquela que é a verdadeira pátria e que eu amo não está, de modo algum, na terra[7]”. Sol de pouca dura.
Na Idade Moderna, entramos noutro mundo. Desenvolveu-se a suspeita de que a religião era a fonte de todos os males, de todas as opressões, de todas as guerras. Para que o ser humano fosse livre e criador do seu destino, precisava de se desfazer da ideia de Deus. As ciências e as técnicas acabariam por vencer todas as interrogações de ordem psicológica, metafísica e religiosa.
O liberalismo desconstrutivista transferiu para os seres humanos os atributos divinos.
As ciências, as técnicas e as suas indústrias acabarão por criar o pós-humano. O niilismo de todos os juízos de valor liberta o terreno de preocupações éticas e deixa o pragmatismo puro e duro à solta. Em breve conheceremos a mecânica da biologia humana e desaparecerá o inconsciente individual e colectivo. Seremos transparentes.
3. Ou talvez não. Num mundo, em mudança acelerada, produz-se uma disfunção entre o tecno-económico e o sentido da vida dos cidadãos e das suas identidades. Entre as fontes onde podem ser recuperadas, encontra-se o mundo das religiões. Entre estas, destaca-se o islão e o cristianismo. Mas estas estão a afirmar-se na pior das suas configurações, no fundamentalismo. Por vezes até como justificação religiosa do terrorismo.
As sociedades democráticas ocidentais são e serão, cada vez mais, heterogéneas. A imigração configurou uma paisagem humana e religiosa multicolor. Esta situação exige especiais cuidados para que a integração se faça de tal modo que todos se reconheçam, ao mesmo título, cidadãos do mesmo país, em direitos e deveres.
Qual o papel das religiões numa sociedade democrática? Tentar reduzir o seu papel às sacristias é ilusório. Deixar que, em nome das religiões e do seu peso numérico, dominem o espaço público é minar o papel da cidadania, da política e da religião. Não basta uma cultura do diálogo inter-religioso. A cultura do diálogo deve atingir a vida da cidadania, da política e da religião. Sem distinguir o papel de cada uma destas dimensões, criam-se conflitos desnecessários. Não se resolvem negando às religiões, que respeitam as regras da democracia, a sua voz no espaço público.
O papel dos cristãos consiste em saber que, em cada época, lhes compete praticar e proclamar uma religião universal: fazer aos outros aquilo que gostamos que os outros nos façam. A lei da reciprocidade completada pelo amor aos próprios inimigos[8].
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 10.04.2016



[1] Gn 1-2
[2] Ouro, Prata, Bronze, Sem-Deuses, Ferro
[3] Francolino J. Gonçalves, Bíblia e Natureza, cadernos ISTA, nº 8. 1999, pp 7-40
[4] 9,1-6
[5] Poeta romano, 70-19 a.C.
[6]  ca 375 ca 416. Ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Or%C3%B3sio
[7] Cf. António Borges Coelho, Donde viemos, Caminho, 2010, pp 49
[8] Mt 7, 12; 5, 38-44

03 abril 2016

CAMINHOS CRISTÃOS PARA A RESSURREIÇÃO DA EUROPA?

    1. Alguns amigos insistiram comigo para não voltar à pergunta: “Será possível ressuscitar a Europa?”. Este continente, dentro e fora de portas, antes, durante e depois do regime de Cristandade, viveu quase sempre em guerra e assim continuará. Um interregno de 60 anos de paz foi mais fruto do cansaço do que da virtude. A política, como Aristóteles viu, é o reino do instável para o qual não existe ciência certa, apenas palpites e raciocínios mais ou menos prováveis.
O que eu deveria questionar, segundo dizem, era o estado lamentável em que se encontra a liturgia da Igreja, nomeadamente a da Semana Santa. Não enche as igrejas nem as almas. A pergunta que os padres não deveriam evitar seria esta: porque será que os feriados de cariz religioso e os próprios domingos servem sobretudo para umas miniférias dos laicos e dos católicos não praticantes, cada vez mais numerosos?
 Um dia abordarei o que há de interessante e falacioso nesta pergunta. Se os feriados religiosos servem para um merecido “descanso”, já não é mau. A mítica e bela narrativa da Criação coroa de humor um Iavé feliz e fatigado: Deus concluiu no sétimo dia a sua obra e descansou (Gn 1-2).
Esta justificação, ao mais alto nível teológico, do descanso semanal é uma das expressões mais sublimes desta versão cósmica e humanista da sabedoria divina. Quando o dia da liberdade se perverteu com ritualismos opressivos, um judeu, Jesus da Nazaré, foi radical na denúncia das instituições religiosas ou outras: o sábado foi feito para o ser humano e não o ser humano para o sábado (Mc 2,27).
 O dia do culto que não seja o da celebração da alegria e da liberdade é um insulto a Deus. O homo faber, a tempo inteiro, é um escravo ou um idiota. Não é um criador.
2. Por outro lado, no coração da liturgia cristã lateja a memória da luta de Cristo contra todas as formas de fatalismo: sempre assim foi, sempre assim será!
O programa que Jesus apresentou publicamente era um manifesto libertário. Para o tornar possível desmascarou as tentações diabólicas da dominação económica, política e religiosa. Nunca quis o sacrifício, a opressão, o sofrimento, a cruz, a morte. Tudo isto lhe foi imposto, porque preferiu ser preso, torturado, crucificado, a trair o seu projeto de fraternidade ilimitada. Preferiu ser morto a trair o sentido último da sua vida.
Por tudo isto, a Cruz de Jesus, resultado imediato de um crime jurídico de natureza política, tornou-se o símbolo da generosidade e da extrema fidelidade. Nada tem a ver com a sacralização do sofrimento, como muitas vezes ainda ressoa na liturgia e na espiritualidade. Os sacrifícios exigidos pela fidelidade ao amor são a glória da vida humana. O amor do sofrimento é uma doença grave!
Passando em revista todas as narrativas e interpretações do processo de Jesus, retenho o retrato dos Actos dos Apóstolos: coligaram-se, nesta cidade, contra o teu servo Jesus que ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos, com as nações pagãs e os povos de Israel (Act 4, 17-18).
 O extraordinário movimento litúrgico do séc. XX e que preparou a reforma da Semana Santa nos anos 50, consagrada no Vaticano II, teve muitas oscilações na sua orientação. Tanto o modelo monacal como o pastoral tiveram sempre dificuldade em perceber que não é Deus que precisa do culto litúrgico. É o ser humano que o exige para ser cristão na transformação da vida em todas as suas dimensões: imanente e transcendente, interior e exterior, pessoal e social.
A Eucaristia celebra a memória do itinerário de Jesus Cristo para não nos perdermos do essencial nos labirintos do quotidiano. Na parábola do bom samaritano, o sacerdote e o levita para não falharem o encontro com Deus no culto do Tempo, falharam o encontro com o próximo, o ser humano espancado e atirado para a valeta. O próximo é a nova categoria social dos sem categoria: o estrangeiro, o excluído de quem nos aproximamos. O amor incondicional – a caridade – é o sentido escondido do social, passa pelas instituições, mas nunca se reduz ao que elas podem abranger. Nas sociedades acontece o inesperado, a alteridade irredutível, do qual também somos responsáveis, onde devemos reconhecer o humano, o irmão sem qualquer outra etiqueta, gente da família!
3. Há 60 anos, alguns políticos, sobretudo democratas cristãos e sociais-democratas, lançaram a União Europeia com o objectivo de promover a paz, os seus valores e o bem-estar dos seus povos. Em 2012, a União Europeia foi laureada com o Nobel da Paz. Donde virá, então, o mal-estar actual? O mundo mudou. Entretanto quer a Democracia Cristã, quer a Social-Democracia perderam a alma ao abandonarem a economia social e a política do bem comum. Renderam-se à economia que mata seguindo os caminhos que aprofundam as desigualdades entre super-ricos e o mundo imenso dos pobres.
Não adianta lamentar a diminuição da prática religiosa dos cristãos. O que importa perguntar: qual é a dimensão interior e política dessa prática em favor da transfiguração da Europa aberta à transformação do mundo?
Frei Bento Domingues, O.P.
      in Público 03.04.2016