1. Continuando, como prometemos, na temática do Domingo
passado, lembro o que escreveu José M. Mardones[1]:
depois das revoluções norte-americana e francesa, do século XVIII, marcos da
modernidade, a religião abandonou o campo da política. Tinha deixado de ser
necessária para legitimar o que podia ser perfeitamente legitimado pela razão
humana. Ergueu-se, então, um muro entre Igreja e Estado, muito fino na América
e uma separação abrupta e violenta na Europa. A partir daí, os crentes sentiram
muitas vezes a tentação, não de trabalhar no âmbito da política, mas de
politizar a religião e de religiosizar a
política.
Emilio Garcia
Estébanez estudou, de forma crítica, o percurso ocidental, desde Platão até aos
nossos dias - passando por Aristóteles, os Estóicos, Sto. Agostinho, S. Tomás e
Maquiavel, etc. - das relações entre ética e política[2].
Procurou esclarecer a ambiguidade da noção de bem-comum, muito celebrada na
Igreja Católica.
Para
este filósofo e teólogo, o pensamento ético-político dos estóicos constituiu um
dos mais completos da antiguidade, ainda que o seu forte tenha sido a ética. A
respeito desta, do ponto de vista histórico, pode-se dizer que eles alcançaram
o mais alto nível prático e teórico a que chegou a filosofia moral pagã. Isto
pode afirmar-se não apenas em termos relativos, mas também em termos absolutos:
a escola estóica, real e objectivamente, construiu um sistema quase perfeito de
moral natural, quanto aos seus elementos essenciais.
Em
política, a sua concepção sobre a igualdade de todos os seres humanos e o seu
universalismo social constituiu, unida às elaborações do mesmo género dos seus
antecessores, um corpo completo de doutrinarismo político. Os elementos da
doutrina política de Platão e de Aristóteles, enquadrados pela doutrina estóica,
teriam criado o panorama político ideal, pouco menos que perfeito. Parece, a
esse autor, que o conjunto que poderia ser formado por aqueles sistemas,
devidamente articulados, ainda não foi superado por nenhum outro sistema. Além
disso, os Estóicos puseram como fundamento de todo o seu filosofar um princípio
realmente exacto e frutífero: viver em
sintonia com a natureza. Num mundo sem revelação sobrenatural como
garantia, o caminho para chegar à verdade consiste em interrogar, com
honestidade e sem preconceitos, a natureza.
2. Sto. Agostinho negou que os pagãos pudessem ser
virtuosos. Se fosse possível, sem a fé, alcançar a justiça, Cristo teria morrido
em vão. Não agiam pelo verdadeiro fim, isto é, para agradar a Deus, pois o
único Deus é o dos cristãos. Não basta actuar com energia, constância,
afrontando com valentia penas e perigos. É preciso fazer tudo isso pelo Deus
verdadeiro. Acusaram Sto Agostinho de dizer que as virtudes dos pagãos eram,
apenas, esplêndidos vícios. Nunca o disse expressamente, mas, segundo
Estébanez, quem tirou essa conclusão estava na linha das suas invectivas contra
os pagãos. Sto Agostinho recusou a existência de uma ética natural.
A
doutrina política deste grande génio era uma consequência lógica das suas
concepções morais. A finalidade do Estado consiste em promover, sobretudo, o
culto divino, cuidar dos bons costumes e práticas dos seus membros, de modo que
em nenhum momento se ofenda o Deus verdadeiro. Juntamente com esta, enumera
outras finalidades, tais como, manter a paz interior e exterior, promulgar leis
que tenham em conta uma justa partilhar dos direitos e deveres, velar pela
guarda das leis mediante a aplicação de castigos.
A ideia
agostiniana do Estado estava marcada pela convicção de que este deve ser antes
de tudo cristão, nos seus membros, na sua actividade e nos seus interesses. Sem
esta orientação, degenera num bando de ladrões. A ideia de que o Estado deve,
inclusive, aplicar os seus meios específicos, a força, para promover o bem
espiritual está a um passo. Sto Agostinho deu esse passo.
Acerca
da doutrina política desse grande Doutor da Igreja, S. Tomás de Aquino teve a
habilidade de o interpretar num sentido diametralmente inverso. Adopta, sem
mais explicações, a definição que Cícero deu do Estado e que Agostinho tinha
rejeitado categoricamente.
3. Desde a antiguidade pagã, desde o regime de
cristandade, desde as revoluções da Modernidade muita coisa mudou. A melhor de
todas foi a Declaração dos Direitos e Deveres Humanos. A globalização, ao não
ser a mundialização da solidariedade, nem sempre os respeita e promove. Em 2014
os refugiados já eram 19,5 milhões e 38,2 milhões de deslocados.
A
guerra fria regressou mesmo no combate ao DAESH. O panorama político tanto nos
EUA como na Rússia, a situação anémica da UE e as ambições da China levantam a
pergunta: estaremos a construir um mundo onde haja lugar para todos, em diálogo
e cooperação?
Depois
de, na Europa, se terem mandado as religiões para a sacristia, para não
perturbar a política e a política não perturbar as religiões, estas
apresentam-se inopinadamente na praça pública em trajes e armas pouco
convencionais.
É
preciso repensar tudo, de fio a pavio, e ensaiar outros caminhos. Será isso que
pretendem os Bispos franceses? Veremos.
Frei
Bento Domingues, O.P.
in
Público, 30.10.2016
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