1.
Por causa do texto do passado Domingo, recebi um telefonema longo, tentando
mostrar-me que já não existem deuses, homens ou mulheres que nos possam salvar.
O mundo está irremediavelmente perdido. Os cristãos são os mais culpados pela
enganosa ideia de salvação. Depois da derrota de Jesus de Nazaré, inventaram a
fé na impossível ressurreição. Não havendo remédio contra a morte, só ela nos
pode livrar do mal de existir.
Depois desta metafísica veio uma sumária
lição sobre a responsabilidade europeia no actual desconcerto do mundo. No séc.
XIX, a filha da civilização das Luzes cegou-se com o alargamento das suas zonas
de dominação. Duas guerras mundiais, de horrorosos extermínios, tornaram a
memória do século XX numa vergonha sem nome.
Das
ruínas, surgiu a ideia de construir uma Europa como nunca tinha existido. Num
momento de lucidez, alguns dirigentes de partidos democratas-cristãos e
social-democratas consentiram em criar as condições para a sua união. Não
previram que os sucessores iriam desprezar as boas regras da cooperação e do
funcionamento democrático das instituições. Com desníveis económicos tão
acentuados e sem o desenvolvimento de uma cultura de diálogo intercultural – a
partir da família, da escola e das relações de trabalho – os velhos demónios do
nacionalismo populista voltaram a agitar-se.
Os eurocépticos passaram a queixar-se do
casamento e a calcular as vantagens e inconvenientes de um divórcio. O outro
europeu está a torna-se um adversário e os acossados pela guerra e pela fome
que lhe batem à porta são seleccionados conforme o contributo que possam
representar para os seus interesses e necessidades.
Uma
Europa, esquecida da sua alma profunda, de mal com a economia, a política e as
religiões, suicida-se julgando que está a salvar a sua pele. Recusa ver-se ao
espelho, juntamente com os EUA, para não enfrentar as suas responsabilidades na
desordem deste mundo. Caiu o muro de Berlim, outros continuaram e novos se
ergueram. As desigualdades sociais tornam retórica a Declaração dos Direitos
Humanos. As Nações Unidas são um belo nome para a desunião global.
2.
Com essa injecção de tópicos históricos pretendia o meu leitor curar a minha
ingenuidade teológica. Agradeci, mas observei-lhe que existem muitos outros
argumentos para reforçar o seu pessimismo. Se até um candidato à presidência da
maior potência mundial, dispondo das universidades mais desejadas, consegue
tantos apoios vociferando ordinarices, talvez possamos ver donde não vale a
pena esperar a salvação. Existem outros caminhos.
Todos
os dias me espanto com a inesgotável energia criadora, em actos, gestos e
palavras, do papa Francisco. Alegra-me, sobretudo, a sua atitude permanente de
acolher e suscitar a criatividade das outras pessoas, analfabetas ou
intelectuais, sejam elas cristãs, agnósticas, ateias, de outras religiões ou
sem religião. Incita a derrubar muros, a construir pontes, a escutar o outro
com afecto. Gosta de mobilizar e casar a inteligência e as emoções para
desenvolver um mundo de compaixão pelos caídos na valeta. Todos convocados, de
geração em geração para cuidar, reparar e tornar bela a casa comum.
A tão
falada reforma da Cúria e do Banco do Vaticano, os afrontamentos do mundo
eclesiástico desde os bispos, padres e seminaristas, começando sempre pelos
eminentíssimos cardeais, são apenas manifestações do acolhimento de Jesus
Cristo em todas as dimensões da vida humana actual. Como acaba de escrever o
filósofo francês, Jean d’Ormesson, “Francisco reencontrou o espírito
revolucionário do cristianismo. Foi o cristianismo, abrindo-se às mulheres, aos
pobres, aos escravos que permitiu todas as grandes revoluções a partir das
quais podemos pensar a sociedade na qual hoje vivemos. Só há uma revolução: o
cristianismo”[1] .
3.
Esta observação talvez não vá ao fundo da questão e não é apenas porque em nome
do cristianismo e da sua pureza também foram praticados muitos crimes.
Jesus Cristo está testemunhado e configurado
pelos textos do Novo Testamento, mas não está congelado há dois mil anos nessa
escrita. Esses textos testemunham de Alguém que está vivo, hoje, nos
acontecimentos e na vida das pessoas, acolhido ou rejeitado. A grande tentação
religiosa consiste em pensar que o encontro com o Ressuscitado acontece apenas
e sobretudo nas missas, nos sacrários e nas exposições do Santíssimo
Sacramento. Esses exercícios espirituais valem e muito na medida em que nos
lembrem que Jesus Cristo é o clandestino da semana, derrubando muros,
separações, inimizades, entre pessoas e grupos. A devoção que retém as pessoas
nas igrejas, nas sacristias, está a opor-se a um Jesus em viagem para as periferias
sociais e culturais. Foi isto que o papa Francisco veio lembrar: só vale uma
Igreja de saída!
O
papa não está a inventar nada. Lembra apenas a pergunta de Deus: que fizeste do
teu irmão?[2] O julgamento religioso de toda a história humana, religiosa ou
profana, em todos os seus momentos, depende da resposta a essa pergunta[3].
Há
salvação. Deus não gosta de fazer nada sozinho e o papa Francisco também não.
Frei
Bento Domingues, O.P.
16.10.2016
in Público
[1] Le
Monde des Religions, n 79, p. 70
[2] Gn 4, 1-16
Sem comentários:
Enviar um comentário